quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Castelo de cartas

Entre uma e outra partida de “Buraco”, o menino toma o baralho entre as mãos e, com delicadeza e paciência, começa a erguer o seu castelo de cartas. Os movimentos são leves e cuidadosos, em slow motion. Ele percebe, claramente, que basta um movimento mais brusco, uma expiração mais profunda para que venha a implodir sua sutil arquitetura. Findo o trabalho, o castelo ergue-se impávido, à beira da mesa, meio desengonçado, com um ar de vitória contra a efemeridade e às dificuldades inerentes ao percurso. Como na vida, a argamassa que une todas as peças é a instabilidade, ela é o fio condutor que cola as cartas, aguardando a esperada e próxima lufada de vento.
Pois é , amigos, apesar da aparente filosofia barata do primeiro parágrafo, é sobre castelos de cartas que desejo falar nesta croniqueta de sábado. Nestes dias, temos todos nos chocado com as fortes imagens que saltam da TV : uma verdadeira Guerra Civil que irrompeu no Rio de Janeiro. Carros queimados, tiroteio, tanques subindo morros, correria, confronto entre policiais, exército e bandidos. Mais de trinta mortes computadas até hoje. Como explicar que a bela aquarela da Cidade Maravilhosa teime em tingir-se de rubro, nesta semana? Tínhamos o purgatório da violência diária, em módicas prestações, que macula todas as metrópoles brasileiras. Não nos acostumamos, porém, com esta tragédia por atacado, num país que se vangloria ser isento de guerras e confrontos mais sangrentos. O paraíso e o inferno sequer imaginávamos que fossem tão fronteiriços.
Mas vamos refletir, um pouco, sobre a arte de empilhamento de cartas, enquanto as balas varam os horizontes cariocas e, como sempre, a população mais pobre se vê, incomodamente, metida no fogo cruzado. A urbanização das grandes metrópoles brasileiras foi um reiterado crime cometido contra a população mais pobre e desfavorecida. Essa classe sempre viveu próximo ao centro das grandes vilas, pois ali conseguia emprego e, pela dificuldade de transporte, sobrevivia em cortiços e “cabeças de porcos” . À medida que as cidades iam crescendo e prosperando tangiam os pobres para os morros e favelas. Alijava-os da vida urbana, sem nada lhes dar em troca. O Estado, por séculos, só subia os morros com a polícia. A única política social era a repressão. Nada de saneamento, de energia, de escola, de postos de saúde. Emebelezavam os cartões postais das cidades e escondiam suas chagas sociais em prisões, favelas, sanatórios, cemitérios. No Rio, o primeiro projeto social em uma favela já aconteceu , pasmem vocês, há menos de vinte anos. Com o aumento crescente da desigualdade social , as favelas cresceram e se multiplicaram. E hoje, à histórica ação da elite brasileira de imprensar a favela, se opõe uma reação bem mais poderosa , contrariando a segunda Lei de Newton .
Nos anos setenta do século passado, o tráfico aportou nas favelas. Foi recebido de braços abertos. Ele passou a fazer o papel que o estado brasileiro nunca fez. Deu emprego, envolveu-se em movimentos sociais como futebol e Escolas de Samba, apoiando-os maciçamente e, mais, vendendo sua mercadoria justamente à elite opressora que se repoltreava em mansões a beira mar. Esta atividade, como era de se esperar, teve enorme capilaridade comunitária. E mais: organizou-se invejavelmente, enquanto o estado brasileiro, intencionalmente mantinha-se frouxo e desorganizado para facilitar os trambiques, a corrupção desenfreada. O tráfico, como uma máfia, agiu politicamente, comprando políticos, elegendo deputados, subornando a polícia e autoridades. Claro que, como num castelo de cartas, este equilíbrio é instável e , periodicamente, desmorona como acontece no Rio agora e como ocorreu em 2006 em São Paulo que se ajoelhou sob o julgo poderoso do Marcola e do PCC.
Por que desmorona o Castelo? Simplesmente porque, amigos, existe um acordo tácito entre o Estado e o Crime Organizado, com concessões de lado a lado, favores dispensados e trocados. De repente, o Estado cai na loucura de imaginar que é dono da situação e , abestalhado, pensa que existe lei . Talvez tenha até ciúmes da organização poderosa do Crime. Aí, o vento sopra por entre as cartas e o castelo rui. Instala-se o caos, as ruas se tingem de sangue e há baixas de todo lado. Mas não há vencedores. Aos poucos recomeçam as mesmas negociações, há sessões e concessões de parte a parte e as mãos ensangüentadas começam a de novo edificar o castelo implodido. Um Mito de Sífiso tupiniquim.
Temos dois países em um só. Dois Estados: o da Praia e o do Morro. O da Praia é minimamente organizado para as classes que o apóiam. O do Morro é profundamente organizado e politizado e tem plena consciência que a sua infelicidade não é obra do acaso, da fatalidade. Lá de cima dá para observar perfeitamente os conchavos e as negociatas. O Morro tem plena consciência da instabilidade do Castelo de Cartas e sabe que as cartas foram feitas para se jogar.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Aprendizes da vida, operários do nada


I

Existem poucas profissões tão especiais como a de agente funerário. A convivência próxima e diuturna com a morte , às vezes, faz desses seres figuras folclóricas, com cara de outro mundo. Poucos , porém, vêem de tão perto a fugacidade da vida e sentem como a transitoriedade da existência leva tão rápido ao socialismo final: reduzindo ao mesmo pó a ambição, o egoísmo , a miséria e a abastança do homem. Um amigo do ramo me conta das dificuldades do seu meio de vida. Primeiro, é difícil encontrar uma razão social para a empresa, pois é árduo fugir do aterrorizante, do mórbido e, muitas vezes, mesmo do ridículo. Nomes do tipo: “Funerária o Sorriso do Finado”, “Funerária Disparado para o Paraíso”, “Funerária Defunto Feliz”. Segundo, -- ensina ele -- é melhor evitar os slogans, por motivos idênticos : “Onde o Defunto tem vez” , “O defunto é duro, mas o pagamento é mole”, “Leva você ao céu e não pro beleléu”. Em terceiro lugar, -- explica ele com ar professoral-- o agente funerário deve evitar fazer visitas a doentes, porque sempre pode parecer que está ali por um escuso e misterioso interesse e o paciente poderá concluir que o volume que ele carrega no bolso, ao invés da carteira, seja a trena . Em quarto lugar, frisa o nosso fúnebre amigo, não é também de bom feitio lançar promoções como: “Pague um, leve dois” , “Compre o do sogro que a urna da sogra é grátis” e coisas do gênero. Não é de bom alvitre , por outro lado, aparecer como patrocinador de excursões, esportes radicais, etc. , já que o povo pode concluir que aquilo não é um patrocínio, mas sim um investimento. Por fim, o nosso papa-defuntos , como se desse o fecho em uma tese de mestrado, conclui: o gerente dessa mortuária atividade deve evitar falar , publicamente: “O comércio está fraco”, “Já não acontecem acidentes como antigamente”, bem como mandar brindes no Natal para os cardiologistas, os neurologistas e os mototaxistas ( decerto seus maiores fornecedores). Sempre achei esta profissão inóspita, talvez porque, como médico, ela seja uma extensão da minha e começa sempre onde meus cuidados terminam , como se fora um atestado da minha impotência como esculápio.

II

“katacumba”(este é o apelido profissional do meu amigo), para os íntimos “Katá”, me conta um caso acontecido na Paraíba. Uma funerária contratou uma doméstica de uma residência vizinha a um Hospital. Sempre que esta ouvia movimento no Necrotério, telefonava , e os agentes vinham, pronta e rapidamente, oferecer seus préstimos. O convênio vinha funcionando azeitadamente, até um belo dia, quando faleceu uma pessoa influente na cidade. A família, com previsão do êxito desfavorável, já tinha contactado uma outra Agência . Alertados pela empregada, ao chegarem ao Hospital, eis que os agentes conveniados topam com a outra funerária já em plena atividade. Abriu-se a discussão e, em pouco, as partes se engalfinharam, em meio às rosas, às velas e às orações. Os familiares do falecido correram e, quando abaixou a poeira, o resultado da batalha: alguns braços quebrados, hematomas vários e o falecido de cócoras, no canto da sala, olhando para tudo aquilo com um distante olhar de sarcasmo. Como “Katacumba “ mesmo diz: poucos conhecem tanto a alma humana como nós, manipuladores da morte e do seu séquito: hipocrisia, dor, sado-masoquismo, flores tristes e inocentes, religiosidade doentia, pérfidos interesses-- servidos em meio ao caldo, aos risos , às lágrimas e ao desespero...

III

Uma outra história ele nos narra, ainda dos tempos em que vivera em Várzea Alegre. Morrera um seu amigo em um sítio próximo e ele fora convidado para o velório. Defunto pobre e sem herança a deixar. Os colegas reunidos , como sempre acontece, passaram a encher a cara de cana, na tentativa de afogar as próprias mágoas e, também, claro, prestando uma homenagem àquele pau-d’água que se livrava do mundo. Acontece que o sítio era separado da cidade pela íngreme Serra dos Cavalos e, quando por fim, resolveram transportar o caixão para o cemitério varzealegrense, os amigos estavam todos bêbados: “mais cheios de pau que caixa de fósforo”. Na primeira rampa já não restava uma única flor por sobre o féretro. Na subida da serra, o caixão já ia sem tampa e, ao entrar em Várzea Alegre, sob o som alegre de “Alá, Meu Bom Alá...”, o finado já vinha galhardamente sentado no caixão e, jura “Katá”, por aqueles olhos que um dia o álcool haverá de comer, vinha respondendo em coro ao refrão:
--“Ô que calor, ôôôô, ôôôô...”

IV

“Katacumba” tem um capítulo só para historiar as falsas ressureições. No Sítio São Vicente aqui em Crato em pleno velório, entre uma e outra “incelença”, alguém notou que o finado que repousava na sua própria cama, como que elevava a mão por baixo do lençol . Aí o mais próximo gritou: --“Tá Vivo! ”, e foi uma debandada geral. Em pouco tinha gente passando na carreira em Nova Olinda; três trepados no mesmo coqueiro na Ponta-da-Serra e consta que até um aleijado jogou para longe as muletas que o atrapalhavam e era o pole-position na Prova de Fuga ao Defunto. Só pela manhã, um bêbado se aproximou e descobriu o estranho milagre da movimentação embaixo das cobertas: um pinto pulara do terreiro por sob a mortalha, tentando bicar algumas sementes que piedosamente pendiam das flores que circundavam o falecido.
De uma outra feita, num enterro concorrido, disserta Katacumba, o filho da falecida, debulhando-se em lágrimas, não desgrudava do féretro. Quando este já se encontrava na beira da cova, nas despedidas últimas, o rebento choroso se abraçou pela derradeira vez com a urna, inconsolável. A terra fofa do cemitério fez com que o rapaz escorregasse e o caixão, desequilibrando-se com o peso, caiu dentro da cova com rebento da finada, por cima . No impacto, soou aquele barulho grave e cavernoso, como de um surdo que prestasse a última homenagem à falecida.. Nisso alguém, impressionável, nas últimas fileiras, gritou: --“D. Maria enviveceu!!! “ Aí foi uma correria geral, tendo na frente do primeiro pelotão o inconsolável filho, que saltara da cova, num átimo, engatara a primeira e em pouco, certamente, receberia a bandeirada da vitória.
Uma outra história não menos insólita, nos traz Katá de Assaré. Uma velhinha muita cambota fora encontrada sem vida pelos familiares. De poucas posses, compraram um caixão barato, com ajuda de amigos piedosos. Na hora de pôr a carta no envelope, no entanto, notaram que era impossível: as pernas já rígidas, em forma de arco, não entravam na urna. A solução então foi cortar um pedaço da corda do cacimbão e, com ajuda de alguns circunstantes, forçar as pernas uma de encontro à outra, sob pressão e atarando-as com a corda para mantê-las assim. Deste modo conseguiram colocá-la dentro da fôrma que a aguardava para última viagem. As exéquias vararam a noite. De madrugadinha , em meio às rezas, o pedaço de corda ( já puído pela ação da umidade da cacimba) esgarçou subitamente. Aí as pernas, agora livres da contenção, pularam de repente para fora do caixão, como se a defunta fizesse menção de sentar. Foi um espalhafato, negro ganhando a capoeira, até ontem tinham feito a chamada e pelo menos três pessoas que estavam no velório não mais tinham dado notícia. Diz que um está em Canindé, um outro passou por Cabrobó e “Chico Canela Dura”, um sujeito tido como paralítico, que faz ponto na feira , telefonou ainda cansado de Marabá , avisando à família que estava indo embora: sabe Deus para onde.
V

A mais incrível estória contada por “Katá”, no entanto, é difícil de se constatar a veracidade. Segundo ele ,ano passado, a Câmara de vereadores de Belorizonte criou um imposto para os túmulos, uma espécie de IPTU post mortem. Os familiares que não pagassem, parece coisa do outro mundo, veriam seus entes queridos serem arrancados dos túmulos e recolhidos ao ossário público. “Katacumba” relata que, após um dia de intensa atividade, sentou e cochilou, no intervalo de dois sepultamentos. Teve um sonho que mais lhe pareceu uma aparição: Assistiu a uma “Reunião da Associação das Almas desencarnadas e corpos Despejados”. O conclave se passava em uma etérea paisagem e era presidida por um espírito chamado Allan. Falavam sobre a medida tomada pela Prefeitura de Belorizonte que , em pouco, com a voracidade dos prefeitos brasileiros, deveria se estender para todo o país. Caíra por terra um dos mais sagrados direitos, o do “REQUIESCAT IN PACE” . Nem mais na morte se poderá ter paz, os jazigos perpétuos passam a ser Jazigos temporários.
Alguns espíritos reclamavam dos parentes que, se já os só visitavam no finados, agora, que já tinham posto as mãos na herança, não iriam ter nenhum ímpeto em pagar o novo imposto e estariam desobrigados até daquela anual penitência. As almas mais antigas ( se é que é possível pensar em idade, nesse caso) eram as menos preocupadas, elas diziam que ninguém é lembrado depois da terceira geração, até porque poucos tiveram o privilégio de conviver com os bisavós e é quase impossível lembrar-se daquilo que não se conheceu. A união de todos no ossário municipal era ,assim , o socialismo final da natureza, a junção de todos no mesmo pó, a comunhão dos elementos : sem passado, sem história e sem vãs lembranças .
Uma alminha atarracada ralhava com os outros, dizendo tinha acertado quando solicitou em testamento a cremação, destarte ,tinha livrado o Estado e os familiares desse derradeiro contratempo , embora soubesse que suas cinzas estavam lá no sótão da casa , menos lembradas que as do cinzeiro da sala e qualquer dia desses ,certamente , seriam enxotadas numa faxina qualquer.
O depoimento mais surpreendente, no entanto, foi de um espírito andarilho que disse ter nascido no nordeste brasileiro e logo novinho abandonado numa lata de lixo por uma mãe solteira. Por sorte foi resgatado por uma doméstica que morava na Favela “Suvaco do Urubu”, em Recife. Começou cedo a fazer pequenos furtos e foi adotado pela FEBEM de onde o expulsaram com a maioridade. Passou então a trabalhar como vigia de uma pequena indústria , casou, depois de ser despejado de duas ou três casas por não ter podido pagar o aluguel; ganhou no jogo do bicho uma pequena soma e comprou uma casinha, onde passou a morar com a família . Por conta de infidelidade separou-se e , mais uma vez na rua, deixou a casa com a mulher. Viajou ao Pará, na tentativa de melhorar de vida, passou a ser grileiro, até ser expulso ( pensava ele que pela última vez) , massacrado como tanto outros em Eldorado do Carajás . Sem familiares, sem passado, estava ele ali, prestes a ser expulso de novo, como um Ahsverus onipresente, uma reencarnação de Adão, condenado à expulsão eterna do paraíso .
Katá diz, pedagogicamente, não entender porque os homens, sendo livres para tomar os caminhos que melhor lhes aprouverem, passam a vida a criticar as estradas e veredas que os outros escolheram. A estrada, boa ou ruim, pavimentada ou asfaltada , curta ou longa, seja qual for ela, enfim, inexoravelmente termina aqui , conclui ele, apontando para o Cemitério.
“Katacumba” despertou do sono, acicatado por um colega que o chamava para mais um enterro. Olhou para um céu azul resplandecente que o convidava para a vida com todos os seus gozos e marchou, pisando na terra que o tentava sorver com os seus vermes, suas lições de nada e seus mistérios...Saiu.
Junho/ 99

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Eufrazino e a Montanha Russa

Eufrazino contemplava o mundo por sobre as pilastras dos seus cinqüenta anos. A estrada estava bem mais curta para adiante do que para trás, talvez , por isso mesmo, aquela mania de ficar olhando a vida pelo retrovisor. O passado aparecia cada vez mais brilhante e promissor no seu cristalino já meio embotado pela catarata. A vida parecia-lhe aquilo mesmo : semeamos, semeamos, mas os frutos vão sempre se oferecer opimos no pomar do vizinho.
Tempo ! As verdades se refaziam a cada instante, como num caleidoscópio. De nada adiantava aquela frase puída, rota, áspera : “No meu tempo, meninos, era assim... “ Esta experiência apenas a ele dizia respeito. Era como se prescrevesse, hoje, um Capivarol para um enfarte do miocárdio; como se tentasse rodar um Blue –Ray na vitrola a manivela. Os filhos tinham vida própria, seguiam estradas por ele mesmo trilhadas, a despeito dos conselhos, das conversas. Os namoros , da praça haviam se transferido para os motéis ; o “esquentamento” agora carregava o nome de HIV; a eternidade dos casamentos media-se nos apressados ponteiros dos segundos; a virgindade transformara-se numa espécie de ararinha azul; os porres ganharam status de “viagens”: heroína já não era necessariamente o feminino de herói e craque não designava mais apenas o super-atleta. Tempo !
Eufrazino molhou-se daquela solidão única. Já não possuía xarás. Quem diabo ia impingir um nome esdrúxulo daqueles num filho, num mundo cheio de Daniéis, Andrés, Tiagos, Lucas, Matheus ? Eufrazino ? Mesmo que surgisse num descendente um Eufrazino Neto, sabia que lhe seria dificílimo carregar o peso . Ele seria certamente minimizado por um prenome mais palatável : quem sabe Ygor Eufrazino ? Assim, ao menos, o inocente teria a possibilidade de mimetizar a piada e assumir-se definitivamente como Ygor. Onde andavam aqueles costumes tão comuns na sua geração ? A fuga de namorados para forçar o casamento ? Os matrimônios feitos à força, no casa ou morre? As águas que lavavam a honra das moças que caíam em tentação, para que rios agora correm ?
Tempo! Há pouco vira a esposa entregar às quatro filhas preservativos com detalhadas explicações sobre o uso. O namorado da filha, nos fins de semana, dormia com ela, no mesmo quarto, na sua casa e isso tranqüilizava a todos: não estavam na rua expostos a violência nossa de todos os dias. A mais velha tivera um produção independente e mesmo com a insistência do namorado, negara-se a casar. O neto estava agora com os avós e era a alegria da casa. Eufrazino sabia , perfeitamente, o quanto tinha sido importante para sua formação as experiências vividas e passadas pelos pais, mas agora tinha a clara percepção que todas precisaram de upgrade. Não dava para contemplar a paisagem contemporânea com as pupilas do passado. E, como numa montanha russa, a velocidade das mudanças é estonteante. Lembra bem que há bem pouco dissera à filha mais velha:
-- Pode namorar como quiser, mas transar, só depois do casamento!
À segunda,poucos anos depois, já facilitara um pouco:
--“Filha, pode transar à vontade, mas não esqueça da camisinha, viu ?”
À terceira, dois anos depois, já precisou uma maleabilidade maior:
-- “Filha, não me preocupe que você transe, sei que sua geração é assim mesmo, quebrou todos os tabus, mas a privacidade é uma coisa importantíssima, é a nossa única fronteira! Te peço uma coisa, só, por favor, não filme a transa e bote no You Tube! “
Semana passada, diante da última filha, chegando à adolescência, Eufrazino, finalmente, tranqüilizou-se. Ufa! Basta de tanto upgrade! Vendo a menina sair, toda produzida para uma festa rave, suplicou:
--- Tudo bem , Georgina, divirta-se! Mas vou te pedir uma única coisa, filha. Sei que vai rolar o maior barato, a transa vai ser geral e sei também que agora, depois desse Big-Brother vocês vão filmar tudo e colocar no You Tube. Pois bem, filha, que seja o rala-e-rola pelo menos com um homem, viu ?

11/11/10

sábado, 6 de novembro de 2010

Mayaras

No último dia trinta e um de outubro, quando a apuração das urnas no Brasil sagrava uma vitória arrasadora da candidata Dilma Rousseff, certamente milhares de tucanos, país afora, mascaram aquele gosto de cabo de guarda-chuva . Claro que as pesquisas já previam matematicamente o resultado, mas sempre resta aquela esperança derradeira: na simpatia, no acaso, na macumba. Em São Paulo, no ninho brasileiro desta ave meio combalida, a estudante de Direito Mayara Petruso, inconformada, postou no seu Twitter uma mensagem antológica : “ Nordestino não é gente, faça um favor a São Paulo, mate um Nordestino afogado por dia!”. Ainda à noite, diante da repercussão, ela extinguiu seu perfil na Rede Social, quando acordou para a dura constatação que deveria ter depreendido dos seus estudos de Direito: cometera um Crime inafiançável. Já era muito tarde! Milhares de internautas já haviam testemunhado a loucura da Mayara, já haviam copiado o site e comentado. No dia seguinte, o escritório de advocacia “Peixoto & Cury” , onde nossa futura causídica estagiava, a demitiu sumariamente e ainda lançou nota de repúdio à atitude da estudante, na imprensa . A OAB de Pernambuco protocolou uma ação contra ela e deverá ser seguida por muitas outras sucursais da mesma instituição. A estréia de Mayara na vida profissional não parece ser das mais auspiciosas.
Por incrível que possa parecer, a opinião de Mayara não é muito diferente da média da elite paulistana. Para eles o Nordeste é uma África brasileira, coberta de “Jecas do Século XV” como já definira Paulo Francis . Com duas únicas serventias: fornecer marginais para assaltos no Sul do país e algumas praias excêntricas para os eventuais e perigosos safáris dos sulistas. O Nordeste, olhem o mapa, seria como um peso que São Paulo tem que carregar eternamente nas costas. O mapa da nação existe apenas de Minas Gerais para baixo: para o sulista o Nordeste é uma linha imaginária que separa este Brasil próspero do Caribe e de Miami. Basta voltar-se para a recente campanha eleitoral e ver o ar de superioridade , o preconceito explícito, o ranço com que tiveram que engolir a fragorosa hecatombe do vôo tucano.
E não apenas flui das fontes sulistas o preconceito . Nossa pretensa elite nordestina, da varanda da Casa Grande, ainda vê as classes mais desfavorecidas como se contemplassem a Senzala. Vejo-os todos os dias reclamando dos Programas Sociais do Governo, dizendo que agora já não mais existe ninguém para trabalhar na agricultura, nas casas, nos jardins. Só não informam quais os salários que propõem para seus trabalhadores e qual o vínculo trabalhista. Vi nossos blogs cuspirem fogo contra as bolsas famílias, chamando-as de bolsa-fome, bolsa-miséria e que estavam apenas viciando o povo. Na Campanha, claro, de olho nos votos, mantinha-se um silêncio obsequioso. A Caixa Postal vivia entupida com mensagens imputando Lula de : analfabeto, corrupto, burro, cachaceiro. A candidata do Governo, então, recebeu todo tipo de preconceito: guerrilheira, homossexual, assassina.
Pois bem, são muitas as Mayaras neste país, algumas, inclusive, dormem conosco e privam do nosso convívio mais íntimo. Presas todas ao passado, nem percebem que o Brasil, lentamente vem mudando e os pelourinhos vêm tombando paulatinamente. Luiz Inácio entra, definitivamente – queira-se ou não—na história como o melhor presidente do país em todos os tempos e o mais popular. Ele mesmo : Nordestino, pau-de-arara, tido como analfabeto, pobre e acaboclado. E mais, elegeu a Dilma, a primeira mulher presidente e ex-guerrilheira . E mais, perdeu apenas na região Sul, não foram os nordestinos , os votos da fome, dos grotões que a elegeram. As Mayaras estão na contramão da história: não há água suficiente no Tietê e no Paraíba para afogar tanta gente. Mas, quem sabe, vivam eternamente poluídas por terem que banhar tantas mentes torpes, tanta ambição, tanto egoísmo ? O povo, Mayara,felizmente já aprendeu a nadar...

J. Flávio Vieira