sábado, 19 de abril de 2008

Últimas de Matozinho

FÉRIAS


Bastião do Grampo nasceu lá pras bandas do Coronzol e chegou em Matozinho para trabalhar como barnabé no Posto de Peste. Conseguira a sinecura , ainda jovem, de um tio seu, cabo eleitoral em Caririaçu , que firmara amizade de conveniência com um deputado federal: um daqueles bichos que se alimenta de verbas públicas e alimenta os outros com promessas geralmente vãs e inexeqüíveis. Mas, ao menos para Bastião, a coisa funcionou a contento. Levou toda a vida na maciota, arrancando o grampo que unia as duas vias dos pedidos de exames. Só. Daí veio o sobrenome de Grampo com que era internacionalmente conhecido em Matozinho.
Afora isto, jamais dera um prego numa barra de sabão. Qualquer solicitação dos superiores que fugisse à rotina de trabalho estafante de Bastião, ele armava uma cara de fastio, franzia o cenho e deixava as pálpebras cair a meio pau e soltava aquela que seria a sua palavra de ordem na repartição :
-- É uma luta, meus amigos, uma luta !
Os tempos foram passando e nosso barnabé, já meio goiabão, casou com D. Mariinha. Ainda pôs dois filhos no mundo. Mantinha, do alto de seus sessenta e cinco anos, uma saúde razoável para quem nunca tinha deixado escorrer na face uma gota de suor. Nem quando tomava remédio para febre! -- Comentavam os amigos, pelos cantos. A única deficiência que os tempos lhe trouxeram foi na audição. Coisa de família: aos poucos começou a ouvir menos e menos e para falar com ele se precisava elevar o tom de voz. Mesmo assim, os amigos diziam que existia uma surdez seletiva: apenas para as coisas que não interessavam, como cobranças, reclamações, solicitação de tarefas extras. Na hora de lhe pagarem dívidas, de ouvir fofocas, tinha ouvido de tuberculoso. Desde os sessenta, vinha batalhando por uma aposentadoria que teimava em não se concretizar por entraves burocráticos. Já atanazara os chefes políticos de toda região buscando uma celeridade maior no processo, mas continuava tendo que comparecer diariamente ao trabalho, pegar a velha espátula e ir arrancando os grampos como vinha fazendo há quase quarenta anos. Ufa!
Semana passada, Miguelzinho, seu filho mais novo e uma espécie de tradutor oficial de Bastião na sua surdez, contou, aos gritos, como de costume, que haveria um comício na Praça da Matriz com vários políticos da situação. Estava-se, novamente , em época pré-eleitoral, aquele raro período de risos fartos e sensibilidade à flor da pele. Nosso barnabé ficou feliz que só pinto em monturo, com a notícia. Nunca teve muita educação política. Sempre esteve invariavelmente do lado do governo, o lado da sombra, como ele chamava. Dizia , categoricamente, que pobre não tinha o direito de escolher candidato, isto era coisa de cabra remediado. Sabendo da vinda dos “homens” se animou primeiro porque aparecia uma oportunidadezinha de massagear a vaidade dos homens e, depois, poderia apresentar a conta a eles: a possibilidade de desencalhar aquela novela interminável da aposentadoria.
No dia aprazado, na turma do gargarejo, lá estava Bastião com Miguelzinho, seu fiel escudeiro e tradutor, de lado. A carroceria do velho caminhão de Pedro Fulô fora improvisada de palco. Após a apresentação de dois emboladores, chegou, por fim a vez dos enroladores. Primeiro cedeu-se a palavra ao baixo clero: vereadores e deputados estaduais, depois foi a vez de Sindé Bandeira, o prefeito da cidade e, por fim, chamou-se ao microfone, o governador Parsifal Umbilino, o famoso “Papá Canela de Siriema”. O mais importante mandatário do estado tratava-se de um velho alto, magro e desengonçado, com uma dicção horrível que até parecia um ganso engasgado. Colocado como interventor , em plena ditadura militar, tinha a fama de burro e dedo duro. Bastião, empertigado, nas primeiras fileiras ouvi os primeiros discursos com desinteresse. Já sabia, mesmo sem ouvir, o que todos estavam dizendo, a ele interessava apenas a conversa de quem manda, do “dono dos porcos”. Assim, apenas quando Parsifal começou a grasnar no microfone é que ele passou a usar desesperadamente o auxílio de Miguelzinho na tradução. “Canela de Siriema” começo logo elogiando a Revolução de 1964 e o governo federal que agora era exercido por um Triunvirato. Neste ponto, um Bastião ansioso já solicitou a tradução simultânea. Miguelzinho urrou para ele :
--- Ele ta dizendo, papai, que quem governa agora o país é um triunvirato!
“Do Grampo” fez um indiscutível ar de contentamento e gritou:
--- Quem governa agora é Viriato ? O Velho Viriato? Tô feito, meu filho, é primo legítimo de Mariinha !
Miguelzinho ainda tentou corrigir, mas viu que era impossível, já que a tradução do novo parágrafo vinha logo adiante.
--- Miguelzinho, o que diabos é que “Canela de Sirtiema” tá dizendo agora ?
O tradutor então, mais uma vez explicou aos berros:
--- Parsifal tá prometendo, papai, que se for reeleito o funcionalismo público só vai trabalhar dois meses por ano !
Bastião, animou-se todo e nas pontas dos pés, perguntou a Miguelzinho:
--- Tá bom, dois meses tá bom , mas preste atenção aí, meu filho, veja se ele já regulamentou as férias.

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