sexta-feira, 17 de setembro de 2021

O Anjo, o Mármore, o Cinzel

 



 

“Eu vi o anjo no mármore e esculpi até que o libertei.”
Michelangelo

 

                                               Vá lá uma notícia boa, em meio a tanto choro e ranger de dentes ! Até o próximo dia 30 de setembro acontece em Crato o Festival Sérvulo Esmeraldo 91. Promovido pelo Instituto Sérvulo Esmeraldo,  o Festival, agora na sua segunda edição,  tem se tornado uma grande festa da Arte no Cariri, envolvendo oficinas, webinários, palestras e uma monumental exposição com réplicas  das esculturas públicas e urbanas de Sérvulo, exposta no Largo da RFFSA e que estampa o expressivo nome: “O Crato no Mundo”.

                                    O largo da antiga estação de trem de Crato, inaugurada em 1926, não se escolheu por mero acaso para a Exposição temporária das obras do nosso artista. Ali, em 1954, um rapazinho de vinte e sete anos, pegou os trilhos e ganhou o mundo. Fortaleza, São Paulo, Paris... E ele mesmo dizia, referindo-se à cidade que mais amou na vida: do Crato saí um artista formado, nas outras cidades apenas apurei a técnica e o conhecimento. Na verdade, andando por Seca & Meca, Sérvulo nunca, artisticamente, se afastou um milímetro sequer da sua cidade natal: as curvas da sua arte são as da Chapada do Araripe, o traço da sua pintura se arrasta, serra abaixo, como o rio Itaytera. De todos os nossos artistas plásticos, Sérvulo foi o mais cratense . Aqui ele fez a sua primeira exposição no início dos anos 50 e , no Crato, também, ele escolheu para fazer a última delas, seu canto dos cisnes, em 2016.  O pintor pernambucano Cícero Dias, que fez um percurso parecido ao de Sérvulo, radicando-se em Paris, tinha uma frase famosa que, inclusive, depois, lhe serviu de epitáfio: “Eu conheci o mundo, ele começava no Recife”. O nosso Sérvulo Esmeraldo poderia  utilizar a mesma frase, trocando apenas o nome da sua cidade querida: “Eu conheci o mundo, ele começava no Crato”.

                                    Artisticamente, o mais bairrista dos nossos artistas carregava consigo a grande hiperatividade dos grandes mestres. Começou como gravurista e pintor, fugindo aos poucos do figurativo. Enveredou pelos movimentos de vanguarda europeus, abraçando a Arte Cinética, os Excitáveis, e um  geometrismo próprio e pessoal.  Aos poucos, a escultura se foi tornando preponderante no seu caminho e, de volta ao Brasil, nos anos 80, desenvolveu aquilo que pode ser considerado o apogeu da sua obra: as monumentais esculturas públicas urbanas. Sérvulo fez de Fortaleza um museu vivo a céu aberto, com incontáveis esculturas vultosas espalhadas por toda a cidade. São obras de encher a vista e que, rapidamente, se foram tornando parte íntima da paisagem urbana, como a Femme Bateau, o Interceptor Oceânico, as folhas que se desfolham do Jornal o povo, a do Banco do Nordeste, a sucessão de losangos da UFCE, os cones cinéticos defronte à Catedral de Fortaleza.

                                    A paixão desenfreada pelo Crato, mantida quase como obsessão por  tantos e tantos anos, não lhe foi correspondida. Algumas obras doadas por ele como “A Semente” para a entrada da  Expocrato, as Pirâmides, no alto do Seminário, estão dilapidadas e em processo de recuperação. Aqui, também, ao contrário do que acontece no mundo, Sérvulo é um ilustre desconhecido. Se até os nossos artistas mais tradicionais não conseguem profetizar na sua terra, imaginem os percalços de um vanguardista que, fisicamente, teve que levantar voo do seu ninho há quase 70 anos !

                                    O Festival Sérvulo Esmeraldo traz o menino de volta à sua terra. Há pouco ele desembarcou de volta na estação. Como no retorno do filho pródigo, esse é o momento do reencontro , de colocar as notícias em dia, de beijar os amigos e familiares e, principalmente, de conhecer e abraçar as novas gerações que foram brotando durante a ausência. Nada está perdido, depois de um longo e tenebroso inverno. Desfaçamos as teias de aranha do tempo, passemos o espanador nos bolores do guarda-roupas. Vamos refazer o álbum de fotografias, retocar algumas fotos desgastadas pelo tempo. No meio da pedra bruta que se tornou nossa cidade há um anjo residindo lá dentro, Sérvulo volta com o seu cinzel para libertá-lo.

 

Crato, 17/09/2021

2 comentários:

Unknown disse...

Excelente registro, são pessoas como você ZÉ Flávia que resgata a história da nossa cultura e do nosso artista popular, parabéns

Unknown disse...

Zé Flávio (corrigindo)