sábado, 19 de abril de 2008

Matozinho e seu cronista

Matozinho é uma cidadezinha perdida nos confins do sertão. Existe em permanente guerra declarada da modernidade com a tradição. Vencedor dessa ilíada é o observador narrador – cronista José Flávio Vieira. Médico formado em Recife e hoje clinicando em Crato, esse caririense, sobrinho do Padre Antônio Vieira, aquele que cantou o jumento como nosso irmão, vem, o esculápio, mostrando os dons literários e artísticos do tio famoso.
Primeiro investiu no teatro e se deu bem. Agora vem de narrador literário e se apresenta melhor ainda. Não se pode dizer que o livro é um romance, uma coletânea de contos ou de crônicas. É tudo isso junto. Ele vai contando as histórias da cidade, mantendo um fio condutor entre cada uma e um romance se edifica. Mas individualmente pode-se considerar cada capítulo como um conto.
No início do livro, o autor apresenta os “Apontamentos para a História Mítico-Sentimental de Matozinho”. É então que, segundo ele, os primeiros relatos sobre Matozinho chegam-lhe através do viajante F. Monteiro Lima. Interessante é que a gente nota que esse viajante é o próprio autor, que cria sua cidade e toma posse da mesma, encarnando todos os tipos que cria. Depois vem relatar, para o leitor, a história dessa sua cidade mítica. Não adianta ele envolver também um tio falecido na decadente Cococi, através de uns manuscritos guardados. Esse tio é ele mesmo.
Para caracterizar esses personagens de que se mascara, o narrador vai também desenterrando do ostracismo um regionalismo que se edifica principalmente na linguagem. Daí que aparecem: Labacé, quicé, botica, espinhela caída, capiongo, esgalamido, olhos de pitomba lambida, purga de cóis, pifó, lopéu, infuca, emboança, bicada, chiaba, abirobado, quixó, peitica, fubica, mucumbu, currulepe, varapau, pitingula, fubuia, cumbuca, escandelo, rapapé, cangapé, requifife, querequequé, minguiriba, caié, mangofa, estrovenga, batoré, meropéia, picuaio, bituca e treloso. Além desses termos, há dizeres e provérbios regionalistas. São tantos esses momentos que daria um glossário no final do livro, como fez Américo Facó com Dona Guidinha do Poço, de Oliveira Paiva.
A escritura de J. Flávio Vieira é tão ele próprio que o leitor fica com a certeza de que, feito um Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas, o autor conta essas histórias para dar sentido ao existir. A ossatura daquela vila distante é a mesma que o coloca de pé e de oitiva diante dos aconteceres que decorrem. Por isso que, em tiro certeiro com sua socadeira, ele se epigrafa escorado em T. S. Eliot: “Com tais fragmentos foi que escorei minhas ruínas”. Sintetizado está aí o sentido encontrado pelo autor para encetar sua viagem pela Vila de Motozinho. As ruas de Motozinho são as artérias que se agasalham abaixo de sua epiderme.
Dessas ruínas que constituem o curioso tecido de sua memória vão surgindo os tipos curiosos da cidadezinha como: Expedito do Pau Véio, o artesão; Quinco Magarefe, o açougueiro; Zé Benze-Benze, o raizeiro; Pedro Pito, o cordelista; Jojó Fubuia, o cachaceiro; Zé Patife, o bodegueiro; Zé Maromba, o esmoler; Catão Tororó, o delegado; Pedro Kamim de Rato, o barbeiro; Zezito do Caolho, o feirante; Zé Maliça, o pistoleiro; Bode Rouco, locutor da amplificadora; Alberio Jurema, o Barnabé; Quinco Pau-de-Arara, o policial; Toim Araguaia, o ex-guerrilheiro; Janjão Cataplasma, o esculápio; Zé do Balde Furado, o vendedor de água; Pedro da Carroça Velha, o carroceiro.
Os nomes atípicos dos personagens, geralmente remetendo aos seus ofícios lembra as narrativas de José Cândido de Carvalho, em O Coronel e o Lobisomem e, principalmente, Por que Lulu Bergantim não atravessou o Rubicão. Essas intertextualidades enriquecedoras vêm acompanhadas de tiradas humorísticas surgidas do comportamento inusitado de seus personagens. Assim era Ciço do Rolo, feirante que aparecia em Matozinho, fazendo qualquer negócio. “Trocava quadro do coração de Jesus por um cento de ponteira de pião; talabardão de cangalha por saco de estrume; caçote por fojo de pegar préa”.
Esse livro de J. Flávio Vieira tem humor de sobra, mas é um humor pungente. É a cidade rindo para não chorar a perda da inocência. Motozinho sangra por não poder resistir à invasão globalizante. A melhor saída para resistir a essa invasão inapelável é zombar dela. Cantar a dor é uma forma de resistir a ela.
O momento mais engraçado do seu livro, mais sintomático com relação à globalização dos costumes, acontece, como em qualquer lugarejo, quando chega a televisão. As antenas sobre as casas trouxeram um mundo pesado por sobre a leveza dos costumes locais. Antológica é a cena da instalação do primeiro aparelho de TV, em Matozinho, exatamente na praça única da cidade. O prefeito Sinderval Bandeira ordenou à primeira dama, D. Generosa Bandeira, para providenciar a ligação do aparelho, avisando ao povo presente: “ - Atenção, atenção, meu povo! Se aprepare que agora mesmo vai aparecer a imagem.
Nisto todo o povo presente na praça, religiosamente, demonstrou aquele que seria o último ato da inocência que, a partir daquele momento, começaria a desaparecer. Ante o aviso do aparecimento da imagem, eles piedosamente, se ajoelharam”.

Batista de Lima

Um comentário:

Tiago Viana disse...

Grande Batista de Lima. Falou muito bem do seu livro. Parabéns!