sábado, 7 de fevereiro de 2009

D. Hélder e o sonho possível

“Felizes aqueles que sabem que
para se manter o mesmo durante
a vida, é preciso mudar muito”
D. Hélder


O tempo é inexorável com algumas pessoas. Não bastasse a destruição física -- roubando-lhes as energias, minguando-lhes as forças, sugando-lhes a beleza -- , a vida transforma-os, na mor parte das vezes, em seres amargos, azedos e muitas vezes insuportáveis. Os anos , também, vão trazendo o conformismo, a acomodação, a inércia , prendendo os homens ao passado e os tornando avessos ao progresso, à mutabilidade da vida , ao incessante renascer do universo. Em pouco , não só vão ficando velhas as pessoas, mas também chatas , intolerantes e obsoletas como um computador XT. Viram meras peças de um museu biológico e, quando a morte por fim chega, com todos os seus sortilégios, já não existe muito o que abocanhar : apenas uma múmia ambulante a aguarda, com uma triste história escrita num poeirento papiro. O que fica de quase todos é mais uma lembrança da vitalidade passada do que da serenidade presente.
A contemporaneidade , por outro lado, é privilégio de poucos. Pouquíssimos partem deixando um vácuo de contribuições a ser doada aos novos tempos. Raros são aqueles que fazem falta real , que abandonaram a terra com uma obra ainda inacabada , que poderiam por fim, mudar em alguma coisa os próximos capítulos da história da humanidade.
Senti exatamente isso, quando perdemos D. Hélder Câmara , no início da semana. Aos 90 anos, brotava dele a alegria e o entusiasmo da juventude, a cada instante. Conseguiu conservar o élan intacto, durante toda a existência e pregava o sonho de criança embotado num ideal de luta e não violência. Lutou incansavelmente, durante todos os seus dias, pelos mais arraigados ideais de justiça social e paz entre os semelhantes. Ele foi, sem nenhuma dúvida, a pessoa nessa terra que mais abalou o meu agnosticismo : aproximar-se dele era sentir , imediatamente, a existência de uma alma, um espírito, uma força superior, escondida por baixo daquela figura magra, frágil, esquálida.
Há duas passagens de D. Hélder que me marcaram a vida definitivamente. A primeira, quando celebrou a missa da minha formatura, no final dos anos 70. Na homilia , em meio àquela oratória típica, forte e emocionante , ele dizia que o maior esforço que todos devíamos fazer era no sentido de não nos deixar embrutecer pelos ínvios caminhos da vida que se abriam para todos nós ,naquele exato momento, e fechava biblicamente:
-- “Vocês nunca devem perder a capacidade de chorar !”
Aquilo nos foi dado como um instrumento, um termômetro para que pudéssemos, a todo instante, na dura vida de esculápio , poder aquilatar se éramos apenas um simples técnico da arte de curar ou um artista da arte médica.
Anos depois, num Congresso de Médicos Residentes, em plena ditadura militar, era bonito vê-lo falar sem ódio e sem alimentar sentimentos de vingança. Fora perseguido, ameaçado, tinham matado e torturado auxiliares diretos seus e andara prestes a sofrer atentados pessoais. Em nenhum momento demonstrava rancor qualquer de seus detratores ; transparecia, claramente, que apenas sentia pena . Contou-nos , na ocasião, que , dias atrás, um coronel com seus sequazes, entrou de supetão na igrejinha modesta onde passou a maior parte da sua vida, na Boa Vista em Recife. Gritando, o militar, perguntou onde estavam escondidos os comunistas que ele vivia acoitando. D. Hélder nunca negara guarida aos perseguidos, sabia que o próprio catolicismo já vivera perseguido e escondido nas catacumbas. Calmo, respondeu que não sabia o que ele estava inquirindo. O Coronel, ameaçador, disse que o reverendo sabia sim e, se estivesse mentindo, iria responder pelos atos subversivos. D. Hélder, tranqüilo, retrucou:
-- Meu filho, você é novo e não sabe, mas o mundo é uma roda, hoje você está lá no topo... Mas a roda, roda, roda... daqui uns dias, sem que ao menos você perceba, eis que você descobre que está lá embaixo... igualzinho a esses que você chama hoje de subversivos... Você pode precisar de guarida e , não se faça de rogado, é só vir para cá que eu te escondo do mesmo jeitinho... O Coronel, perplexo, deu meia volta e saiu...
Que lição de vida para aqueles que ao assumirem chefias, posições executivas, cargos públicos , se acham eternos, semideuses e não se intimidam em pisar os subordinados, como se o mundo não rodasse e a vida também não tivesse movimento de rotação e translação...
De todas as pessoas que conheci na vida, D. Hélder foi a que mais mereceu o adjetivo de Santo.



07/02/09 - D. Hélder Hoje faria 100 Anos !

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