sexta-feira, 19 de novembro de 2021

O Negativo e a Revelação

 

J. Flávio Vieira

 

“O momento presente é o momento do

 autofagismo do meio urbano.

 O rebentar das cidades sobre campos recobertos de

 «massas informes de resíduos urbanos» é,

 de um modo imediato, presidido pelos

 imperativos do consumo.”

Guy Debord

 

                                              


Caro leitor, como no preâmbulo de algumas boas  piadas, tenho duas notícias para te contar neste final de semana, uma boa e uma ruim, qual a que você quer ouvir primeiro ? E, é bom que se frise, dê-se por feliz ! Tivemos meses seguidos em que não tivemos duas opções, apenas as manchetes horríveis e as terríveis. Pois bem, enquanto você decide por aí, em meio às potocas de sábado do nosso Vicelmo, vou decidir por você. Começo contanto a má notícia. Mais um prédio histórico do Crato foi demolido. Desta feita,  o Bar Ideal , ali na Rua Santos Dumont, nossa antiga Rua Formosa que, de há muito, já não merece esse nome. Inaugurado em 1916,  por Deodoro Gomes de Matos, ele ali estava sediado desde 1923, com uma lindíssima fachada em estilo neoclássico. O Bar Ideal não era apenas um botequim no sentido mais tradicional da palavra. Ele fez-se um dos nossos primeiros clubes, antes da inauguração do Cassino Sul americano em 1918 e, depois, do Crato Clube, já no início dos anos 30. Ali, além dos tragos e jogos de bilhar, aconteciam os importantes eventos sociais da sociedade cratense das duas primeiras décadas do Século XX. Festas, bailes carnavalescos, aniversários, encontros políticos e literários, casamentos eram ali celebrados com galhardia e pompa. Foi o Bar Ideal que primeiro trouxe para o Crato o nosso Maestro Azul que ali trabalhou como músico e barman nos anos 40 e que terminou por dedicar toda sua vida à nossa centenária Banda Municipal. Incontáveis outros músicos pioneiros do Cariri ali se apresentaram: Chico Baião, Hidelgardo Benício e Joaquim Cruz Neves. Ontem as picaretas e os picaretas puseram abaixo o que restou de um bar que um dia foi o ideal. Quase nada mais resta do Centro Histórico da Cidade do Crato que , reiteradamente, nega-se a construir uma política mínima de preservação de patrimônio material e imaterial. Apagamos , criminosamente,  um passado glorioso , sem forças para vislumbrar um futuro ao menos sofrível para nossa urbe. A cidade está hoje demolida e  preenchida de edifícios caixões que representam bem o enterro histórico da cidade de Frei Carlos.

                                   


E o leitor há de se perguntar: E existe ainda, depois dessa paulada, a possibilidade uma notícia alvissareira ? Não é melhor colocar o fumo na lapela e seguir o esquife ? Por incrível que possa parecer, conforme se diz, não existe nesse mundo veneno que não traga junto um certo teor terapêutico. No último dia 13, inaugurou-se, em Crato, o Museu Orgânico Casa de Telma Saraiva, ali na Rua da Vala, no prédio histórico pertencente aos Saraiva Leão.  A família tem várias gerações dedicadas intimamente à Fotografia no Cariri. Júlio Saraiva, o pai de Telma , na mesma casa, foi um dos pioneiros da fotografia na região. Inventivo, com ampla visão urbanística, Júlio acompanhou , com sua câmera e seus projetos, a evolução urbanística da cidade desde os anos 30 até os 80. Cesário, seu irmão, foi ator e músico por aqui. Salviano, filho de Júlio, um dos mais importantes fotógrafos de estúdio, em Recife, entre 1950-1980. O esposo de Telma, Edilson Rocha, era também fotógrafo em eventos e artista plástico. E foi desse caldo glorioso que surgiu uma das mais impressionantes artistas da fotopintura brasileira: D. Telma Saraiva. Ela, por conta dos afazeres domésticos, especializou-se em fotos de estúdio. Neste ramo, tornou-se uma das mais importantes do Ceará, tinha um olhar delicado e próprio, sabia captar os ângulos mais  bonitos e, não bastasse isso, dedicou-se , com afinco à fotopintura, onde retocava os retratos, os coloria ( antes do advento da foto colorida), tirava defeitos,  num primitivo e artesanal photoshop. No fundo, Telma era uma pintora que fotografava. E é incalculável o seu portentoso acervo fotográfico: não existe praticamente uma família tradicional do Cariri e arredores que não tenha sido clicada nas suas festividades de casamento, de batizado, de quinze anos, nascimentos, em pelo menos quatro gerações.

                        Pois bem, finalmente a boa notícia ! Com iniciativa da família Saraiva Leão-Rocha, do SESC, da Fecomércio, da Casa Grande, a Casa de D. Telma agora é um Museu onde se pode acompanhar a saga de uma família de artistas, no seu dia a dia e no seu cotidiano, mas, principalmente , imergir na evolução da Arte Fotográfica no Cariri nos últimos 90 anos.

                        Se o nosso Bar já não é o Ideal, ao menos nossa memória fica guardada em daguerreótipos , fotos e pinturas. Até quando o negativo da nossa cidade seja, por fim, um dia revelado e colorido por mãos delicadas como as de D. Telma . 

 

Crato, 19/11/2021

                           

3 comentários:

Unknown disse...

Que maravilha de texto !
Um negativo e um positivo retratam a história de nossa cidade.
OBRIGADA pela homenagens.

Unknown disse...

Que texto maravilhoso!

Unknown disse...

O prédio do Bar Ideal pertenceu a Ramiro Maia ( dono da livraria Mais ), sua filha Vera Lucia ficou muito triste com a descaracterização o prédio. Quanto ao Museu orgânico Telma Saraiva mostra a vida dos Saraiva Leão e Rocha. Obrigado Dr. José Flávio.