quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O sapoti do padre Lauro


Era um beco estreito, angustiado entre muros de casas que se estendiam, ao comprido : poucas portas ousavam desembocar naquela curta vielazinha, sem jardins, sem quintais visíveis, sem pomares alcançáveis. Mera e exígua ponte a unir, meio a contra gosto, a exuberância da Praça da Sé , à voluptuosidade pouco sinuosa da Rua das Laranjeiras. À noite, então, o opressivo e cúmplice aconchego do beco – sem olhos perscrutadores de portas e janelas --- como que convidava os casais para os afetos proibidos, os encontros escusos e outras necessidades igualmente incontroláveis e prementes. Ainda sem energia elétrica , o beco era quase uma contravenção arquitetônica, uma fuga à cansativa linearidade geométrica das avenidas vizinhas, um portal de acesso a outras dimensões e outras realidades. Uma quebra àquela fina e eternamente cultivada hipocrisia estampada na sociedade que desfilava imperial na praça, orava sem convicção na Igreja da Sé e se deliciava nas comerciais ruas que oprimiam o bequinho de todos os lados. Muro contra muro , tijolo em vis-à-vis a tijolo e cal, calçadas estreitas e calçamento irregular, o beco não tinha maiores atrativos: aprestava-se o passo rápido para, como num canal de parto, fugir do angustiante trajeto. A insípida paisagem, o desértico e insulso percurso, no entanto, quebrava-se tragicamente, quando já se divisava a Rua das Laranjeiras. Ali, na lateral do casarão do Padre Lauro Pita, um sapotizeiro frondoso varava impetuosamente a altura do muro e da casa e esparramava seus galhos por sobre o beco, como um pinto fendendo a casca do ovo, em busca de luz.

O verde permanente das folhas imprimia uma cor especial à mesmice repetitiva da aquarela do beco, dividida entre o branco da cal dos muros e o cinza dos paralelepípedos. Em tempos de safra do sapoti, então, o beco se transformava. Os pássaros entoavam loas à delícia dos frutos gigantes e dulcíssimos. Os morcegos à noite empreendiam vôos rasantes em torno dos galhos, como uma esquadria da fumaça em dia de festa. E embaixo, a algazarra dos meninos das ruas próximas, de água na boca, esperando, pacientemente, a queda dos frutos mais maduros, tentando alcançá-los ainda no ar, antes que a gravidade os fizesse, num som surdo e grave, se espedaçarem no chão. Na janela , o padre ainda resmungava : um pouco pelo bulício das crianças, um tanto pelo desconforto de perceber que a árvore plantada no quintal terminasse por dar frutos no pomar alheio.

Hoje os meninos cresceram, o beco iluminado já não é mais o mesmo: perdeu seus mistérios e seus fantasmas. O casarão e o sapotizeiro foram mastigados pelos dentes inexoráveis dos minutos e das horas. E o padre silente, já não resmunga. Mas mesmo assim, os meninos, espalhados pelo mundo, enfrentando a cruciante travessia de outros becos, ainda param e olham para cima esperando a queda possível, mas incerta do sapoti . Sabem que ele pende agora de outras árvores , mas ainda mantém o inesquecível sabor daquele fruto da infância e que precisa ser pego antes que a gravidade da vida o faça se esparramar, inutilmente, na calçada estreita .

15/12/11

Nenhum comentário: