sexta-feira, 19 de junho de 2020

O São João Coroado



                                              
Os céus nebulosos , este ano, não terão o contraste luminoso de fogos de artifício cortando-lhes   o ventre,  no rasgo da noite. Estáticos, imersos num bronze morno, desfraldarão seu negro de luto, como um fumo na lapela. As lágrimas não mais se debulharão no firmamento, como em anos passados, multicoloridas e flamejantes: elas , agora, se transportarão aos olhos de quem as procura, no caminho das estrelas. Balões, como ícaros depenados,  verão derreterem-se as asas e hão de tombar por terra seus devaneios e planos de voo.   As lâminas de aço não perfurarão as bananeiras em busca visionária do futuro, hoje que o presente é senhor de todo enigma e todo mistério. Para o gáudio dos cães, bombas silenciarão, contritas, como que respeitando minutos de silêncio, pelos muitos abatidos e incontáveis aflitos. Batatas não mais emergirão das cinzas das fogueiras no dia vindouro: elas quentes, postam-se abrasadoras, nas mãos de todos os viventes.  
                                   Os terreiros estarão vazios. As bandeirolas vir-se-ão substituídas pelas roupas estendidas nos varais, cônscias de sua insignificância, quando a visibilidade viu cair por terra sua magnitude. A pinga e os quentões , anestésicos do cotidiano duro e magmático, perderam seu poder curativo: é que a alegria e a felicidade fluem dos moinhos interiores, mas só podem ser degustados, no seu inigualável sabor,  se partilhados por outras almas, em banquetes coletivos. O milho verde, o amendoim, o bolo de puba, a canjica, a pamonha ... estarão confinados, como seus apreciadores, em salas insulsas. Alijadas das mesas  retangulares e compridas, do bulício dos terreiros, perderão sua força gustativa , sempre potencializada pelo clima da amizade e  alegria partilhadas. As mãos já não se tocarão nos “En avant Tous”  das quadrilhas, estarão todas  “En Arrière” . Os pares, impulsionados por um infinito “Peri-Contraperi” do tempo,  não mais se encontrarão , condenados a uma solidão franca e desalentadora.
                                   O São João vê extraviar-se o seu carneirinho. Cai-lhe, sobre a cabeça, uma coroa multipontiaguda e insana. Instala-se o soturno reino do São João Coroado. Que seja efêmero o seu reinado ! Impossibilitados de atear as fogueiras no terreiros, façamo-las arder na nossa alma! Escancaremos nossos vestíbulos interiores para a festa ! Que o mundo todo se inflame com nossas chamas, de casa em casa, de espírito em espírito, untando a força higienizadora do fogo à  capacidade de iluminar os novos tempos que já se anunciam, para lá das planícies onde pasta o manso carneirinho de São João.

Crato, 19/06/20

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