sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Assim na terra como no céu...


Onevaldo Castriciano  era um jumento de lote. Cabra de uma virilidade invejável, desses de fazer inveja a galo de briga. Fogoso, lépido, espalhou rebentos pelas redondezas de Matozinho com um furor quase bíblico. Lia apenas os versículos do “Crescei e Multiplicai”.  Em tempos ainda livres da pensão alimentícia e dos testes de paternidade, Onevaldo se espalhou como pinto no monturo. Um dia, porém, já adentrado na meia idade, enrabichou-se por  Adeilde, uma mocinha pobre de recursos mas rica de fundos. Onevaldo acerou, jogou o landuá de malha fina, mas Adeilde resistiu, fez-se de difícil e desinteressada, escapou das laçadas do pretendente, até porque sabia de cor os detalhes da sua folha corrida. As investidas sem efeito de Onevaldo terminaram por leva-lo às fronteiras do desespero. Lançou, então, aquela que parecia ser sua última cartada, procurou os pais de Adeilde e propôs um casamento. No primeiro momento, ela manteve-se intransigente. A diferença de idade era muito grande e a mocinha já tinha um namorico com Jobertino do Pé-de-Bode, um músico da sua idade e que andava animando sambas nos pés de serra de Matozinho. Os pais de Adeilde, no entanto, fizeram a sua parte: mostraram à filha a oportunidade de ascensão na vida, já que Onevaldo parecia um sagui com cólica menstrual , mas tinha um comerciozinho na vila e umas nesgas de terra e, ao menos, na bitola e na trena de Matozinho era um sujeito pra lá de remediado. O certo é que o pragmatismo terminou por vencer  o sentimento: Castriciano e Adeilde subiram ao altar.

                                   Depois de trocarem as alianças, o antigo jumento de lote, consertou-se. Onevaldo, diziam os amigos, virou um ferrolho: sempre entrava no mesmo buraco. A virilidade do homem, porém, apenas adquiriu uma exclusividade. O casal era diarista, chovesse ou fizesse sol, morresse parente ou doença atacasse, o poço estivesse cheio ou rios vermelhos fluíssem,  não tinha desculpa: todo dia era dia de índio.  E a frequência milimétrica das atividades de alcova terminou por medrar uma récua de filhos, na regularidade de quase um a cada ano: vinte e um caboclinhos, até um dia quando Adeilde , por fim, viu cair a postura.
                                   No princípio, o fogo na cama de  vara trouxe uma alegria incontida à noiva. Contava os feitos às amigas, muitas delas esvaindo-se de inveja,  e agradecia aos céus pela pujança do marido, pelo vigor e, também, a certeza de que incendiando as noites em casa, não tinha condições físicas de acender outras coivaras. O tempo, no entanto, fez com que o que parecia vantagem, aos pouco se fosse transformando em suplício. Depois da menopausa, o vigor e a vontade de Adeilde já não eram os mesmos. Filhos e netos circulando na casa que ficou pequena.  Começaram a aparecer os reumatismos, as securas, o apocalipse da geografia corporal, as preocupações. Castriciano, no entanto, parecia envernizado.  Não queria saber de desculpa, de conversa, de queixas, todo  dia: pau na moleira. Já perto dos oitenta, parecia o mesmo jovem que D. Adeilde conhecera nos tempos do cerca-lourenço.  Mesmo quando ela precisou tratar um câncer que lhe tomou parte do pescoço e que a fazia aparecer sempre com um cachecol amarrado no gogó, fazendo tratamento com drogas que ela tinha a certeza tinham sido prescritas pelo satanás, nem assim, queixava-se ela às amigas, nem assim Onevaldo largava do pé.
                                   Um dia, como era previsível, o garanhão  sucumbiu. Saíra para Matozinho, fazer umas compras, e, sabe-se lá como, caiu do cavalo e deu com a cabeça num tronco de timbaúba. A cidade parecia que ia descer também à cova com Castriciano. Todos lamentaram a queda daquela madeira de lei, um varão bíblico, orgulho da masculinidade da vila. Adeilde, passado o choque, viu-se tocando as migalhas da vida que lhe sobrara. Deixava transparecer um certo alívio, agora que haviam interrompido seu destino de Sísifo. Mesmo assim, contava às eternas amigas, que não raro acordava à noite, num pesadelo terrível, com a alma de Castriciano bolinando-a e querendo fazer escandelo.
                                   Há alguns dias, chegou a vez de Adeilde, por fim, ajustar as contas com o criador. O tumor do pescoço arrebentou novamente e, depois de dias de sangramento, dor e agruras, arrodeada de filhos e netos,  ela foi juntar-se a Onevaldo, nas paragens celestes. Aleluia, o almejado descanso eterno -- pensaram as amigas, próximo ao caixão.
                                   No dia seguinte, as colegas de tantos e tantos anos acompanharam Adeilde à sua derradeira morada. Lá os coveiros tiraram a tampa do túmulo da família. Era pequeno , meio apertado e, dentro, já estava o féretro de Castriciano que ali chegara cinco anos antes. Rápido os profissionais notaram que não cabiam os dois caixões no mesmo túmulo. O espaço interior era exíguo. Tiraram, então, aquele envelope onde estava o marido e colocaram  o esquife da nova ocupante da casa: Adeilde. Eliminaram, então, os restos do esquife de Onevaldo e , cuidadosamente, puseram os seus ossos por cima do caixão de Adeilde: única maneira de caber os dois restos mortais no mesmo espaço. Em meio a choro e ranger de dentes de muitos filhos, netos e bisnetos, os coveiros fecharam o jazigo. O casal estava, novamente, reunido agora pera sempre.
                                   As amigas de Adeilde, enquanto enxugavam as lágrimas, usaram também os lenços para conter os risos, pensando baixinho, enquanto viam colocar os ossos de Onevaldo por cima do caixão da colega.
                                   --- Mas menino, assim na terra como no céu, já dizia o Pai Nosso ! Descanso eterno que nada !  Castriciano já tá por cima, de novo ! O Sem-vergonha não deixa a mania !

11/10/19

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