J. FLÁVIO VIEIRA
Era ainda uma época em que todos os distúrbios comportamentais da meninice tinham uma só denominação: Danação. Hiperatividade, TOD, TDH essas denominações de que , depois, a medicina se apropriou, tinham nomeS diferentes o menino era danado, malino, capeta, metido a cavalo do cão, tinha um frivião... E o tratamento era um só para todas os distúrbios : Pêia ! Quando não resolvia, dizia-se logo, é porque a dosagem tinha sido pouca, abaixo da medicinal. Chinelada, cipó de mufumbo, palmatória, chicote de tanger burro faziam parte do tratamento habitual dessas mocas de criança. Meteu-se a besta, guri apanhava mais do que galinha para largar choco.
Pois lá em Matozinho, como em qualquer vila que se preze, tinha um desses meninos invocados, daqueles onipresentes, toda hora estava fazendo uma estripulia, uma munganga. Jovelino lá seus oito anos, mas era conhecido pelo apelido de “Pecado Mortal”. Contavam-se às tuias suas presepadas. Amarrou, um dia, um fogo de artifício no rabo de um cachorro e tocou fogo no pavio, no adro da igreja. Quando as chamas partiram para a bunda do pobre do caramelo ele, em desabada carreira, entrou de templo a dentro, onde estava havendo um casamento e foi uma carreira tão grande de convidados e parentes do casal, ante o fogaréu e a iminência da bomba, que só um mês depois o casal voltou ao altar. A noiva deu por si em Petrolina e o noivo, quando deu fé, estava entrando de paletó em Teresina. Alguns convidados, inclusive, perderam a segunda tentativa de casamento pois ainda não tinham retornado a Matozinho.
Seu Zé Fernando tinha uma garapeira na cidade e D. Naninha, sua esposa, fazia, uns pastéis de vento. Aquela birosca era a Mcdonald´s de Matozinho. Talvez porque não existe nesse mundo um casamento mais perfeito do que caldo de cana com pastel. Ô bichino pra casar bem ! rivaliza com queijo de manteiga-doce de leite e cuscuz e nata. Naninha era uma espécie de jararaca com TPM. Talvez porque Zé Fernando fosse meio metido a garanhão, tinha um salpicado de filhos fora do caco. Ainda andaram querendo, diversas vezes, se apartar. Mas, agora, os anos já tinham chegado e arrefecido, um pouco, por decurso de prazo, os temores de Naninha. Mesmo assim, frequentemente, puxava briga montada só na folha corrida de Zé Fernando.
Pois bem, eram raros tempos de inverno em Matozinho e o açude do sabugo estava sangrando há mais de um mês. Quando isso acontecia, claro, a revença se transformava numa praia. Nosso garapeiro, tardezinha, aproveitou para dar umas braçadas. Na volta, deu por falta do seu relógio Mido, um utensílio de estimação que herdara do seu avô. Procurou por todo canto e necas. Voltou para casa chateado e com aquela dúvida danada: tinha sido perdido ou afanado ? Juntava-se um monte de pessoas nas margens do açude e, já anoitecendo, com pouca visibilidade, havia sempre o risco de um mão de veludo ter surrupiado o relógio. Fernando, então, teve uma ideia salvadora para resolver a questão: espalhou que daria uma gorda recompensa a quem achasse o relógio de estimação que havia recebido do seu avô. Procurou a difusora da cidade, a praça da matriz de N. S. dos Desafogados.
Uns dois dias depois da divulgação da promessa, “Pecado Mortal” entrou de garapeira adentro. Trazia o Mido nas mãos. Disse que tinha encontrado próximo a um visgueiro frondoso lá no Sabugo. Zé Fernando, então, seguro como era, fechou o firo. Ameaçou “Pecado Mortal”, disse que não ia lhe dar coisa nenhuma, pois aquilo tinha sido fruto de roubo e ele tinha se arrependido do malfeito, o relógio era conhecido e ele aproveitou a deixa e resolveu – pelo sim, pelo não -- arriscar a recompensa. Disse uns impropérios para o menino, fez cara feia e o ameaçou procurar o delegado. Jovelino, do outro lado, se enfezou, deu-lhe um cotoco, soltou a enfieira de nomes feios que sabia de cor e gritou, ameaçador:
--Tá bom, viu , seu rapa de sola ! Se prepare, viu, seu garapeiro ! Pois não vai ficar desse jeito, não!
Uma das figuras mais conhecidas em Matozinho era Dona Afonsina. Mulher firme e determinada que tocava com mão de ferro a fazenda que o marido, prematuramente falecido, lhe deixara. Com a enxada em punho, sem ajuda de ninguém, sustentou os filhos e os formou. Estava há mais de vinte anos viúva e nunca largara o luto. Religiosa, dizia , sempre , que o homem que teve, o amor da sua vida, tinha sido Olavo, que Deus lhe deu e lhe tirou. Carregava as duas alianças na mão esquerda e a indefectível roupa preta, lembrança eterno de seu Olavo. Ultimamente vivia se queixando de umas enxaquecas que não tinham fim, macacoa de velho como diziam os vizinhos.
No outro dia do arranca-rabo com Fernando, “Pecado Mortal” procurou D. Afonsina. Disse-lhe tinha um recado para ela, mas pediu que guardasse todo o segredo desse mundo. Afonsina confusa, não conseguiu entender, mas ficou apreensiva.
--- E o que foi, Jovelino ? O que aconteceu, meu filho ?
--- D. Afonsina, seu Fernando pediu para eu vir aqui e dizer à senhora que quer lhe encontrar lá na garapeira, sozinha, umas 11 horas da noite. Ele disse que tem uma sede danada na senhora e quer lhe dar uns arrochos e umas umbigadas. Ele disse que essa dor de cabeça da senhora é falta de homem. A senhora, depois das massagens, vai voltar rindo e cantando muié rendeira.
Afonsina nem comentou nada. Subiu nas tamancas , foi pessoalmente à garapeira e abriu o maior barraco que terminou pegando mais fogo ainda quando Naninha, com ciúme renovado, partiu de lá fumando numa quenga de coco. Tapa pra lá, tapa pra cá, terminaram as duas se juntando e cobrindo o pobre do Fernando de bolachas e safanões, pra ele deixar de ser sem vergonha.
No outro dia, só de mal, Pecado Mortal passa de fronte a loja e grita lá pra dentro:
--- Ei, Fernando ! Que cara inchada é essa ? Tome uma garapinha que é bom pra picada de marimbondo de chapéu !
Crato, 02/02/2025
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