sexta-feira, 31 de março de 2017

Sapato Novo


J. Flávio Vieira


                                               Se há um troço difícil de calçar na vida de um homem é a tal da aposentadoria. São poucas as vezes em que o novo pisante  não se apresenta grande ou pequeno demais no pé do antigo trabalhador : geralmente começa a fazer calo, a criar bolhas, levando muitas vezes à total inadequabilidade. As mulheres , por outro lado, mais facilmente incorporam essa nova fase da vida. Mais afeitas , historicamente, às labutas da casa, voltam a se interessar pelos afazeres do dia a dia, investem sua atenção nos netos e, mais sociáveis do que os marmanjos, participam de atividades lúdicas próprias à terceira idade e, com tempo disponível, mergulham em excursões , viagens, com amigas da mesma geração. Mais espiritualizadas, na sua maioria, voltam-se para atividades religiosas e caritativas. Já os homens, coitados, não têm nenhuma serventia em casa. Quando se metem a ajudar nas atividades do lar, quase sempre é uma tragédia. Brigam com os funcionários, com os filhos e com a patroa. São , rapidamente, enxotados de casa, antes que as secretárias peçam demissão e a mulher o divórcio. Buscam então guarida nas únicas entidades que acolhem outros aposentados e  os suportam : os bares e as rodinhas de praça.
                                   Aqui em Crato, as rodinhas se organizam , naturalmente, por castas sociais. Nada de preconceito, apenas os assuntos de natureza comum apresentam-se bem diferentes. Os mais abastados, se reúnem na calçada da Farmácia Gentil que terminou sendo apelidada de Senado , tanto por conta dos respeitáveis frequentadores, como, talvez, por conta de a própria rua carregar o nome de um Senador : Pompeu. A classe média, em geral, se congrega na  Praça Siqueira Campos, que poderia até ser apelidada de Câmara dos Deputados. Já os velhinhos mais simples montam rodinha na Praça da Sé, que pode ser considerada nossa outra Câmara de Vereadores.  Ali corre sempre uma pauta do dia, com assuntos que se estendem desde a questões políticas municipais, estaduais e nacionais; aos embates desportivos;  até às fofocas, ao disse-que-disse, ao quem-com-quem. Invariavelmente, com olhos untados de um passado longínquo, todos se escandalizam com os rumos que vão tomando os costumes modernos e a conclusão final é única :
 --- No nosso tempo ? Ah! no nosso tempo, sim ! Naquele tempo tinha vergonha, tinha regra ! Não era essa esculhambação, não !  Era muito melhor!
                                   Esta semana , nossa Câmara de Vereadores , na praça da Sé, discutia a aprovação da Terceirização Irrestrita pelo Congresso Nacional. O mesmo assunto se colocado em pauta, no Senado, certamente, teria mais defensores, uma vez que engloba mais figuras do patronato cratense. Ali, no entanto, com a nossa Câmara constituída mais de barnabés aposentados, a grita era geral. Rasgaram a CLT ! -- rosnavam alguns ;  Revogaram a Lei Áurea ! --- completavam, indignados,  outros. Foi quando pediu a palavra o velho Filúvio Candéia. Comedido, voz pausada, Filúvio, já beirando os noventa, fora Caixa no antigo Banco Cariri. Ele, então, soltou uma apreciação que havia escapado à maior parte dos vereadores ali da Praça da Sé.
                                   Segundo Filúvio, a votação da última semana, firmando a Terceirização Irrestrita do Trabalho, tinha sido apenas a culminância de um processo que já se vinha arrastando há muitos e muitos anos.
                               --- Os pais , hoje, geram os filhos e os entregam às babás, à TV, às academias e aos professores para os criarem. Simplesmente porque mergulhados no mercado de trabalho para sobreviver, não têm mais tempo para nada. Terceirizaram a criação dos meninos !  Se vocês repararem direitinho quase mais ninguém faz as refeições em casa, principalmente nas capitais. Terceirizamos a cozinha há muito tempo !  Os supermercados substituíram as feiras livres; a Internet  tomou de conta  do balcão das lojas . Tudo terceirizado ! A juventude fugiu das igrejas e montou seu templo nos Shopping Center, é só vocês observarem bem! Terceirização da religiosidade ! Os matutos trocaram os jumentos e os burros pelas motos! Terceirizaram o transporte !  E na política , nem é bom comentar ! Esse presidente que tá aí? Ganhou eleição ? Teve voto? Foi também terceirizado, meu povo! E nós, também, pobres eleitores do país, colocamos no Congresso uma laia de ladrões e corruptos que envergonha até mesmo os traficantes do morros do Rio de Janeiro ! O que fizemos ? Terceirizamos nossa dignidade e nossa cidadania! E não ficou só nisso não, meus amigos, completou Filúvio para uma plateia atenta e sem resposta. Até no amor, meus amigos, até no amor  ! Semana passada, Beroaldo, um amigo meu que mora na Bréa, aqui no Crato, ao voltar do trabalho, deu com a esposa pelada deitada na cama do casal, com o vizinho. Exasperado, furioso, quis saber o que aquilo significava.

---- O que isso significa, Marilu ? É ponta, é galha, é? Desgraçada !

                        Marilu, com olhos lânguidos , o fez compreender que viviam em novos tempos bem temerosos:

--- Né nada não, Beró ! Fica peixe ! Terceirizei !


Crato, 31/03/2017

sexta-feira, 24 de março de 2017

Coisa de louco !

COISA DE LOUCO !

J. Flávio Vieira


                “O limite extremo da sensatez é o que o público batiza de loucura.”
                                                                                                                                      Jean Cocteau

                               A Fundação Nacional de Saúde foi criada em 1990, depois da nova Constituição Brasileira ser promulgada. Ela unificou as ações  das antigas Fundação SESP e  da SUCAM. As duas instituições tinham uma esplêndida folha corrida  de trabalhos prestados à Saúde Preventiva no Brasil. Brotaram, na primeira década do Século XX, quando, no país, começamos a nos preocupar na prevenção das epidemias que tinham dizimado a população brasileira nos séculos anteriores. A FUNASA, assim, detém a mais contínua e centenária ação na engenharia da saúde pública brasileira. Eles mapearam, criteriosamente, toda  a nação , casa por casa, habitante por habitante, muito antes de chegarem os Programas Saúde da Família. Investiam-se na precípua função de controlar e monitorar , prevenir e tratar,  em todo território pátrio, endemias seculares como: Doença de Chagas, Febre Amarela, peste Bubônica, Esquistossomose, Tracoma, Leishmaniose.
                        Com o advento do Sistema Único de Saúde, a instituição terminou sendo municipalizada, entregue à direção das Secretarias de Saúde,  tantas e tantas vezes despreparadas e descompromissadas  e, aos poucos, fomos jogando na lata do lixo, um trabalho profícuo e centenário, tecido por muitas gerações de profissionais brasileiros.  Permitimos, irresponsavelmente,  com que se perdesse a mais vitoriosa experiência  de promoção e prevenção de saúde de que se tem notícia em nossa história. Agora, com o recrudescimento da Febre Amarela, em vários estados do Sudeste, da Zyca, da Chikugunya, da Dengue, percebemos a tragédia que, intencionalmente, terminamos por plantar.
                                   As novas gerações de profissionais de saúde, na sua maioria, encontram-se umbilicalmente ligados à Terapêutica, a um modelo hospitalocêntrico de Saúde. Ficaram nos livros de história, apenas, a dedicação de um Oswaldo Cruz, de um Carlos Chagas, de um Adolfo Lutz. Simplesmente porque assim são formados. Com a proliferação das Faculdades particulares e os cursos caríssimos, formam-se para tratar quem lhes possa pagar. Às vezes até se submetem, sem preparo maior, a atender em algum PSF, mas apenas enquanto fazem um pé de meia para se super-especializarem. As vocações são impulsionadas pelo mercado, escolhem-se aquelas áreas, que naquele momento mais renda possam retornar e com mais qualidade de vida. Foi-se o tempo dos visionários e dos sacerdotes ! A medicina Preventiva continua a ser o patinho feio da medicina  brasileira e sem nenhuma possibilidade de um dia se descobrir cisne.
                                   Medidas intempestivas como a desarticulação criminosa e abrupta da FUNASA e o consequente impulso no reaparecimento das endemias e epidemias parece que não nos têm trazido maiores lições. Recentemente, alguma coisa parecida aconteceu com a Assistência Psiquiátrica. Submetemos os nossos frenocômios a um processo programado de inanição. A Reforma Psiquiátrica, claro, era uma necessidade premente no país que criara verdadeiros campos de concentração de insanos, com a única e histórica função de os isolar da sociedade e dos familiares.
                                   Aqui em Crato, tivemos o fechamento recente do Hospital Santa Tereza que atendia pacientes de inúmeros estados e cidades circunvizinhas. A Reforma previa  a imperiosa criação de uma rede ambulatorial de atendimento : com Hospital Dia, CAPS e áreas para internamentos de pacientes psiquiátricos, nos seus surtos, em hospitais gerais da região.  Mais uma vez a batata quente foi jogada nas mãos do município. O final não podia ser mais previsível. Os nossos hospitais gerais não têm qualquer capacidade e treinamento para internar pacientes psiquiátricos. Paciente surtou, a família e os vizinhos chamam a polícia que o prende. Uma questão de saúde se transforma, como em séculos passados, num mero problema carcerário. Esta semana o CAPS, aqui em Crato não tinha formulário de medicação especial controlada, e os pacientes perambulavam, de Centro em Centro de Saúde, mendigando uma folhinha de formulário, impossibilitados que estavam até de poder comprar, até do próprio bolso, as medicações sujeitas a Controle pela Vigilância Sanitária. E nem é necessário falar na falta crônica de medicamentos psiquiátricos básicos só conseguidos, muitas vezes, com judicialização. Como sempre, sofre mais a população mais pobre, sem posses, sem medicamentos acessíveis e conhecimento para procurar os meios legais que lhes possam fazer valer seus direitos constitucionais.
                                   Olhando o caos na Assistência Psiquiátrica em que vivemos em muitas cidades do país, com pacientes perambulando no meio da rua, sujeitos ao bulling contínuo da população; com loucos nos surtos sendo trancados em jaulas, no fundo do quintal, em cárceres privados; com os presídios tendo que fazer as vezes de manicômios; observando uma calamidade destas vem-nos sempre a pergunta : quem são os loucos e quem são os normais nesta sociedade que se pretende moderna ?

Crato, 24/03/2017