sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Vareta

 


Um amigo de balcão de bar já lhe tinha advertido, com aquela filosofia que, naturalmente, evaporava do copo de pinga: Coisa ruim, coisa que não presta estica mais que elástico em perna de menino, rende mais que chiclete em boca de  banguelo. Como aquilo poderia acontecer ? Extinguir-se , de repente, a mais pétrea instituição brasileira, o Carnaval de Rua ? Ele resistiu a tudo: às perseguições religiosas; ao laborismo desenfreado do Capital; ao olhar atravessado das elites que viam na subversão festeira , o gérmen da subversão social; à burocracia da política estatal aversa ao Anarquismo espontâneo da pândega momina. Pois uma das mais sólidas  organizações sociais do país, viu-se, de repente, atingida por um vírus. Vareta, um folião  empedernido , súbito, tornou-se um avião sem manche, um Reisado sem Jaraguá. Trabalhador braçal, mero servente de pedreiro, o Carnaval era-lhe como um toque do condão  da fada madrinha. Os dias duros e repetitivos aplacavam-se, o frevo fervia no seu corpo, inundava seus músculos e Vareta, esguio e lazarino como o próprio apelido indicava, vibrava como a lâmina de um serrote que se fazia de harpa, executando os velozes passos da Tesoura, do Parafuso, da Dobradiça. Naqueles cinco dias, Vareta, de simples peão, alçava-se às lonjuras  de bispos e de reis. O escravo saltava do seu navio negreiro e, ao menos temporariamente, tornava-se nobre e invadia as sedas palacianas. Claro, que como uma Cinderela, o encanto durava até as últimas badaladas da ingrata quarta-feira, mas de nada custava esperar ansiosamente o outro fevereiro.  

                                   Sentado numa calçada alta, no Largo do Amparo, Vareta contemplou, devastado, a paisagem destroçada. Os Bonecos Gigantes eram apenas miragens espectrais nas ruas desertas. Metais mudos, fantasias pilhadas , estandartes a meio pau. Como se a noite se tivesse desfeito para não receber o sorriso de manequim do Homem noctívago e  apressado o amanhecer para acabar coma madrugada do Galo. Os passos malarabísticos do frevo, repentinamente, se  viram paralisados no ar, como assoberbados por um frenesi congelante. A vida, a alegria, a felicidade  pareceram sufocados como pulmões em terapias intensivas.

                                   Vareta, desapontado , busca entender, como , de repente, Momo perdeu o seu reino e os dias  transformaram-se numa esticada e ingrata quarta-feira  que inundou a vida e as almas de cinzas. Uma vareta que se perdeu inútil de uma espingarda que já não existe, sem pólvora, sem chumbo, sem espoleta.

Crato, 05/02/21   

Nenhum comentário: