terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Anatomia



ANATOMIA



Formol saturante na atmosfera
Ruídos metálicos arrítmicos
Albor de batas numerosas no acromatismo da sala comum
Burburinho de vozes em borbotões descompassados
Movimento quase Browniano de pessoas indo e retornando
Dínamo da curiosidade
No meio da sala seu corpo contrastante
Seu silêncio passível em meio ao bulício
Seu sedentarismo ante todo motus
Sua pele enegrecida e a alvura das batas
Suas feições de terror ante os sorrisos brotos nos lábios dos anlunos
Sue rigidez frente à versatilidade do ambiente
Ante tudo e todos, você se individualiza, Denise
Sua boca rija, escancarada
Como querendo aspirar a vida
Prender , inutilmente,  o último suspiro que te lhe escapou
O hífen que lhe unia ao mundo
Ou – quem sabe?—desejando gritar por seus pulmões carcomidos
Gritar contra a vida madrasta
Um protesto contra a sorte ingrata
Que tudo lhe negou na vida e tudo lhe negaria na morte
Ou bradar, bradar simplesmente,
Recebendo a morte num ósculo,
A morte-vida
A morte inútil pra você que já morrera há muito e muito
Com seus sonhos
                        Com suas ilusões
Parece que leio
No ciclopismo do seu olho único
A última imagem garvada por sua baça retina:
Uma cama de ferro
Sem um parente a seu lado que lhe reclamasse o corpo
Um aderente que transpirasse uma lágrima
Um gemido estrangulado
Numa saudade e tristeza --- momentâneas que fossem
Quem sabe, sem uma enfermeira sequer
Sem um sacerdote que lhe imprimisse uma esperança
Um desengano acrescido
Que diria, Denise que você morta
Seu corpo frágil iria servir tanto
Justamente àqueles que em nada lhe serviram em vida ?
Que seu corpo perduraria sobre a terra
Como para compensar o tão pouco que você viveu...
Que você morta viveria bem mais, ao menos
Que ricaços
                        Senadores
                                               Presidentes
Que vivem sempre --- como sempre --- enquanto a carne vive ?
E não é ela tudo ?
Com a morte dela se morre totalmente
Você ainda vive,  Denise
Não para a maioria das pessoas
Para quem você é apenas um instrumento
Para dissecar
                        Cortar
                                               Esfacelar
Apenas um corpo como que de fibra sintética
Um amontoado de peças sem individualidade
Para estudar e receber algumas lágrimas
Provocadas pelo formol ativo
Para eles você é apenas um número – o 250 !

Sem nome
                        Sem vida
                                               Sem passado
Mas para mim, você vive , Denise
No seu corpo caquético
Desnudo
Sem preceitos nem preconceitos
Vejo mais que os outros vêem
A cada artéria daquelas
Descobertas pelo bisturi agudo, intransigente
Vejo mais que um simples nome didático
Imagino o quanto de sangue ali correu
A seiva da sua vida
No seu coração
Mais que um órgão com faces, bordas e pólos
No seu cérebro
Mais que circunvoluções, girus, lobus
Construo o quanto ali se reproduziu
Sua vivacidade
                  Suas palavras
                                     Suas emoções
                                                           Seus risos
                                                                            Suas tristezas
                                                                                                Suas superstições
Seu desengano e revolta quando a entropia já era enorme
Vejo um órgão, o pico da evolução
O mais sublime que o universo em milhões de anos conseguiu alcançar
Jogado a um lado, como uma pedra
E, pior, que não entendem
Não imaginam
O que foi você
Você vive, momentaneamente que seja, mas vive
Que importa hoje ou amanhã lhe destinem finalmente
À vala ?
Em mim sempre ficará a marca,
                        A cicatriz
                                               O gilvaz
Daquilo ( para os outros restos, pedaços sem individualidade)
Que foram seus malbaratados sonhos
Sua esperança
Sua fé na felicidade inexistente
Sua desgraça
Seu sofrimento
Daquilo tudo que certamente foi e é você : Denise !

Recife/ 1972

( Versos guardados com cuidados quase paleontológicos pela colega Maria do Carmo Fonseca Gomes (Carminha)  e exumados, 40 anos depois, na Festa de 35 Anos de Formados dos Médicos da UFPE/1977)




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