quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Pontes e Baronesas


Eis-me aqui em Recife há quase quinze dias. É como se estivesse de volta à minha casa. Os caririenses carregam consigo essa duplicidade: meio cearenses, meio pernambucanos. O escritor Ronaldo Brito percebe perfeitamente essa dualidade quando define : “Cariri, Capital Recife!” . A Veneza Brasileira faz parte do meu bau de doces sentimentos, mas devo reconhecer que nem sempre foi assim. Simplesmente porque a cidade, retalhada por rios e remendada por pontes, não se entrega facilmente aos primeiros assédios. Amante banqueira e retraída, Recife exige todo um ritual de iniciação. A princípio seus ares parecem irrespiráveis, suas chuvas imprevisíveis, seu povo autista. Só aos poucos desabrocha a cidade que iluminou a poesia de Bandeira, João Cabral, Joaquim Cardoso e Carlos Penna Filho.
Recife carrega consigo um ar senhorial facilmente percebível nos seus casarões, nas suas pontes e também no seu povo. A cidade nos olha, por cima dos seus quase cinco séculos de história, galharda e pomposamente. Talvez seja esse clima colonial que a princípio entorpece os arrivistas , como se fossem espectadores que chegassem já em avançada hora do show. Aí o descompasso parece um visível incômodo. Como retroceder na história ? Como fazer parte do script , se já tantos capítulos foram escritos ? Aos poucos, no entanto, acabamos por perceber que o Recife tem um lugarzinho guardado para cada um que aqui bota os pés. No Recife, o encantamento se faz em módicas prestações mensais, aos poucos a cidade nos entra pelas veias e, um dia, quando jamais pensaríamos nessa possibilidade, compreendemos que já não é mais possível viver sem ele. O Recife nos arrebata mansamente do mesmo jeitinho que a maré carrega as baronesas rio abaixo.
Como isso é possível ? Recife compreende que sua história não é apenas um mero detalhe para ser guardado nos livros de escola. O recifense sabe que a história da cidade é uma coisa viva, palpável e que precisa ser degustada por todas as gerações com o mesmo ímpeto e apetite. A Cultura Pernambucana não é uma peça de Museu, uma ‘ararinha azul’ a ser catalogada pelo IBAMA. Ela vive no povo pernambucano, no seu quotidiano e mais : com o dinamismo próprio de que é feito as coisas vivas. Como não se apaixonar por uma terra que aparentemente séria e ensimesmada, mal chega o Carnaval, traveste-se , anarquicamente, e explode em alegria de viver: nos passos do frevo, na irreverência das troças, na música quase mântrica dos caboclos–de-lança, nos caboclinhos, nos cocos, nos afoxés, no afro Maracatu de baque virado, nos AlA Ursa? E mais, com todas as classes unidas, sem distinção de qualquer espécie e, conseqüentemente, quase sem violência?
É folclórico o bairrismo dos pernambucanos. Mas em termos de Carnaval, de alegria de viver, Pernambuco, com toda certeza, fala do Brasil para todo mundo!


Recife, 27/01/11

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Profecias



"Se não creio na violência armada, também não chego à ingenuidade de pensar que bastam conselhos fraternos, apelos líricos, para que tombem estruturas sócio-econômicas, como ruíram os muros de Jericó"
D. Hélder




De todos os líderes espirituais que conheci foi D. Hélder Câmara , certamente, aquele que mais sacudiu as estruturas do meu agnosticismo. Difícil se postar diante dele, sem ter a plena certeza de que tamanha força fluindo de uma criatura fisicamente tão frágil, não se podia explicar sem se recorrer ao transcendental. Unia o ímpeto à doçura. Compreendia, perfeitamente, que a caridade não tinha nenhum sentido se se transformasse numa profissão. As continuadas vozes penosas: Ah os pobrezinhos, os coitadinhos, os carentes, precisamos ajudá-los... traziam junto, um perigoso imobilismo. No fundo, as igrejas nada têm de libertador, necessitam dos desafortunados para que justifiquem seu apostolado.Se os pobres não mais existirem, meu Deus, que será de nós ? D. Hélder, do alto do seu pacifismo, percebia perfeitamente que a pobreza não é um acidente, uma fatalidade, mas um monstro projetado e criado pelo Capital. No fundo, os ricos se apossam das riquezas deste mundo, oferecendo as benesses dos céus aos descamisados, com a ajuda imprescindível de muitos sacerdotes que dividem com os burgueses o produto do butim. Institucionalmente o Cristianismo nada tem de religioso, ele é uma multinacional como outra qualquer. D. Hélder visionariamente sabia que apenas conselhos, discursos, negociações não teriam o poder de destruir uma máquina tão azeitada.Como seu Mestre ele avisara: “Não vim trazer a paz, mas a espada!”
Em 1978, em plena Ditadura Militar, no Recife, vi-o proferindo uma conferência num Congresso de Residentes. Era um orador vibrante e incendiário. Contou-nos que há poucos meses , na simplicíssima igrejinha das Fronteiras, onde o Arcebispo montara sua residência, fugindo das pompas dos palácios, teve a casa invadida por um Coronel e seu destacamento. O militar informou-o que iria fazer uma devassa ali pois recebera denúncias de que o Arcebispo estava acoitando terroristas e subversivos. D. Hélder, calmamente, o repreendeu. Ali era um templo e, como tal, merecia o devido respeito. E, com sua verve profética, desarmou-o sem disparar um tiro sequer:
--- Meu filho, aqui, historicamente, sempre foi lar dos perseguidos. É aqui que os órfãos de estado, de políticas públicas, de justiça, vêm procurar pouso. Você é novinho, meu filho, e ainda não percebeu. A vida é uma roda. Neste exato momento, você se encontra no topo. Mas a roda : roda, roda, roda... Daqui um pouquinho, sem que ao menos você perceba, você vai estar lá embaixo, igualzinho aos que você hoje chama de subversivos. Quem sabe, meu filho, então, o perseguido não será você? Coronel, quando chegar a sua hora, pode vir bater à nossa porta que ela estará aberta !
O coronel carrancudo deu meia volta e se foi, sem uma palavra sequer.
No primeiro de janeiro, na posse da Dilma, ex terrorista, ex perseguida e torturada, eleita de forma consagradora, assumindo o maior cargo público do país, lembrei-me de D. Hélder e da sua profecia. Em pouco mais de trinta anos, a roda da vida tinha completado um ciclo. Onde andará o coronelzinho com seu destacamento? Onde estarão escritas agora aquelas verdades aparentemente inatacáveis cuspidas nas ordens do dia? Afundaram as ideologias, as palavras, o rancor; sobrenadou a profecia.


14/01/11

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A loucura de Geraldo e o delírio de tantos

Geraldo não sabe bem de onde surgiu o sobrenome que o faz famoso no Cariri. Ele o acompanha bem antes de fazer das calçadas seu quintal e da marquise do Banco do Brasil de Juazeiro , seu lar. Geraldo Doido é feliz e não podia ser diferente. Tem tudo de que precisa na sua casa , é um Diógenes dos nossos tempos. Confortável cama de papelão, travesseiro de jornais, iluminação doméstica a luz de mercúrio e a brisa da noite como ar condicionado, alguns Restaurantes próximos lhe servem de Cozinha. Não lhe faltam interlocutores a quem contar as suas peripécias e alimentar seus delírios.Quase nada é preciso para abrir seu sorriso sem tramelas, sorriso de banguelo, com porteira escancarada.
Os transeuntes riem , quando interpelado afirma que aquele Banco é seu e já está se preparando para aumentar o patrimônio, comprando um outro na circunvizinhança. Como não imaginar que o Banco é seu? Geraldo dorme na sua frente, ali defronte se alimenta , na vidraça do BB faz a sua maquiagem e, ao contrário dos funcionários e banqueiros, ali permanece as vinte e quatro horas. Poderia até requerer a posse por usucapião. Chegou a reclamar, alguns meses atrás, quando, sem sua expressa permissão, andaram demitindo e transferindo vários bancários, dizendo que era por causa de uma tal de Reengenharia. Geraldo Doido sabe, mais que os homens que se dizem sãos, que o que faz uma instituição não é a construção nem os equipamentos existentes nela, mas são as pessoas que lhe dão vida e a fazem eterna ou efêmera.
Quantos riem de Geraldo, do seu delírio de grandeza! Há uma certa nobreza, porém, trespassando aqueles molambos. E um risível contraste: o Capital e a vítima da sua selvageria dormindo no mesmo leito, em franca e amigável convivência. Dois Brasis antagônicos e díspares sob o mesmo teto: O Brasil do acúmulo de riqueza e o Brasil da fome e da miséria. Dois Brasis separados por um abismo!
A alucinação de Geraldo é muito comum entre nós. Quantas pessoas trabalham , dissipando sua juventude e vão acumulando riqueza, sem usufruí-la, com o único fito de mostrar orgulhosamente para os outros e se vangloriarem de ricos e soberanos? São os pobres ricos, cheios de jóias e de saldo bancário volumoso, mas que, exatamente como Geraldo, sentam vigilantes diante da riqueza e passam a vida observando e apontando aos amigos, sem a coragem de dissipá-la. Nem tentam a dificíl a alquimia de trnasformar dinheiro em felicidade. Alimentam uma loucura , exatamente como Geraldo Doido sob a Marquise do BB!
Os paises são também acometidos, às vezes, de crises de megalomania. Vejam o Brasil, de repente estabeleceram uma política econômica visando, única e exclusivamente à atração do capital estrangeiro para o país. A partir daí passamos a nos sentir ricos e prósperos, porque estávamos sentados diante do capital especulativo das nações ricas, vendo-o reluzir e pensando que era nosso, exatamente como Geraldo Doido, no seu delírio de grandeza. De repente os donos verdadeiros do dinheiro o levaram e ainda cá estamos, sob a marquise contando para todas as nações do mundo que somos ricos e afortunados , a mesma história de trancoso que Geraldo Doido conta diuturnamente a todos os que dele se aproximam. Se há loucura na história de Geraldo , o mundo todo é um hospício.



P.S- Este artigo foi escrito em 1998. Recentemente “Geraldo Doido” foi barbaramente assassinado, enquanto dormia, na calçada do Banco de que se achava proprietário.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Matozinho vai à URCA


"Matozinho" no Vestibular da URCA - Prova de Geografia



"FEIRA

O matuto estava arreando o burro , madrugadinha. Acabara de botar cangalha e apertara as cilhas no último buraco do loro, quando a mulher saiu na porta, vassourão em punho, e lembrou: Tonho, não esqueça de trazer minha encomenda!
O homem montou no animal, enquanto pensativo curtia a aurora sanguínea que se espraiava no horizonte, como uma sangria desatada. Preparou, calculadamente, o cigarro de palha entre os dedos e o levou à boca desdentada, com o lume aceso."


José Flávio Vieira
http://simborapramatozinho.blogspot.com

Esta cena descrita pelo autor, retrata a realidade que vivemos hoje: regionalização x globalização, ou seja a cultura local, resistindo a aculturação global. Com base no relato e a temática identifique as assertivas corretas:
1 – É papel dos gestores públicos analisar o desenvolvimento local gerado pelas políticas públicas voltadas para o estímulo do comércio local, e sua relação com a qualidade de vida da população residente.( )
2 - O ato de comprar e vender, na Feira, é regido pelas necessidades homogêneas, onde na mesma os preços são tabelados padronizando o consumo entre iguais.( )
3 - A Feira é constituída por atividades variadas e heterogêneas como o comércio ambulante, barraqueiros e sacoleiros, malharias, perfumarias domésticas, eletrodomésticos e diversos produtos da agricultura familiar.( )
4 - Uma das características da globalização é a expansão das empresas multinacionais em escala mundial, fato que gera uma transformação qualitativa na Divisão Internacional do Trabalho, onde os produtos regionais e locais são valorizados.( )
Assinale a seqüência correta.
A) F, F, V, V
B) V, F, V, F
C) V, F, F, F
C) F, V, V, F
E) V, V, V, F

sábado, 8 de janeiro de 2011

Sísifo

Entrou em casa , à noite, como se trouxesse no corpo as feridas de uma batalha. Os dias todos pareciam uma xerox de um só . Trabalho repetitivo de tabelião de cartório, imerso no cofre da fina burocracia: escrituras, registros civis e de óbitos, reconhecimento de firmas. Olhava para aquele mundão de livros velhos e sobrenadava-lhe a certeza: ali , no cartório, estava depositada a vida perdida de várias gerações. Prazeres que não foram desfrutados, viagens que deixaram de ser feitas, felicidade enfim que acabou encarcerada em páginas esmaecidas, aguardando a sanha feroz dos inventários.O estranho é que, com o passar do tempo, aquela inutilidade armazenada nas prateleiras empoeiradas começou a inundar um pouco a sua própria existência, como se seu mundo, de alguma maneira, fosse sendo também aprisionado entre carimbos e certidões. O patrão, rígido, já tinha aquela cara esquisita de formato partilha. Até mesmo o descanso do domingo adquirira uma feição cartorial: ou Faustão ou Sílvio Santos. Sentia-se, como tantos dos seus clientes, um pouco órfão, ausente e interdito. Pois foi com aquela cara de arquivo morto que entrou em casa, por volta das 20 horas. Dirigiu-se para a mesa da sala em busca do jantar, já olhando , com o rabo do olho, a rede que o esperava atravessada na varanda. Estranhamente não viu pratos , nem talhares. Súbito, a mulher saiu do quarto e, sorridente, andou em sua direção. Estava maquiada, cabelo esticado às custas de uma escovinha de última hora e vestia um longo , preto, ainda com o cheiro da loja. Pensou, rapidamente, que ela devia estar voltando de alguma festinha da escola do filho. Com a barriga protestando, pediu-lhe que servisse o jantar. A esposa franziu o cenho , não deu palavra e retornou cabisbaixa, apagando os próprios passos . Ele recostou-se na rede e ficou imaginando o que poderia ter ocorrido: alguma fofoca de vizinha, um telefonema anônimo, alguma festa em casas de amigos ou na toca daquela jararaca da sua sogra, que havia esquecido ? Antes que chegasse a alguma conclusão, ouviu uns soluços secos que ressoavam a partir das paredes do quarto. Correu para lá e deu com a esposa aos prantos, sentada na cama, com a maquiagem já toda borrada. Que diabos estava acontecendo ? Achegou-se e perguntou, carinhosamente do que se tratava:

--- O que aconteceu ,Terezinha?Você está doente? Está sentindo alguma dor ?Levantaram algum falso contra mim ? Quer que eu lhe ajude a tirar esta roupa de festa ?


Terezinha , muda, apenas chorava convulsivamente e aumentava o tom do pranto, em uma oitava, a cada nova pergunta do marido. Em pouco , a patroa parecia um soprano interpretando uma ópera desconhecida. Ele achou mais sensato parar e voltar à rede da varanda onde tentou , sem êxito, descobrir o enigma. Adormeceu em meio ao cansaço e a fome e sonhou com uma terra em formato de almofada, assolada por uma tempestade de carimbos. Despertou cedinho e retornou para a tarefa de Sífiso. Não adiantava mexer com aquela sensitiva, ressonando ainda com o vestido da véspera na cama. Ao retornar, à noite, encontrou-a ainda trombuda e só , então, descobriu o erro fatal: esquecera seu aniversário de vinte anos de casado. A esposa o aguardara, ontem, para um jantar a luz de velas e algum presentinho que relembrasse a data. Passara batido. Tentou desculpar-se , sabendo de antemão que para tal crime não haveria perdão, não tinha sursis, era inafiançável : estaria condenado ad eternum .
Tentou minar aquele coração pétreo com afagos, com uma posição diferente na cama, com um almoço arrumado de última hora e um perfume francês. Mas tudo parecia exatamente o que era : uma tentativa vã de corrigir um erro imperdoável. Usou então o argumento derradeiro , deslocou-se até uma floricultura e encomendou um bouquê de rosas vermelhas , aquelas que trazem o cor flamejante da paixão . Junto anexou um cartãozinho dourado , com dois pombinhos ,aos beijos em um dos cantos, e sapecou a cantada em letra bonita, com seu linguajar de tabelião:


“ Para Terezinha,
Meu maior bem móvel.
Amo-te
O referido é verdade.
Dou Fé .
Osvaldo"

Depois das flores o clima melhorou um pouco, as coisas foram voltando para o devido lugar. . Qualquer briguinha , no entanto, qualquer arrufo e lá ressuscita o terrível pecado de omissão :
--- Você não lembra, não ? Até nosso aniversário de casamento você esqueceu ...
Aprendeu, tardiamente, que o coração feminino tem arquivos impecáveis e de facílimo acesso. O detalhismo está profundamente entranhado naquelas almas :Terezinha perdoou , mas não esqueceu. Osvaldo comprou agenda eletrônica, marca as datas importantes no calendário sobre seu bureau, usa até a Internet, temendo uma recorrência fatal no mesmo crime hediondo. Contratou até algumas testemunhas que possam falar a seu favor em casos mais melindrosos. Percebe, porém, que como na vida, nos livros de tombo do sentimento não é possível passar procuração e nem substabelecer.


Setembro / 2003

sábado, 1 de janeiro de 2011

O Bigode de Hitler

Matozinho desfizera bravamente aquela famosa máxima brechtiniana : “Triste de um povo que precisa de heróis”. A vila alimentava quase que religiosamente sua história. Como temperá-la sem a água benta dos seus beatos, o sangue dos seus mártires, o riso dos seus sátiros, a pólvora dos seus heróis ? No que tange às façanhas militares, havia um valente soldado que imantava o orgulho de todos : Capitão Candóia ! Hoje o seu busto contempla a todos com olhos severos , defronte da prefeitura municipal. Como um guardião derradeiro da vila, da pompeiana Matozinho.
Os anais da história oficial da cidade não mentiam. Candóia fora um herói, servindo ao Exército Brasileiro na II Guerra Mundial. Voltara do conflito carregado de louros e, mesmo depois da vitória final dos aliados, continuara sua missão militar, como caçador de nazistas, mundo afora, uma espécie de Simon Wiesenthal tupiniquim. Este era, basicamente, o resumo das atividades bélicas do nosso Candóia, presente nos alfarrábios oficiais de Matozinho. Fora esta, também, a versão que permanecera na memória do povo, até porque os fatos acontecidos já ultrapassavam a longínqua distância de quase seis décadas e testemunhas de outras versões já tinham passado dessa para pior. Restara apenas o velho Sinfrônio Arnaud que teimava em não fraquejar, parecia uma braúna com mais de noventa anos. Às vezes, já tresvariava, como diziam os familiares, mas aparentemente ainda mantinha o vigor dos antigos anos. Pois bem, aqui vai a versão da épica vida de Chiquim de Candóia, o herói matozense, segundo a língua afiada do velho Sinfrônio.
Em 1943, o Brasil recém entrado na II Guerra, chegaram militares em Matozinho com fins de alistar soldados para defender a pátria do perigo nazi-fascista. Vários voluntários se apresentaram à comissão, recebidos com fogos e vivas. O Sargento Rufino , vindo da capital como chefe da missão, buscou escolher um bom destacamento. Passadas as primeiras revistas, sentiu-se desolado. Os homens que apareceram eram magricelas, baixinhos, e despombalizados, totalmente inaptos ao serviço militar. Para justificar ao menos sua ida àquelas plagas longínquas, Rufino, meio frustrado, escolheu apenas um, mesmo assim com a pulga atrás da orelha: Chiquim de Candóia ! Era meio parrudo, mas entroncado como tamborete de samba.
A partir desse momento, Chiquim foi imediatamente alçado à categoria dos heróis. Festas, discursos inflamados, presentes e assédio de moças donzelas atacaram Candóia por mais de dez dias, enquanto arrumava os teréns para sentar praça na capital. Partiu ao som da Banda de Música da Vila entoando Cisne Branco e do choro convulsivo de familiares e de mocinhas saudosas. Ao chegar à Capital dirigiu-se , imediatamente, para o quartel indicado, o glorioso 14 RI, onde, ao apresentar-se com carta de Rufino, foi novamente submetido a exame militar e médico. A conclusão dada por um oficial carrancudo e de poucas palavras lhe pareceu absurda:
--- Pode voltar prá casa, mocinho, você , magro que só assovio de sagüi , baixinho e de perna cambota, não serve aqui nem prá bucha de canhão !
Candóia saiu dali totalmente arrasado. Sentou-se na praça defronte ao quartell ( já que não conseguira sentar praça lá dentro ) e, num átimo, resolveu:
--- Não volto prá Matozinho de jeito nenhum ! Saí nos braços do povo, não posso voltar assim derrotado, sem ter disparado nenhum tiro de soca-soca nem baladeira !
Saiu perambulando até o cais do porto e foi ficando por lá. Começou a fazer bicos como estivador, arranjou um quartinho ali perto e foi se estabelecendo, por lá. Periodicamente desembarcavam e embarcavam tropas e Candóia ia se atualizando sobre o andar da guerra. Um dia um soldado vindo da Itália, lhe agraciou com uma farda velha. Todo carnaval Chiquim usava-a como fantasia, acrescia no figurino um longo bigode de palhaço que colava no lábio superior e saía, corso afora, com cara de general. Um belo dia soube da notícia : a guerra tinha acabado, os aliados por fim venceram e o III Reich fora esmagado.
Passados vários meses, enquanto carregava um navio cargueiro com frutas destinadas aos gringos,na Europa, bateu-lhe uma saudade danada de casa. Deve ter sido o cheiro inconfundível da manga rosa que se mesclava com as mais ternas fragrâncias da sua infância. Naquele mesmo dia, resolveu voltar. Já haviam se passado três anos e nunca dera uma notícia sequer, os familiares certamente, já deviam tê-lo como abatido em campo de batalha. Vestiu a farda velha , pegou a velha sopa de Duzentos na Rodoviária e partiu ! Nem é preciso dizer o alvoroço que o retorno do filho pródigo causou em Matozinho. A notícia correu de boca em boca na velocidade do vento: o herói estava de volta ! Durante mais de uma semana Capitão Chiquim de Candóia não parou. De boteco em boteco, de casa em casa ia desfilando incontáveis histórias das terras estrangeiras, da sua braveza e destemor no Campo de Batalha; das mortes incontáveis que teve que causar, para não ser trucidado pelo inimigo feroz.
Uma semana depois da chegada, Candóia foi homenageado em reunião solene da Câmara Municipal com a presença ilustre do Prefeito Pedro Cangati. Depois de inúmeros discursos laudatórios à braveza do herói matozense, o presidente apresentou decreto que criava a Medalha de Honra Capitão Candóia, a ser ofertada periodicamente “a matozenses que tenham defendido sua terra com o destemor típico dos heróis, colocando os interesses do município acima de quaisquer aspirações pessoais, inclusive da própria sobrevivência física”. Após o discurso de praxe, o Prefeito Pedro Cangati, solicitou que o Capitão contasse os terríveis momentos por que passou em terras estrangeiras:
--- Caro Chiquim, qual foi para você, herói desta vila, o momento mais difícil da guerra ?
Candóia não esperava pela pergunta e , pego de surpresa, invocou o testemunho de alguns soldados que haviam desembarcado na Capital. Lembrou que eles falavam numa batalha de “Monte Castelo”. Fincou o pé, empinou o peito e não contou conversa:
--- Amigos, o momento mais terrível e perigoso foi a tomada do Castelo de Hitler. O homem tava entocado lá em cima, como tatu acuado. Quando nos chegamos perto, o tiro comeu no centro. Eu chamei uns soldados e tive a idéia de arrodear e entrar pelas portas dos fundos. Saltamos o muro e, enquanto os outros soldados guerreavam, subi as escadas e, la´em cima, abri a porta. Hitler tomou um susto danado quando me viu. Estava sentado numa cadeira velha de balanço , fez finca-pé e tentou fugir. Eu pulei em cima dele e sustentei o salafrário pelas orelhas cabanas dele. Comi o safado na chulipa e no sabacu. Nisso meus companheiros conseguiram entrar pela porta da frente e chegaram lá onde eu brigava com o Füher. Começaram a me dizer uns impropérios pois era eles que queriam ter o privilégio de pegar o homem. Começamos a discutir e eu me abestalhei, nisso o safado se escafedeu, eu ainda segurei ele pelo bigode, mas não teve jeito, puxou, puxou, puxou e escapou pulando lá de cima e pegando o gramear, por dentro de um carrasco danado que tinha em volta do castelo.
Cangati, então, abismado com o feito pergunta:
--- Capitão Candóia, você trouxe alguma lembrança da guerra?
Chiquim, pensativo, num deixe-me-ver reflexivo, meteu a mão no bolso da farda e encontrou o bigode que lhe completava a fantasia de carnaval. Puxou-o e, firmemente, colocou-a na mesa. A platéia, perplexa, se levantou para ver a prenda. O prefeito, meio confuso pergunta:
--- Candóia, que diabo é isso, homem de Deus ? Um Bigode ?
Chiquim, deu uma pausa teatral e, com imponência, explicou:
--- Isso ? É o bigode de Hitler...
Pedro remexeu no bigodão meio flocado em cima da mesa e, meio descrente, interroga?
--- De Hitler ? Mas ele não tinha era um bigodinho miudinho, que parecia uma mosca varejeira sentada no beiço ?
Candóia não se entregou:
--- Era miudinho, mas depois que eu agarrei o homem pelo bigode, ele puxando para se escafeder, parecia um burro brabo,dando popa,e foi tanto supapo que o bicho terminou esticando e virou esse espanador...
As festas continuaram até que o bravo herói matozense avisou que precisava voltar pois o exército já o chamara, precisava voltar ao trabalho, agora com uma nova missão caçar o Fürer fujão. Sinfrônio conclui sorridente a sua história:
--- Até ontem, Candóia não voltou! Deve estar ainda na captura do homem. Quando pegar, tenho certeza : traz junto Bin Laden e Belchior !

30/12/10