sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Planeta Fome

 


“A sociedade é composta por duas grandes classes:

aqueles que têm mais jantares que apetite e os

que têm mais apetite que jantares.”

 Nicolas Chamfort

 

                       

                                    Ontem , um dos mais inspirados pássaros da música brasileira alçou seu derradeiro voo. Elza Gomes da Conceição nascera pobre e miserável na Favela Moça Bonita, no Bairro de Padre Miguel, no Rio de Janeiro, há 91 anos. Desde pequenininha precisou lutar pela sobrevivência e  contra todos os correligionários que acompanham de perto a pobreza e a miséria. Imaginem a corrida de obstáculos  que encontrou pela frente até ser considerada a Cantora Brasileira do Milênio, em votação,  pela BBC de Londres, em 1999 ! O pássaro reunia em si , além do canto inigualável e mavioso, uma coragem e determinação impressionantes para quebrar, diariamente, as tariscas da gaiola que a acompanharam por toda sua trajetória. Ficou célebre, já na sua estreia,  em um Programa de Calouros da Rádio Nacional, apresentado pelo grande Ary Barroso, sua resposta a uma pergunta preconceituosa e maliciosa do grande compositor, antes da apresentação do projeto de cantora. Tinha então 21 anos e, casada aos 13,  já perdera dois filhos para a Fome.  Ao vê-la vestida com roupas pobres e completamente fora da moda, perguntou-lhe, de que planeta ela vinha. E Elza, o apresentou a  uma constelação que a elite brasileira, secularmente, finge não existir. “Do mesmo planeta que o senhor, Seu Ary: Venho do Planeta Fome  !”  Fechando um ciclo , como a explosão de uma Super Nova, “Planeta Fome” seria o nome do último disco gravado pela estrela da MPB em 2019.

                            O Planeta de onde veio a nossa Elza continua pleno e brilhante no espaço onde o Brasil orbita.  Hoje 120 milhões de brasileiros vivem em Insegurança Alimentar ( mais de um quinto da população) e 20 milhões , simplesmente, estão passando fome. Claro que a pandemia da Covid-19 agravou este quadro vergonhoso, mas a causa que se estende secularmente, está bem escondida na esfera política. Só no atual governo, a Fome, simplesmente, dobrou. A quantidade das pessoas que passam fome hoje no país é maior do que a população de estados como a Bahia e o Rio de Janeiro da nossa querida Elza Soares. Só dois estados brasileiros ganham em população do grande estado da Fome no Brasil: São Paulo e Minas Gerais. As regiões Norte (18%), Nordeste( 14%)  e Centro-Oeste(7%) são as mais famintas do Brasil. E, como era de se esperar, pessoas da zona rural, pretos e pardos, famílias chefiadas por mulheres, pessoas com baixa escolaridade constam entre aqueles mais atingidos pela Síndrome da Panela Vazia. Mesmo os que não estão na Extrema Pobreza, mais da metade relataram diminuição de renda importante nos últimos anos.

                            O Planeta de D. Elza continua bem visível  e gigantesco no espaço sideral, mais de 90 anos depois que nosso pássaro o identificou, tão bem, do seu pequenino observatório da Favela de Moça Bonita. Ele observa , de longe, um outro planeta, o da Obesidade, onde bacanas fazem dieta, correm em esteiras , tomam remédios pra murchar , morrem de doenças cardiovasculares , quebram balanças e juntam um outro sintoma grave à sua Síndrome: uma profunda cegueira social.  Você pode achar que a força gravitacional que faz com que o Planeta Fome viaje tão lépido pelo firmamento seja um vírus, a preguiça da população, a falta de empreendedorismo do seu povo. Que se exploda esse planeta!, Que seja engolido por um Buraco Negro ! -- pode pensar você, como solução astronômica para a questão que tem dimensões da mesma escala do seu problema. É bom, no entanto, olhar para cima ! Os dois planetas orbitam no mesmo sistema solar e, um dia, há   sempre o risco de colidirem, mesmo contra sua vontade, mesmo que você ache que não, que o outro planeta é redondo e o seu é bem planinho.

                            D. Elza, agora como estrela, com seu brilho imutável, não me deixa mentir !

Crato, 21/01/22   

 * Ilustração da autoria de Jean Wyllys

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