quinta-feira, 14 de junho de 2012

A Bola e a Bóia



                                   Há quem considere a Crônica um gênero literário menor. Talvez, comparando com o Conto, o Romance, o Ensaio, a Poesia, não tenha ela o mesmo charme e a mesma fama .  Desconfio, no entanto, que esta opinião advém da volatilidade maior do estilo: ligada geralmente aos fatos mais corriqueiros e cotidianos , possui uma permanência mais etérea. O texto publicado no jornal,  hoje, amanhã já está, muito provavelmente, limpando as vidraças da sala. Trabalhar com esta impermanência , tecendo o bordado numa ponta, enquanto o tempo desfaz o fio do outro lado, parece-me  uma coisa mágica e remete quase que imediatamente à efemeridade da vida: matéria prima de todos os gêneros literários. E não são poucos os grandes escritores que soçobram ante os mistérios da Crônica; faltam-lhes, tantas vezes,  leveza, despojamento, humildade para enfrentar o profundo abismo que é escrever acossado pelo grande e implacável  apagador das horas. Machado de Assis, meu escritor predileto, talvez o maior que o país já produziu, não me parece um grande cronista. Humberto de Campos,  o mais produtivo da sua época, hoje é totalmente esquecido. Lembro da grande coleção azul,  dele,  de mais de  trinta livros , na biblioteca imensa do Tio Sávio Pinheiro. Devorei-a, na adolescência, com voracidade. Talvez os textos fossem datados demais e tenham perdido o glamour com o advento das novas gerações. Rubem Braga, certamente ,mantém-se distanciado como  o mais importante escritor  do gênero, em língua portuguesa, possivelmente porque  é profundamente poético e poesia não tem idade : banha-se na fonte da eterna juventude.
                                   O certo é que me apetece esse encanto de garimpar nossa doce história cotidiana. Fatos aparentemente sem importância, gestos leves, movimentos fortuitos, personagens tidos como menores e que cairiam  rapidamente na lixeira da memória não fosse o olhar atento do cronista. E mais: tentar perenizá-los usando a mesma argamassa amorfa,  frágil e etérea com que são constituídos.
                                   Querem  um exemplo ? Esta semana publicou-se uma notícia trivial na televisão. Foram devolvidos a alguns japoneses, alguns objetos tragados no terrível Tsunami do ano passado. As marés os carregaram até o Alaska, na outra extremidade do mundo. Algumas pessoas os recolheram e identificando alguns deles os devolveram aos seus donos no Japão. Sakiro Miura, uma japonezinha simpática, recebeu uma bóia que emoldurava a porta da sua loja de mergulho: nela estava escrito, em caracteres japoneses, o nome do esposo, falecido há 30 anos. Um rapaz recebeu uma bola de futebol onde gravara o próprio nome  e estampava várias assinaturas dos seus colegas de escola. A bola e a bóia não possuíam qualquer valor monetário e a notícia, tirando-se o inusitado, não carrega maior importância. Debite-se na conta ainda  a gentileza dos moradores do Alaska : perceberam que , de alguma maneira, junto com os objetos, devolviam à Sakiro e ao rapazinho um pouco daquilo que a tragédia havia arrancado das suas mãos. A bola e a bóia restituíam junto a esperança: o combustível de toda nossa jornada nesta terra.
                                   Atrás da notícia, escondia-se uma verdade só perceptível ao cronista. O  preço real  das coisas não pode ser avaliado apenas por seu valor venal: de troca, de venda , de escambo. Existe tantas vezes um valor sentimental que imanta os objetos e que não pode ser mensurado por trena , nem pesado com balança Fillizola. Sakiro não negociaria sua bóia por qualquer dinheiro desse mundo. E mais : só ela consegue dimensionar este custo, ninguém mais desse mundo. Seu tesouro está assim, biblicamente, imune às traças, aos ladrões e  ao caruncho.
                                   Quando os tsunamis por fim devastarem as praias da nossa existência, estes serão os únicos bens que boiarão e que um dia , quem sabe, o destino devolverá à nossa porta, para nosso gáudio, como a bóia de Sakiro Miura : uma florzinha que desabrocha em meio ás  ruínas que restaram. 

14/06/12

4 comentários:

Sávio Pinheiro disse...

Repleta de poesia, a crônica da crônica. O cotidiano pode ser eternizado de forma inteligente. Sem preconceitos. Toca a bola pra não boiar. Você não é menor que o Rubem Braga. Parabéns!

jflavio disse...

Abraço ao grande Sávio, poeta inspirado que circula com igual destreza em muitos gêneros literários.

jflavio disse...

Abraço ao grande Sávio, poeta inspirado que circula com igual destreza em muitos gêneros literários.

Lídia Maria disse...

Dr. José Flávio, que crônica linda!
Não considero a Crônica, um gênero literário menor. Como considerá-la assim, se a crônica, desde sua origem, é um "relato em permanente relação com o tempo, de onde tira, como memória escrita, sua matéria principal, o que fica do vivido”. (Davi Arrigucci Jr. - "Fragmentos sobre a crônica" - Folha de São Paulo, 01/05/87.). E ainda, se na crônica, "Tudo é vida, tudo é motivo de experiência e reflexão, ou simplesmente de divertimento, de esquecimento momentâneo de nós mesmos a troco do sonho ou da piada que nos transporta ao mundo da imaginação. Para voltarmos mais maduros à vida...". (- Antônio Cândido no artigo "A vida ao rés-do-chão".).
É evidente, que, o sucesso da crônica fica na dependência da fibra do cronista, daquele que sabe operar com encantamento, palavras, expressões, sentimentos. Admiro a maneira como enxerga os fatos, transforma-os literariamente e expõe em “vitrine”, suas crônicas para leitura.
Parabéns por sua percepção, de como converteu a notícia que ouviu, em crônica tão bela — “A Bola e a Bóia”.
Realmente: “Atrás da notícia, escondia-se uma verdade só perceptível ao cronista”.