quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Manga Rosa

 


O
perfume invadiu o carro  como um déspota. Não fez mesuras e nem pediu licença. Talvez tangido pelo sol escaldante, a transferência  fez-se sem delongas, intempestivamente. Um cheiro adocicado e voluptuoso , desses que enchem a boca em feitio de olho d ´água e, sabe-se lá porque, vem untado de laivos de infância,  tomou  de assalto o velho Opala, como uma invasão bárbara. De volta do trabalho, em hora de almoço, aquele aroma remetia, imediatamente, a fruta ou beijo roubados que , enigmaticamente, ganham um magnetismo e um gosto especiais. Pelo espelho retrovisor conseguiu identificar o pacotinho em papel de supermercado colocado no banco de trás e, só então, lembrou:  uma cliente lhe pedira a chave e ali depositara o presente, um saco de mangas rosa.  A fragrância que se assenhoreara  do carro tinha ali a sua fonte. E, como num caleidoscópio, o odor inebriante o teletransportou para os jardins floridos da sua meninice.  Os sapotis e mangas afanados das galhas pendentes das fruteiras de Seu Milão, um carpinteiro vizinho à casa dos seus pais. Tiradas dos galhos, sob a adrenalina do furto, os frutos cobriam-se de um mel especial , como que tocados por varas de condão. Aquele sabor que, nunca mais nos dias futuros, conseguiria sentir nas frutas agora industrializadas dos supermercados: coloridas, graúdas, vistosas , mas insulsas. Hoje, como num passo de mágica, retornara tudo montado no bólido adocicado da manga rosa. Como num filme, sem fechar os olhos, projetou-se à sua frente, na tela do mundo que se estendia para lá da transparência do para-brisas, o bulício da meninada. À época, antes dos carros, era a verdadeira proprietária das ruas. Subindo nas fruteiras com a velocidade de símios, colhendo frutos dos pomares : sim, as casas ainda tinham quintais e as fruteiras também se  consideravam de domínio público, como a vida. Agora as pequeninas cercas haviam se transformado em muros altos e intransponíveis. As casas,  muitas se tinham resumido a apartamentos pequenos, os passeios já não eram o parlatório das residências. A cidade se  reduzira aos bunkers de cada família, a calçada e a pracinha haviam sido transladadas para as Redes Sociais. A felicidade possível passou a residir nas prateleiras das lojas de departamentos, segundo informações havia se mudado de mala e cuia para os shoppings.

                        O carro impregnara-se daqueles eflúvios dulcificados da manga rosa que lhe remetiam a tempos mais sóbrios, singelos e despojados. A ventura , sem trâmites, oferecia-se como uma dádiva. Bastava esticar a mão e colhê-la , madura, pura e saborosa, pendente de um galho baixinho da fruteira do jardim. Parou o carro em frente à casa e retirou, cuidadosamente, o pacote de mangas, como se se tratasse de uma urna sagrada que guardasse as cinzas de um tempo risonho levado à cremação.  

Crato, 02/12/2023

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