sexta-feira, 12 de abril de 2013

Pilates



 Pilatos perguntou: Que farei então de Jesus, que é chamado o
Cristo? Todos responderam: Seja crucificado!
 O governador tornou a perguntar: Mas que mal fez ele? E gritavam
ainda mais forte: Seja crucificado!
Pilatos viu que nada adiantava, mas que, ao contrário, o tumulto
crescia. Fez com que lhe trouxessem água, lavou as mãos diante do
povo e disse: Sou inocente do sangue deste homem. Isto é lá convosco!
Mateus 27: 22-24


                                   François não se abalou muito quando a notícia chegou subitamente à Delegacia , trazida por um desses meganhas de plantão. Assumindo aquele cargo há mais de dez anos, já se acostumara com o cheiro forte de sangue, correndo e fervendo pelo asfalto quente, em feitio de chouriço. Se os homens carregavam consigo um anjo e um demônio, ali , naquela seccional do inferno, não dava para perceber a face angelical. Viera substituindo o delegado anterior , aquele que tivera uma administração eivada de denúncias múltiplas : roubo, cumplicidade com o crime organizado, tortura de prisioneiros, vistas grossas para prostituição de menores, preconceito nas ações repressivas . Possivelmente fora escolhido não pelo histórico favorável de pureza e lhaneza de trato. François carregava consigo o mesmo pecado original : durão, não poucas vezes julgara pretensos bandidos à pena de morte e executara a penalidade sem nenhum remorso. Comparava sua função a de um urubu : “Temos que comer a  carniça e livrar a sociedade do mal cheiro! Mesmo assim todos vão ter nojo de nós !” Nosso Delegado tinha uma qualidade que o fazia bastante singular. Era tranqüilo,  transparecia uma aparente  calma budista, educação e segurança e possuía grande traquejo no trato com a mídia. Seus superiores tinham, em mãos, o candidato ideal : um esgotador de fossa séptica que conseguia não se imantar de qualquer cheiro pútrido.
                                   A chegada do samango, meio aflito, naquela tarde de sexta feira, não o tirou do sério. Com palavras que quase se abalroavam umas nas outras, contou o ocorrido. Estava havendo um grande B.O. , naquele momento, no centro da cidade. Um adolescente furtara um celular de uma vitrine e saíra em desabalada carreira. Várias pessoas presenciaram o ocorrido , firmaram trincheira e se puseram , na perseguição do menor. Cercaram-no na praça principal da cidade. O soldado tentara conter a turba, mas sozinho, corria o risco de entrar no pau, também. Viera então pedir ajuda ao Delegado para juntar contingente e evitar o pior.
                                   François levantou-se sem atropelo. Estranhamente, chamou apenas o seu subordinado e partiram céleres para praça, a apenas uns cem metros da Delegacia. Poderia ter arregimentado outros soldados, mas preferiu enfrentar a questão sozinho. Em lá chegando, deu de frente com os preparativos do massacre. No chão, um menino todo ensangüentado, olhos injetados de terror. Ao derredor,  a turba enfurecida , incontrolável, a espezinhar e chutar seguidamente o rapazinho. François tomou a frente e pediu calma que a justiça estava ali representada. A multidão, porém, como um estouro da boiada , não lhe deu ouvidos. O delegado estava armado e ainda pensou em dar um tiro para cima para amedrontar os circunstantes. Mas depois ponderou consigo mesmo : tinha que respeitar a democracia, a maioria sempre tem razão, não é mesmo ? Ademais, não existe crime possível cometido por tantas pessoas ajuntadas. Ele, por outro lado, fizera já a sua parte, bem que tentara, mas não conseguira evitar , né ?  Nisso , um paralelepípedo foi arremessada na cabeça do pobre infrator , como um golpe de misericórdia. O sangue espirrou . Algumas gotas terminaram por tingir a roupa e os braços do delegado. Ele saiu, calmamente, e lavou as mãos na fonte da praça. Saiu conformado. Bem que tentara ! Alguma coisa porém travava o seu peito, como se tivesse ali uma porta de ferro com tramela.
                        À tarde, deu uma esmola de dez reais a um mendigo que o estendera a mão na rua.  Saiu leve e reconfortado. Não fizera nada, afinal ! Fora apenas um mero espectador. Sou uma pessoa simples e caridosa , pensou com seu cassetete,  preenchendo um silêncio esquisito que ecoava de dentro da alma. Entrou na academia e foi fazer Pilates !

J. Flávio Vieira

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