quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Claro-escuro

Recostado numa preguiçosa, abaixo de uma velha jaqueira, o velho Sinfrônio Arnaud contemplava os canaviais do Cotovelo, com vista privilegiada. Um sol já meio bemol, de quatro da tarde, parece envernizar as folhas das canas que brilham e tremeluzem tangidas por um renitente vento de agosto. Arnaud punha-se a pensar nos destinos de Matozinho que vira crescer quase que de dentro da sua fazenda e hoje, varadas mais de oito décadas, empinava o umbigo e criava ares de gente lorde. Certo que ,como todo novo rico, ainda mesclava costumes matutos com atitudes grã-finas: a meio caminho entre a buchada e o caviar. Uma conversa, pela manhã, com um político neófito da vila, o pôs a matutar sobre o tempo que tudo vai engolindo com sua bocarra de Jaraguá. As verdades monolíticas de ontem dissolvem-se ,como por encanto, sob a ação inexorável das horas e do amálgama gelatinoso resultante esculpem-se novos costumes, novos paradigmas aparentemente sólidos e indissolúveis.
Metido tantos anos na política da cidade, construíra quase que uma nova constituição de leis populares, de limites e fronteiras intransponíveis nas campanhas eleitorais. Naqueles idos -- lembra-se com um sorriso mal disfarçado, nosso Sinfrônio – político não roubava. Primeiro, porque não havia sequer dinheiro em caixa: as verbas da prefeitura dependiam da arrecadação municipal de impostos cobrados a pessoas paupérrimas, a comerciantes pequenos. Tantas e tantas vezes precisou tirar do próprio bolso para cobrir as obrigações de final de mês. A palavra “ladrão”, assim, era termo proibitivo em qualquer circunstância e redundava, inevitavelmente, em faca no vazio , tapa no pé-do-ouvido, tiro de papo amarelo nos peitos do insultador. Qualquer alusão, também, a possíveis desvios sexuais padrões de candidatos ou parentes destes, resolvia-se nos campos de batalha e não nos tribunais. Sinfrônio mesmo comentava, com orgulho , que sua terra não possuía veados e nem mulher metida a homem : “ isso é putaria da capital e de Bertioga” , costumava dizer. Permitiam-se, apenas, fofocas atinentes a teúdas & manteúdas, mijos fora do caco , gambiarras dos candidatos do sexo masculino, até porque isso, se não acrescia, também não tirava voto de ninguém. O adultério masculino via-se como uma atividade normal e comum, já o feminino tinha leis específicas não muito diferentes das islâmicas.
Debaixo da jaqueira, Arnaud pensava na conversa que tivera pela manhã com Seginaldo Trancoso, um vereador em ascensão em Matozinho e só então percebeu como, definitivamente, aqueles bons tempos tinham sido mastigados pela engolideira do tempo. Trancoso contou que resolvera se candidatar pela primeira vez a vereador e, pouco conhecido, ninguém botou fé na sua candidatura. Tinha apenas uma bodeguinha na Vila e muitos conhecidos. De maneiras que ele, correndo nas laterais do campo, sem que ninguém percebesse bem, terminou sendo eleito. No pleito seguinte, no entanto, os adversários, já acordados, caíram de pau. Espalharam logo a notícia que ele era veado. A princípio Seginaldo disse ter ficado um pouco chateado, mas sustentou o dedo no apito: estava na chuva era prá se molhar. Pois, segundo ele, o tiro saiu pela culatra, aconteceu que perseguido, virou vítima , as florzinhas da cidade votaram todas nele que terminou como um dos mais bem votados na cidade. No último pleito, relatou Seginaldo, candidatei-me novamente e , aí, eles mudaram a tática: espalharam a fofoca que eu era corno. Aguentei calado novamente, embora sob protestos da minha santa esposa . Pois bem, desta vez é que a vitória foi arrasadora: todos os cornos de Matozinho votaram em mim e terminei como o mais votado e ainda presidente da Câmara. Na próxima eleição -- falou com franqueza Seginaldo para Sinfrônio -- estou achando que vão espalhar por aí que sou ladrão, pois é , vou sair logo candidato a Senador, não vai ter urna para suportar tanto voto !
No horizonte, Sinfrônio observou o sol desaparecer pro trás dos morros da Serra da Jurumenha . A noite invadia de sombra o Cotovelo. O mundo e a vida fluíam em meio à luz e a treva, num jogo eterno de claro-escuro.

J. Flávio Vieira
30/09/10

sábado, 25 de setembro de 2010

Balé

Ínvios caminhos trilhou a Medicina em terras de Santa Cruz! O primeiro médico aqui aportou ainda nas caravelas de Cabral : Johannus Emenelaus. E devemos ao holandês Guilherme Piso que veio a Pernambuco com o Conde Maurício de Nassau, no Século XVI, o primeiro Tratado de Medicina das Américas. Nosso conhecimento médico, como nossa cultura, sofreu intenso processo de miscigenação: um pouco aprendido dos portugueses, dos jesuítas, dos afro-descendentes, dos holandeses, franceses, judeus e dos índios. Nossos primeiros profissionais de médicos só começaram a ser formados por aqui a partir do Século XIX, com a inauguração da primeira Escola de Medicina, a de Salvador, que coincide com a chegada da família Real. Todos profissionais daquela geração carregavam consigo características interessantíssimas: exercendo uma ciência que ainda se banhava em fontes empíricas, tinham uma profunda formação humanística e ética no exercício da Arte hipocrática. Para eles, o exercício da medicina era antes de tudo impelida por vocação e fazia-se muito mais sacerdócio do que emprego; mais Arte do que Ciência. Tinham uma profunda proximidade com as famílias e eram reverenciados como membros delas, como um parente próximo, como um amigo. Participavam do cotidiano das pessoas e tratavam não apenas os males físicos, mas leniam também as agruras da alma. A partir do Século XX, à medida que a Medicina se foi firmando mais e mais como Ciência; os novos profissionais começaram a se aproximar das máquinas, dos acessórios de diagnóstico sofisticados, voltando-se mais para o tecnicismo e menos para a alma; mais para a superfície e menos para os recantos mais abissais da natureza humana.
O ouvinte , certamente, verá essa evolução como natural. O mundo mudou: a TV, o DVD, o Computador , a Internet , a Midia, imprimiram uma velocidade estonteante aos tempos modernos. Os contatos hoje se fazem muito mais virtualmente do que na esfera real. Já existe Cirurgia Robótica permitindo que um médico em Nova York opere um paciente em São Paulo, sem que nunca tenha visto seu cliente e sem que nunca tenha a impossibilidade de conhecê-lo um dia. Muitos sites já disponibilizam consultas virtuais, à distância. Já não existe espaço para o contato físico entre as pessoas, para o toque , o olhar, a escuta. O médico hoje formado, com certeza, não poderia ter permanecido o mesmo de anos passados. Hoje ele é tem uma formação muito mais técnica e muito menos humanística e as vocações são criadas através de um dos deuses da modernidade : o Mercado. Temos profissionais da mais alta qualificação , nas mais variadas sub-especialidades, capazes de tratar com esmero e maestria: dedos, fígados, olhos, cérebros; mas muitas vezes impossibilitados totalmente de cuidar de pessoas na sua holística vivência, na sua divina complexidade. A convivência entre os próprios colegas, também, sofreu uma grande deterioração, simplesmente porque não há mais colegas nos tempos atuais, existem concorrentes da mesma fatia de mercado. Tenebrosos tempos modernos!
Esta reflexão, amigos, talvez um pouco crua para um dia de sábado, brota em meio à tristeza que tomou conta da nossa cidade no dia de ontem. Partiu na inevitável viagem, um dos últimos luminares da fase áurea da Medicina caririense dos últimos 60 anos: Dr. Eldon Gutemberg Cariri. Querido de todos, recepcionou milhares de cratenses na chegada a este mundo de lágrimas, com um carinho e lhaneza quase que beneditinos. Pasmem vocês ! Ele sabia ouvir as pessoas! Não era um parteiro , mas um simples acólito da natureza. Acompanhava as gestantes por horas a fio, sem qualquer interferência no processo natural do parto: nem fórceps, nem medicamentos para apressar o processo e nem pensar em cesáreas desnecessárias! Longe dele a correria desenfreada dos dias de hoje, a velocidade estonteante das criaturas em busca de que? Para onde? Dr. Eldon, como um condor, não precisava de esforços desnecessários : sabia plainar, conhecia as correntes favoráveis de vento e flutuou vida afora, com a leveza de um bailarino. Discreto, sem arroubos, sem arrufos, exerceu seu sacerdócio por tanto tempo, antenado com os precipícios tenebrosos do espírito humano. Poliglota, leitor voraz, pianista, percebia claramente que a formação humanística é tão importante para o médico quanto o conhecimento técnico. Ontem, o condor pousou com a mesma leveza com que tinha empreendido o vôo por mais de oitenta anos.
Dr. Eldon parece deixar ensinamentos profundos às novas gerações. A paciência é capaz de mover montanhas. A Técnica isolada, apenas fabrica ótimos mecânicos para consertar relógios, rádios, computadores: não tem instrumentos suficientes de curar pessoas. E mais : a Ética precisa sobrepor todo conhecimento e toda a Ciência. Sem Ética não existe nada além da barbárie. O bailado suave do Dr. Eldon vai fazer falta num mundo cada vez mais propenso às lutas marciais do que ao Ballet.

25/09/10

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Hospital Regional do Cariri - Benefícios para quem ?


As décadas que se estenderam de 1960 a 1980 se caracterizaram, no Brasil, por um amplo movimento privativista da Saúde. O modelo da atenção era todo centrado no Hospital, priorizando-se o tratamento ao invés da prevenção. Nestes quase trinta anos, com incentivo governamental, pulularam os serviços hospitalares em todo o país. No Cariri, inúmeros serviços surgiram neste período, nos legando uma grande oferta de leitos hospitalares. Com a queda da Ditadura Militar e o advento da Constituição de 1988, sob a orientação do Movimento da Reforma Sanitária, criou-se o SUS que buscou, nestes mais de vinte anos, em inverter o caótico modelo de atenção hospitalocêntrico. A saúde, ao menos legal e filosoficamente, passou a ser um direito do cidadão e uma obrigação do Estado, devendo ser distribuída de forma integral e equânime entre todos os brasileiros. O grande gargalo do Sistema, viu-se com o passar dos anos, à medida que se ia melhorando a gestão e a gerência, está no financiamento inadequado. O sonho , amigos, é muito maior do que a verba destinada à sua consecução e , pouco a pouco, vem se transformando num pesadelo. A grande rede hospitalar, criada anteriormente, com a inversão do Sistema para prevenção, com os programas de Agentes de Saúde e PSF, viram as verbas a eles destinadas murcharem e foram pouco a pouco fechando as portas ou se afastando para atender apenas os planos de saúde e particulares. Em todo o país, começou-se a ter um sério colapso no atendimento hospitalar para a população, com denúncias diárias de desassistência nos noticiários: Emergências lotadas, falta de plantonistas, carência de leitos em UTI. No Cariri, esta realidade não é diferente do resto do Brasil.
Assim, quando apareceu a promessa da construção de um Hospital Regional Público por aqui, todos respiraram aliviados. Finalmente teríamos uma solução à vista para o crítico atendimento de Urgência/Emergência no sul cearense ! À medida que a edificação começou celeremente, em Juazeiro do Norte, algumas preocupações começaram, novamente a nos bater às portas. Como será feito o custeio do Hospital, que já foi anunciado, pelo Secretário de Saúde anterior que orçaria , mensalmente, em torno de dez milhões de reais? Sabe-se que a Saúde trabalha com tetos financeiros fixos e limitados e que não existem verbas novas para suprir as onerosas necessidades do novo serviço. Os municípios da região terão que financiar, com seus já parcos recursos, o novo e importante hospital. Como o lençol é curto, não há como alguém não ficar com frio! Realocadas as verbas, inviabilizaremos vários serviços hospitalares credenciados que já sobrevivem a duras penas. Se fecharem as portas, os paciente serão todos direcionados ao Hospital Regional que terá uma sobrecarga terrível e padecerá, no seu nascedouro, da mesma patologia que acomete os incontáveis serviços de emergência Brasil afora ( basta ver a tragédia do IJF em Fortaleza): filas enormes, pacientes internos em corredores e macas, equipes trabalhando em regime de guerra. Para que o Hospital Regional funcione a contento, ele necessitará de uma rede hierarquizada e referenciada de qualidade e com resolutividade. Como resolver esta equação com tantas incógnitas ?
Um outro fato recente vem deixar todos profissionais de saúde da região com a pulga, literalmente, atrás , dentro e na frente da orelha. Lançado o Edital para o esperado concurso que escolherá os futuros profissionais de saúde e da administração, vimos que se entoava, novamente o “Samba do Crioulo Doido” ou , melhor, “Do Crioulo Sabido”. Primeiro, não se trata de um Concurso, mas de um mero processo seletivo. Depois, serão todos contratados, após o processo seletivo(?), sob regime de CLT, ou seja, sem nenhuma estabilidade e pior, com um salário miserável, bem abaixo , inclusive, do que se tem no mercado caririense. Eles, no Edital, oferecem em torno de R$ 375,00 líquidos , por um plantão agitadíssimo de 12 Horas. O mais preocupante, no entanto, é que o Hospital foi, literalmente, terceirizado, entregue a uma empresa privada, mas que, atualmente, rotula-se com o vistoso nome de OSCIP: Organização Social Civil de Interesse Público. No caso específico do nosso Hospital Regional ela carrega a razão Social de Instituto de Saúde e Gestão Hospitalar – ISGH. O Sindicato dos Médicos tem orientado toda a categoria a não se inscrever para realização da seleção e, com certeza absoluta, o ISGH terá grandes dificuldades em fechar quadros em especialidades imprescindíveis como : Neurocirurgia, Anestesia, Cirurgia Vascular, Cardiologia.
Vivemos um quadro sui generis. O SUS sempre teve a Medicina Privada como o grande vilão da Saúde no Brasil. Era ela imputada como centralizadora das verbas da saúde e como responsável pelos desvios reiterados de recursos para enriquecimento próprio. De repente, vemos uma grande onda de privatização retornando, sob o manto aparente novo das OSCIPS. Quem se beneficia disso tudo? Os profissionais de saúde, está mais que provado, não irão para o trono. Pelo que se percebe, os usuários do SUS, também, não terão suas agruras e sofrimentos minorados. Corre-se o risco de apenas reeditar a mesma história interminável e cansativa: o couro da população sendo tirado para ser espichado, novamente , no curtume do lucro e da ganância.

J. Flávio Vieira

sábado, 11 de setembro de 2010

Estopim






Um pastor evangélico de uma pequena igreja em Gainesville nos EUA protagonizou nestes dias, uma cena que evidencia, claramente, o poder midiático no mundo atual. Chama-se Terry Jones nosso cowboy e, até hoje, era um ilustre desconhecido a pastorear seu rebanho de cinqüenta fiéis, na pouco conhecida Igreja Evangélica Alemã, na Flórida. Pois bem, amigos, Jones havia desencadeado uma nova cruzada ao criar o “Dia internacional da Queima do Alcorão” a ser comemorado neste sábado, 11 de Setembro, no nono aniversário da queda do World Trade Center. O ato simbólico desencadeou uma verdadeira onda de protestos em todo o mundo. Vários líderes mundiais se posicionaram contra o ato , temerosos da reação da comunidade islâmica internacional. Bento XVI falou publicamente daquilo que considera um desrespeito ao livro sagrado da maior religião do planeta. Obama abriu canais de comunicação com o pastor, impulsionado por Hillary Clinton e setores militares que temiam represárias e atos terroristas, quando a mídia focasse o Alcorão sendo engolido pelas chamas. Além disso , talvez o início de um amplo recrutamento de soldados para uma nova Jihad . Nesta última quinta-feira, finalmente, após pressões incontáveis, Terry, meio a contragosto, resolveu cancelar o ato simbólico. De alguma maneira, no entanto, Jones havia conseguido seu intento, ao ver focados sobre ele, por tanto tempo, os holofotes da imprensa mundo afora.
Vamos afastar um pouco o limo mais visível que é a notícia em si, para tentar perceber o que se esconde abaixo do ato aparentemente impensado e tresloucado do pastor. Os EUA têm a liberdade de pensamento como um dos pilares mestres da civilização. A liberdade pessoal, nos EUA, é inegociável. Pena que eles não consigam ampliar este ideário para a convivência com os outros países. Para manter a liberdade e felicidade internas , vale tudo ! Pouco importa quantos morram ou sofram do lado de lá de suas fronteiras. O ato de Jones, assim, na cabeça do norte-americano médio, é perfeitamente normal: um ato de liberdade. Além de tudo, pesquisas mostram que quase a metade da população ianque tem a pulga de trás da orelha quando se trata do Islã. Por trás do protesto do pastor, há uma outra questão bem mais polêmica. Existe um projeto de construção de um Centro Cultural islâmico, em Nova York, próximo ao Marco Zero, onde as torres gêmeas desabaram em 2001, encabeçado pelo clérigo muçulmano Feisal Abdul Rauf. Aparentemente , o projeto impulsionou Terry Jones no seu protesto e, nisso, ele não está sozinho, dois terços dos americanos, em pesquisa, são contrários à construção. Seria como se, após a batalha, o Islã estivesse fincando sua bandeira e fazendo-a tremular indicando vitória. Terry Jones, na verdade, é apenas um peão insignificante neste grande jogo de xadrez. Definitivamente os pastores Jones, nos EUA, não trazem bons augúrios. Um outro, chamado de Jim, levou ao suicídio de mais de novecentos fiéis, na Guiana, em 1978.
O certo é que o planeta equilibra-se instavelmente na corda bamba da política mundial. Os ventos das nossas diferenças étnicas, religiosas, culturais, econômicas, políticas , a cada instante, nos ameaçam jogar precipício abaixo. A humanidade precisa, urgentemente, perseguir caminhos éticos que transcendam estas diferenças. Se a gente reparar direito , o somatório de tantos homens-bomba tem como resultado um planeta-bomba de estopim aceso, próximo à hecatombe final . A vingança definitiva do homem contra seu maior inimigo: o homem.


11/09/10

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Feira


O matuto estava arreando o burro , madrugadinha. Acabara de botar cangalha e apertara as cilhas no último buraco do loro, quando a mulher saiu na porta, vassourão em punho, e lembrou:

--- Tonho, não esqueça de trazer minha encomenda !

O homem montou no animal, enquanto pensativo curtia a aurora sanguínea que se espraiava no horizonte, como uma sangria desatada. Preparou, calculadamente, o cigarro de palha entre os dedos e o levou à boca desdentada, com o lume aceso. Tonho esporou o burro e tentou remontar, de cabeça, o pedido que a esposa lhe fizera na noite anterior. Ia providenciar a feira em Matozinho, comprar as bugigangas da semana e sabia que uns quatorze quilômetros o afastavam da vila. A mulher lhe pedira para passar na loja de confecções de Seu Lauro Maia, defronte à praça da Matriz e pegar uma agulha de crochê. Nem sequer precisa explicar, Tonho, a moça já sabe o que é, a marca, o tamanho, tudo – lhe adiantara Judite, antes de caírem na mama , na noite anterior. Ele imaginou que se tratava de uma agulha, uma vez que a companheira era muito habilidosa com as mãos e ganhava um dinheirinho bom, desde que se metera no ramo de artesanato, arte que herdara da mãe : a velha Gerônima do Baixio de Dentro. Nos últimos meses, Tonho se dedicava com afinco na construção de um puxadinho na casa, encompridando a cozinha e levantando uma despensa para acondicionar os cacarecos. Precisara aprender artes de pedreiro quando trabalho uma época em São Paulo, ainda solteiro.

Quando chegou em Matozinho,já dia claro, fez a via sacra de sempre. Comprou os picualhos na feira e, depois, dirigiu-se à Rua do Caneco Amassado, onde encheu a cara com umas mulheres-damas sentadas no joelho. Já de tardizinha, meio melado ou melado e meio, quando resolveu tomar o caminho de volta para o Baixio, lembrou da encomenda de Judite. Chegar em casa daquele jeito, puxando fogo , com o cheiro forte de extrato barato no cangote e ainda sem levar o solicitado, era encrenca certa. Resolveu, então passar na Armarinho de Seu Lauro. Em lá chegando, achou-o um pouco diferente, com luzes coloridas na frente. De qualquer maneira, de nada desconfiou. Primeiro porque há anos não entrava na loja e, depois, a cachaça no toitiço não permitia exercer atividades de Sherlock Holmes: Elementar, Caro Watson ! Entrou porta adentro e lá, encontrou uns clientes esquisitos, caladões, fazendo seus pedidos quase sussurrando. Dirigiu-se para uma balconista novinha e solícita e mandou:

--- Ei, vim pegar a encomenda de Judite !

A moça , estranhamente, não lembrava qualquer pedido feito por uma senhora com esse nome. Dirigiu-se às colegas, mas nenhuma parecia saber do estranho embrulho da esposa. A balconista, educadamente, lhe explicou o impasse e o acalmou:

--- Ninguém lembra da encomenda da D. Judite, mas vamos ver se a gente tenta descobrir...Para que servia mesmo , o senhor lembra, seu, seu...

--- Tonho ! Bem, ela pegava a bichinha, deitava e passa o dia todo enfiando e desenfiando...

--- Hummmm ! Acho que já sei do que se trata , seu Tonho! Me diga uma coisa, era grande, média ou pequena ?

--- Acho que é grande que ela usa e com a ponta meio torta, como um anzol...

---- Certo, certo... Bem grande, não vai ter problema, agora torta... e não tem perigo de enganchar, não ? Me diga uma coisa, Seu Tonho e o Senhor, não quer levar nada? O que fica fazendo enquanto D. Judite está enfiando, desenfiando ?

--- Ah, minha senhora, nem se preocupe, eu tou lá no puxado, acabando a minha mão... É um duro danado... De tardizinha tou de perna bamba...

--- Olhe , seu Tonho, admiro o vigor de vocês, mas não é muito bom exagerar não. Vão devagar com o andor... Vocês ficar tisgos... Vocês nunca trabalham junto não, seu Tonho, se mal pergunto ?

--- Não, ela só gosta de trabalhar sozinha ou com Isaura Pandora, uma amiga dela. E ainda apuram um dinheiro danado... trabalham também sobre encomenda, viu? E eu só gosto de plantar com Isacc que mora lá perto de nós.

--- Bem, seu Tonho, vou pegar a encomenda de D. Judite, tenho certeza que ela vai adorar.

A mocinha volta com um pacote imenso e, quando tira o papel para mostrar a Tonho, ele quase cai de costas.

--- Minha senhora, pelo amor de Deus, que diabo de agulha de crochê é essa? Isso é para costurar empanada de circo? Lona de Scania truncada? Parece uma rola, meu senhor! Chame seu Lauro que quero falar com ele!

--- Seu Tonho, o Armarinho de Seu Lauro é do outro lado da praça, se mudou já faz uns seis meses. Isso aqui, é um pênis mesmo pois agora aqui funciona um Sex Shop.

Tonho saiu cambaleando: mais pela visão inesperada que pelos eflúvios etílicos. Meu Deus, o que ainda falta comerciar neste mundão sem cancela? Pegou o rumo de casa. No meio da estrada, parou para uma tirar água do joelho. Quando terminou, deu as três balançadinhas de praxe e, antes de enfiar a bicha de volta, de braguilha adentro, contemplou-a murcha e contrita pelo frio de julho e sem disfarçar o complexo de inferioridade, lascou:

--- Agulha de crochê... Entra prá casa , alfinete véio dos seiscentos...


09/09/10

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Palhaço por palhaço...



"Através do humor nós vemos
no que parece racional, o irracional;
no que parece importante, o insignificante.
Ele também desperta o nosso sentido de sobrevivência
e preserva a nossa saúde mental."
Chaplin


O que vem acontecendo, ultimamente, com os humoristas brasileiros, amigos, não tem nenhuma graça. Desde 1º. de Julho, com base na Lei Eleitoral, encontram-se proibidos "trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo" que ridicularize candidatos, partidos ou coligações. Pela lei, piadas e paródias ficaram vedadas desde então. Os humoristas desencadearam vários atos públicos de protesto, uma vez que tal determinação parece se consubstanciar em Censura e ainda tramita no STF, já com parecer prévio do Relator, o Ministro Carlos Ayres de Britto, uma medida suspensiva desta parte específica e esdrúxula da Legislação Eleitoral. Não bastasse isto, esta semana, em entrevista, o atual Ministro da Cultura , Juca Ferreira taxou o Candidato a Deputado Federal por São Paulo, o comediante “Tiririca” de estar praticando um desserviço à Democracia, “um deboche”, por conta do seu slogan de campanha : “Vote no Tiririca, pior que tá num fica!”
Vamos conversar um pouco sobre estes dois episódios tão emblemáticos da vida deste país. Quem se detiver alguns minutos na Propaganda Eleitoral Gratuita, facilmente há de compreender as profundas razões da implicância dos homens públicos , para com os programas humorísticos e é sempre bom lembrar que são os políticos que legislam. No fundo, parece ser uma questão envolvendo fatia de mercado: os políticos temem a concorrência.É bonito ver a fluidez democrática nas mais variadas propostas: legalização/Não legalização das drogas; Liberação/proibição do Casamento Gay e tantas , tantas outras. As caras, porém, que se apresentam no vídeo, são, em sua maioria, hilárias, despreparadas para representarem uma minúscula Associação de Bairros. Os que posam, por outro lado, de bacanas, falantes, letrados, carregam muitos uma Ficha mais suja que poleiro de pato. Têm uma Folha Corrida que envergonharia o pior marginal recolhido ao IPPO. Proibir o trabalho dos humoristas não é apenas um ato que me parece francamente inconstitucional, degradante, homicida do livre pensamento; é este sim, caro Ministro, um desserviço supremo à Democracia. Os fichas sujas tentam , mais uma vez, jogar a sujeira pra debaixo do tapete.Existem poucas coisas neste mundo tão sérias como o humor. Com um agravante : a medida é totalmente inócua. A piada faz parte umbilical do folclore político, talvez até para ajudar a suportar as tragédias daí advindas, assim como o humor negro brota rapidamente de todos os velórios. Existe um humorista em cada esquina deste país, em cada mesa de bar, em cada rodinha de praia. Quem os vai fiscalizar? Ressuscitaremos os antigos fiscais do Sarney? Imagino que no próximo carnaval não sejam permitidas máscaras de Obama, de Lula e fantasias de Napoleão Bonaparte. Proibidas, as anedotas ficam muito mais contagiosas e adquirem um tempero todo especial. Os verdadeiros humoristas deste país, são vocês caros políticos, para a Lei ser efetiva, será necessário cancelar definitivamente o horário eleitoral gratuito, o melhor programa humorístico da televisão brasileira.
Acredito, também, que nosso Ministro da Cultura foi infeliz no seu pronunciamento. “Tiririca” , com a lucidez ingênua dos palhaços, transmite uma clara verdade no seu slogan. Primeiro, exerce um direito sagrado, o de se candidatar como qualquer outro brasileiro. Durante a propaganda eleitoral, ele pergunta se o eleitor sabe o que faz um deputado federal e conclui: “pois eu também não sei, me elejam que eu vou lá, descubro e conto depois para vocês” . Basta observar as propostas dos incontáveis candidatos para perceber que a maioria não tem a menor idéia das funções que irão exercer. Prometem coisas absurdas como : aumento do salário, construção de hospitais, casas populares... como se fossem assumir algum cargo executivo e não legislativo.A tiririca é uma planta daninha não muito diferente da maior parte dos integrantes do Congresso Nacional. Com o nosso Tiririca, tenho certeza que pior do que está não fica. E ainda temos a vantagem de colocar em Brasília um palhaço verdadeiro. Palhaço por palhaço, prefira o verdadeiro e não o falso!


02/09/10