sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Chuteiras dependuradas


                               A mocinha do Ministério da Saúde me mandou, pela manhã,  a cópia do Diário Oficial com a portaria da minha aposentadoria. Tinha solicitado já há uns oito meses. Vinha trabalhando no antigo SAMDU aqui do Crato desde os anos oitenta. Protelara um pouco o pedido até perceber , que pelos novos caminhos trabalhistas, só conseguiria pendurar as chuteiras daqui a uma três encarnações. Diante da fotinha da portaria assaltaram-me duas sensações díspares e antagônicas: uma de alegria e de um certo alívio depois de tantos e tantos anos no batente e, do outro lado da esquina, um certo abatimento, um blues, uma capionguice. Serei agora apenas um objeto de decoração da casa, um animador de neto, o velho da cadeira do papai e do pijama de bolinha ? Lembrei-me, imediatamente,  de uma história da minha infância. O Padre Vieira, quando pároco de Icó, criava um macaco e um dia resolveu dar um picolé ao bichinho. O símio de posse da iguaria gelada corria toda a jaula, alternando o picolé de uma mão para a outra, enquanto o chupava. Grunhia como um louco, mas não soltava de jeito nenhum a pedra de gelo adocicada. Cá estava eu igualzinho ao macaquinho do padre: nem aguentava a frieza nas mãos, nem queria soltar o picolé.


                                   Depois de mais de  quarenta anos no ofício, contabilizando sucessos e insucessos, sinto-me, sinceramente, um privilegiado. Terminada minha formação, quis voltar para  a terra que me fez ver a luz. Aqui me firmei, exerço desde então meu ofício diuturnamente, dentro das limitações intelectuais que a natureza me proporcionou. Nunca quis ser um médico fiota, cheio de riquififes e quipropós , oferecendo minha arte apenas ao segmento mais rico da população. Trabalhei  nos postos de saúde do estado , do município e do Ministério da Saúde. Fui plantonista em hospitais por mais de três décadas, diretor hospitalar e gestor de cooperativa médica. Fiz, também, ativamente, política de saúde, como membro do Conselho Regional de Medicina, do Centro Médico Cearense e do Conselho Regional de Medicina e, ainda, fiz-me conselheiro municipal de saúde por mais de quinze anos. Aprendi com Foucauld que a primeira tarefa do médico é política e que a luta contra a doença deve começar pelo combate incessante aos maus governantes. Tornei-me especialista em atividades sem remuneração.  Percebo que as chuteiras já estão gastas pela intensidade do jogo, mas causa uma certa angústia o simples movimento de levá-las até ao armador.   
                                   No fundo, bate-me na alma  a sensação de uma página de livro que virou, para um capítulo futuro de que não se sabe o script ou  sabe-se  e, por isso mesmo, se teme. Como se , de repente, fôssemos atirados a um canto do quintal como uma garrafa pet vazia ou uma quenga de coco.  Sabemos que dificilmente médico se aposenta, só quando o destino resolve transformá-lo em mero e exclusivo paciente.  Mais de 70% dos profissionais  com mais de sessenta anos estão em plena atividade no Brasil.
                                   Fechadas algumas portas , abro algumas goteiras no meu telhado para , sol a pino, entrarem algumas réstias pela casa. Continuarei na profissão até quando o bisturi continuar afiado e   os desígnios da natureza me permitirem. Vou driblando  os cacos de vidro e quebra-pés  que a vida espalhou ao longo do caminho. Terei mais tempo para escrever e para ler, dizem os amigos, mas sei, perfeitamente, que é o contato com as pessoas no consultório e na rua que alimenta minha pena e minha sensibilidade. No fundo, sou um mero médico de aldeia, um discípulo desgarrado de Hipócrates e de Paré . Sempre acreditei que tudo que fazemos, mais que mera e fria ciência, tem os mistérios  e os  encantamentos  da  arte do pajé, do jesuíta e do feiticeiro. O Raio X, o estetoscópio, o tensiômetro são simples acólitos no nosso trabalho de ilusionismo. A magia está no toque, no encontro de uma alma com outra alma. Espero, assim,  que minhas chuteiras abandonadas , cobertas pelo limo dos dias, terminem por deixar  florescer algumas flores outonais.   
                                   Barco no mar, arreio  um pouco as velas  para os tempos de tormenta.  Um dia, em meio à névoa,  virá o iceberg, mas tudo terá valido a pena : pelos companheiros de viagem,  pela travessia sinuosa, pelo bailado da piracema,  pelo verde esperançoso das águas, pelo esplendor dos crepúsculos e dos arrebóis.    

Crato, 31 de Julho de 2019

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