
Fulgêncio era durão. Morava em Matozinho, num sitiozinho
nas margens do Rio Paranaporã, que, a
maior parte dos meses, sobrevivia apenas dos seus pequenos poços. Só nos
invernos mais fartos , criava sustança e sonhava ilusórios sonhos de permanência. Com D.
Bernardina, biblicamente, cresceu e
multiplicou , jogou ao mundo quinze filhos. E tinha lá outra diversão naquele
fim de mundo ? A filharada veio quase como um acidente de percurso, efeito
colateral da única diversão que lhe era permitida. Para uma ninhada tão grande,
para administrar, aprendeu a usar técnicas de caserna: aquilo era mais um batalhão
do que descendência. Ordem dada, era ordem cumprida. Remédio para as
transgressões , estava prontamente a mãos : palmatória, cipó de mufumbo,
chinela currulepe. Bernardina e Fulgêncio se faziam iguais generais deste
quartel familiar. Imbirra de menino, crise de adolescência, problemas
existenciais eram prontamente resolvidos
pelo Dr. Chico Chicote, o psicanalista de plantão no armador mais próximo.
Pedagogicamente, crescidos , todos os conflitos que por acaso fossem aparecendo
na estrada da vida, ante o aprendizado inicial, apareciam sempre como de menor
importância e facilmente enfrentados pelos meninos que tinham sobrevivido ao
corredor polonês da Psicologia Fulgêncio-bernardiniana.
Como sempre, nem todos os
soldados desse quartel seguem à risca os preceitos da autoridade. Virgulino, um
dos filhos, era impulsivo e , como burro brabo, difícil de amansar mesmo diante
da metodologia rígida dos pais. Rebelde, aos quinze anos, depois de uma pisa
por conta de uma das suas frequentes danações, fugiu de casa e desapareceu , sem
deixar rastro. Pegou um caminhão e fugiu para o Pará. Terminou se fixando na
cidade de Faro, onde não tinha parente, nem aderente. E lá se foi ficando,
trabalhando na lavoura, como agregado e, depois, se apossando de terras
devolutas se tornou um pequeno produtor.
Junto , linha dura, numa época em que a constituição era traçada por qualquer
cidadão comum, fazia trabalho de pistolagens para amigos fazendeiros. Apagou
seu passado e não quis saber mais da
família. Resolveu erguer tudo do zero e implodiu a antiga ponte que o ligava a
Matozinho.
Fulgêncio fez vista grossa
com a partida do menino. Era uma boca a menos para alimentar. D. Bernardina, no
entanto, ficou ressabiada e carregava consigo uma mágoa que eclodia
periodicamente, aquela síndrome do ninho vazio. Como mãe, remoía perguntas
como: por onde andará meu filho ? Por que não fiz nada para evitar a fuga. Suas
apreensões multiplicaram-se mais ainda quando, anos depois, circulou a conversa
de que Virgulino tinha sido assassinado pras bandas da Amazônia.
Mas a vida, como um
carrossel, dá muitas voltas e teima em fazer com que nossos caminhos terminem
onde tudo começou. Trinta anos depois, Virgulino começou a trabalhar com um
fazendeiro nordestino que havia adquirido terras por ali. Com o tempo, conversa
vai, conversa vem, descobriu que o patrão era de Serrinha dos Nicodemos e, como
ele, naquele destino de judeu, terminou
ali, buscando, a terra prometida. Um belo dia, o patrão que voltava
periodicamente a Serrinha para visitar os parentes, o convidou para ir com ele.
Eram mais de dois mil quilômetros de estrada e queria companhia. Virgulino resolveu ir junto, por mera curiosidade. Não
tinha nenhuma pretensão de rever Matozinho e nem sabia se seus pais ainda eram
vivos.
Passados uns quinze dias em Serrinha,
Oduvaldo, o patrão de Virgulino, lhe fez uma proposta. O crime, por maior que
fosse, depois de trinta anos, já tinha prescrito. Vamos lá em Matozinho , no
Sítio Bulandeira, ver o que sobrou daquele passado que você estilhaçou ! Virgulino, a princípio, recuou, aos poucos,
no entanto, bateu-lhe a curiosidade dos tempos meio dourado/meio cinza da sua
infância. Acedeu.
Saíram de manhãzinha Oduvaldo preparou uma visita algo teatral. Chegando à
Bulandeira, estacionou defronte à casa e deixou o funcionário escondido dentro
da caminhonete 4X4. Pelo vidro fumê, Virgulino observou que nada tinha mudado
em tantos anos. A casinha era a mesma, a roça idêntica, o grande juazeiro
verdejante ainda estava ali compondo a paisagem. Identificou seu pai sentado
numa cadeira de balanço, debaixo de um pé de fícus, junto à casa, nu de cintura
para cima. A mesma cara sisuda , ótima para fazer cobranças. Cabelo grisalho e
o rosto marcado por sulcos como o porão do açude do Sabugo no mês de outubro. Mais à frente sua mãe, com
um vassourão, limpando o terreiro. Cabelos grisalhos , a mesma face, só um
pouco dissolvida pelo calor do tempo. Viu quando Oduvaldo puxou conversa com
seu pai, perguntando sobre o inverno, dizendo que era do Norte e estava
prensando em comprar terras em Matozinho. Fulgêncio o recebeu com atenção,
embora com aquela cisma de matuto: um pé à frente e outro atrás. Conversa vai,
conversa vem, Oduvaldo , fazendo o cerca-lourenço, disse que morava agora no
Pará. Com a deixa, Bernardina se acercou e entrou na conversa. Disse de um
filho que tinha ido há muitos anos para o Pará, mas soube que tinha sido
assassinado. Oduvaldo ainda adiantou sobre os riscos de violência naquelas
terras sem muita lei. Falou, então, que tinha trazido um presente do Pará para
eles. Dirigiu-se à caminhonete, abriu a porta e , de lá, saltou Virgulino.
No primeiro momento, o casal
não entendeu bem o que estava acontecendo, mas rápido, Bernardina, em lágrimas,
correu e abraçou-se com o filho. Meu filho ! Meu filho ! Só aí o velho
Fulgêncio matou a charada. Mesmo assim, não bateu a passarinha, permaneceu
sentado e , mantendo a fleuma, fez o comentário que ficou represado por mais de
trinta anos:
--- Eu não disse, Bernardina
! Que morreu que nada ! Quem diabos ia queria matar um besta desses !?
Durante o dia, o clima foi
amainando, a conversa foi sendo atualizada. Foram chegando alguns irmãos que
moravam por perto, com filhos e netos. Contaram-se as baixas acontecidas nas
últimas três décadas.
Depois do almoço – duas
galinhas caipiras foram sacrificadas em homenagem às alvíssaras, Oduvaldo resolveu cutucar a orça com uma varinha
curta.
--- Seu Fulgêncio, a gente
veio mesmo aqui foi porque seu filho quer receber um pedaço dessa terra que ele
tem direito por herança.
Do outro lado, o velho
recobrando a guarda meio baixa, atacou:
--- Herança ? E eu já morri, foi ? E vocês não me disseram nada ? O defunto
não tem o direito de saber que já bateu as botas, não ?
Oduvaldo, então, contendo o
riso, cutucou novamente a cascavel, pra
ver se ela ainda armava bote:
--- Não, seu Fulgêncio, como
nós vamos ter que voltar para o Pará e Virgulino não sabe quando torna, ele
quer que o senhor dê em dinheiro a parte da terra que ele tem direito por
herança !
Oduvaldo, então, já tendo
definitivamente matado as saudades, levantou-se da cadeira de balanço, pegou
uma vara de marmeleiro da cerca do quintal e mostrou que ainda estava em pleno
vigor a Constituição Fulgêncio-Bernardiniana promulgada trinta anos atrás:
--- Ah ! entendi, seu
Oduvaldo ! Agora, sim ! Vocês querem que eu compre a mim mesmo essa terra que
já é minha, não é ? Cadê Virgulino ? Chame ele ! Vou dá-lhe umas varadas no
lombo , com validade de mais trinta anos! Quando acabar, perder a validade, vocês voltam aqui e a gente faz o inventário !