sexta-feira, 24 de março de 2017

Coisa de louco !

COISA DE LOUCO !

J. Flávio Vieira


                “O limite extremo da sensatez é o que o público batiza de loucura.”
                                                                                                                                      Jean Cocteau

                               A Fundação Nacional de Saúde foi criada em 1990, depois da nova Constituição Brasileira ser promulgada. Ela unificou as ações  das antigas Fundação SESP e  da SUCAM. As duas instituições tinham uma esplêndida folha corrida  de trabalhos prestados à Saúde Preventiva no Brasil. Brotaram, na primeira década do Século XX, quando, no país, começamos a nos preocupar na prevenção das epidemias que tinham dizimado a população brasileira nos séculos anteriores. A FUNASA, assim, detém a mais contínua e centenária ação na engenharia da saúde pública brasileira. Eles mapearam, criteriosamente, toda  a nação , casa por casa, habitante por habitante, muito antes de chegarem os Programas Saúde da Família. Investiam-se na precípua função de controlar e monitorar , prevenir e tratar,  em todo território pátrio, endemias seculares como: Doença de Chagas, Febre Amarela, peste Bubônica, Esquistossomose, Tracoma, Leishmaniose.
                        Com o advento do Sistema Único de Saúde, a instituição terminou sendo municipalizada, entregue à direção das Secretarias de Saúde,  tantas e tantas vezes despreparadas e descompromissadas  e, aos poucos, fomos jogando na lata do lixo, um trabalho profícuo e centenário, tecido por muitas gerações de profissionais brasileiros.  Permitimos, irresponsavelmente,  com que se perdesse a mais vitoriosa experiência  de promoção e prevenção de saúde de que se tem notícia em nossa história. Agora, com o recrudescimento da Febre Amarela, em vários estados do Sudeste, da Zyca, da Chikugunya, da Dengue, percebemos a tragédia que, intencionalmente, terminamos por plantar.
                                   As novas gerações de profissionais de saúde, na sua maioria, encontram-se umbilicalmente ligados à Terapêutica, a um modelo hospitalocêntrico de Saúde. Ficaram nos livros de história, apenas, a dedicação de um Oswaldo Cruz, de um Carlos Chagas, de um Adolfo Lutz. Simplesmente porque assim são formados. Com a proliferação das Faculdades particulares e os cursos caríssimos, formam-se para tratar quem lhes possa pagar. Às vezes até se submetem, sem preparo maior, a atender em algum PSF, mas apenas enquanto fazem um pé de meia para se super-especializarem. As vocações são impulsionadas pelo mercado, escolhem-se aquelas áreas, que naquele momento mais renda possam retornar e com mais qualidade de vida. Foi-se o tempo dos visionários e dos sacerdotes ! A medicina Preventiva continua a ser o patinho feio da medicina  brasileira e sem nenhuma possibilidade de um dia se descobrir cisne.
                                   Medidas intempestivas como a desarticulação criminosa e abrupta da FUNASA e o consequente impulso no reaparecimento das endemias e epidemias parece que não nos têm trazido maiores lições. Recentemente, alguma coisa parecida aconteceu com a Assistência Psiquiátrica. Submetemos os nossos frenocômios a um processo programado de inanição. A Reforma Psiquiátrica, claro, era uma necessidade premente no país que criara verdadeiros campos de concentração de insanos, com a única e histórica função de os isolar da sociedade e dos familiares.
                                   Aqui em Crato, tivemos o fechamento recente do Hospital Santa Tereza que atendia pacientes de inúmeros estados e cidades circunvizinhas. A Reforma previa  a imperiosa criação de uma rede ambulatorial de atendimento : com Hospital Dia, CAPS e áreas para internamentos de pacientes psiquiátricos, nos seus surtos, em hospitais gerais da região.  Mais uma vez a batata quente foi jogada nas mãos do município. O final não podia ser mais previsível. Os nossos hospitais gerais não têm qualquer capacidade e treinamento para internar pacientes psiquiátricos. Paciente surtou, a família e os vizinhos chamam a polícia que o prende. Uma questão de saúde se transforma, como em séculos passados, num mero problema carcerário. Esta semana o CAPS, aqui em Crato não tinha formulário de medicação especial controlada, e os pacientes perambulavam, de Centro em Centro de Saúde, mendigando uma folhinha de formulário, impossibilitados que estavam até de poder comprar, até do próprio bolso, as medicações sujeitas a Controle pela Vigilância Sanitária. E nem é necessário falar na falta crônica de medicamentos psiquiátricos básicos só conseguidos, muitas vezes, com judicialização. Como sempre, sofre mais a população mais pobre, sem posses, sem medicamentos acessíveis e conhecimento para procurar os meios legais que lhes possam fazer valer seus direitos constitucionais.
                                   Olhando o caos na Assistência Psiquiátrica em que vivemos em muitas cidades do país, com pacientes perambulando no meio da rua, sujeitos ao bulling contínuo da população; com loucos nos surtos sendo trancados em jaulas, no fundo do quintal, em cárceres privados; com os presídios tendo que fazer as vezes de manicômios; observando uma calamidade destas vem-nos sempre a pergunta : quem são os loucos e quem são os normais nesta sociedade que se pretende moderna ?

Crato, 24/03/2017   

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