domingo, 28 de fevereiro de 2010

A tênue fibra do desejo

Deve ter sido aquela vocação evangelizadora tão própria das mulheres. Sabia que o noivo gostava de uma farra, apreciava um carteado e aquele conversa interminável com os amigos. Imaginou, no entanto, que com a força do amor, alinharia aquela árvore torta. Terminaria por domesticar aquele animal selvagem com a ração diária, com os agrados de fêmea, com a hipnose cotidiana. Imaginou que o lar com seus pesados atributos : filhos, contas e o magnetismo da TV apreenderiam aquele ave inconstante, sem que ao menos ela percebesse as tariscas da gaiola. O tempo, no entanto, acabou por mostrar a D. Gertrudes que não existe coisa mais difícil de moldar neste mundo que a delicada fibra óptica do desejo. Ludugero mostrou-se sempre um pai carinhoso e um marido exemplar. Trabalhava duro numa pequena panificadora que adquirira. Ofício árduo de despertar madrugadino , onde diariamente rivalizava com o alvorescente canto dos galos e com a sangria dos primeiros raios do sol.Entre uma bolacha e um pão de ló, entre um passa-raiva e um manzape, ia Ludugero tocando a vida. Os arraigados hábitos antigos, no entanto, permaneceram indeléveis, imunes às pregações de D. Gertrudes. Nas sextas e sábados saía para um barzinho com os amigos e viravam a noite num carteado interminável regado a cerveja , a reminiscências e fofocas. A última válvula de escape de Ludugero, uma espécie de prozac natural que usava para escapar da doideira do dia a dia. Gertrudes, no entanto não se conformava: vivia a implicar com a vida noturna do marido. Fazia-o insidiosamente, uma vez que entendia : os antecedentes criminais do marido precediam ao matrimônio. Ludugero já por mais de uma vez lhe havia jogado na cara: --Meu bem, você sabia que eu gostava de um joguinho, por que diabos casou comigo, não procurou um cardeal , um monge, um santo... ? Havia , no entanto, uma outra razão para a implicância da mulher: ela temia que, varando as noites entre uma birita e outra, em meio aos ases, aos valetes, terminaria por aparecer algumas damas ou uma rainha de paus. Por trás de tudo, sobrenadava o ciúme e a desconfiança de D. Gertrudes.
A água mole bateu na pedra dura, mas não a furou. Todo final de semana , para o crescente desespero da esposa, Ludugero escapava lépido para o jogo. Um dia, por fim, encheu-se até a tampa da caçarola da paciência D. Gertrudes. Antes de ver o marido vestir-se, numa sexta-feira, para as funções lúdico-etílicas do final de semana, articulou o plano meticulosamente preparado durante o mês. Deixou os filhos na casa da sogra e arrumou-se toda, com um vestido tubinho preto. Quando o marido pensou em despedir-se, como de costume, ela saltou de lá e o surpreendeu:
--- Amor, hoje eu vou com você. Estou doidinha para ver um jogo de cartas!
Gertrudes disse isto, sem tirar os olhos do semblante do marido, esperando o protesto, a popa. Ludugero, no entanto, para sua surpresa, não se alterou, apenas lembrou que o programa podia ser chato e cansativo para ela, mas que ficava feliz, não tinha nenhum problema.
Como era de se esperar, a programação não podia ser mais pesada. A esposa sentou a um canto, numa cadeira desconfortável, no Bar do Giba. A conversa varou a noite, regada a cerveja e baralho. Futebol, política, fofocas . À medida que as horas se iam escorrendo, para o terror de Gertrudes, os circunstantes iam ficando mais animados, falando mais alto , discutindo com muito mais fervor. Lá pras cinco horas da manhã a esposa compreendeu que eles tinham ainda fogo na caldeira para mais uns dois dias. Estava já escornada, cansada, com todos os músculos doendo. Chamou então Ludugero e o suplicou:
--- Pelo amor de Deus, me leve para casa que eu já não agüento mais, estou morta de cansada e já não consigo nem ficar em pé...
Ludugero, então, solícito, pediu um tempinho aos amigos , tomou a mulher pelo braço e a levou para o aconchego do lar. Não sem antes lembrar:
--- Ta vendo, mulher, você vem uma veizinha e fica assim parecendo que caiu de um avião. Isto é para você ter uma idéia do meu sofrimento que passo por este suplício todo fim de semana...

Artigo de 2006

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O patético e o peripatético

Rui Pincel chegou esbaforido na Siqueira Campos e acercou-se do banco de praça ,onde já se digladiavam inúmeras opiniões sobre assuntos que se estendiam do plantio do catolé até a chegada do astronauta brasileiro na estação espacial.Todo mundo entendia de tudo naquele universo esdrúxulo e peripatético. O consenso , a unanimidade faziam-se artigos raros e inalcançáveis por aquelas bandas. Os ânimos muitas vezes acirravam-se , máxime quando se tocavam em pontos sensíveis como política, futebol e religião.O furdunço , a encrenca – havia um tácito acordo sobre isto—não extrapolavam, no entanto, o sagrado espaço da praça. Inimizade duradoura, ressentimentos perpétuos sempre se tinham como coisa de iniciantes, de aprendizes, até porque acabavam por prejudicar o fluxo de discussão normal do dia a dia . Rodinha de potoca, conversa de banco sabia-se totalmente incompatível com caras trombudas, com espíritos armados e esgrima de indiretas. Pincel, já meio truviscado, aproximou-se com calma daquele tribunal ao ar livre e pôs-se a observar atentamente as opiniões diversas e díspares . Não meteu a sua colher de pau no sarapatel servido em nenhum momento e, para os amigos mais antigos e próximos , aquilo era sinal inequívoco de que trazia consigo uma tese filosófica das mais elaboradas para defender na praça. Aguardou, com paciência, o arrefecimento das questões mais polêmicas e , só então, passou a explanar suas elucubrações com o ar sério e contrito de quem apresenta trabalho em banca de doutorado.
Lembram vocês da renhida luta das feministas pela igualdade dos gêneros? Pois bem, amigos, como vocês bem sabem toda solução de um problema cria invariavelmente pelo menos mais três. Houve um tempo em que homem ser sustentado por mulher era coisa inaceitável. Terminava por perder a identidade e não ser mais conhecido pelo nome, mas por : “Joca da Professora”, “Julim da Juíza”, “Tetéu da Doutora”.Pois o avanço feminino resolveu esta pendência para o nosso lado, afirma Pincel, como os direitos são iguais, já não existe nenhum problema em marido viver às custas da mulher. Depois do Gianechinni ,então, a coisa pegou, criou jurisprudência, qualquer “drome sujo” hoje canta de galo : -- Quem quer ter galã em casa tem que pagar por isso ! Os mais tímidos , então, forjaram inclusive um álibi para levar todos os dias no bem-bom, na sombra e água fresca : --Por enquanto não estou trabalhando não, não existe emprego com salário justo para mim, resolvi estudar para concurso! Pronto! Aí não há necessidade de qualquer explicação mais detalhada, o malaca entrou numa categoria de elite e cada vez com maior contingente, o famoso “estudante pra concurso”. Criou-se o álibi perfeito, pois concurso tem todo tempo, com concorrência sempre expressiva , não se tornando nenhum desdouro levar pau. É só iniciar , imediatamente, os estudos para uma outra prova.Enquanto isto, a patroa vai pagando as continhas de final de mês.
A platéia abancada ouvia a tese de Pincel sem piscar, sem nenhum aparte, sem nenhuma questão de ordem. A partir daquele momento nosso narrador passou à parábola: -- Vocês lembram de Zacarias de Sofia ? Casou com a professora que hoje figura no seu sobrenome e até hoje nunca deu um prego numa barra de sabão.Acorda no meio dia,toma uma cachaça danada e quenga até o dia 25 de cada mês. A partir daí, vira um santo até o dia 5, quando compra uma cervejinha, bota um disco de Roberto Carlos, veste a melhor roupa e espera a amaríssima Sofia que vem do BEC com o dinheiro do salário. Dançam rostinho colado os “Detalhes tão pequenos de nós dois” e até acabar o dinheiro fazem o mais feliz casal da cidade. Pois bem, não é que a turma deu pra encher o saco de Zacarias dizendo que ele era um parasito, não fazia porra nenhuma e morreria de fome se não fosse a mulher! Aí ele pegou ar na bomba, como Mercedes velho, cansado de ouvir os colegas dizerem que sua profissão era de “marido”, Zacarias usou o álibi universal do preguiçoso. Passou a informar para todo mundo que estava estudando para concurso. Já ia levando uns cinco anos nesta atividade estafante, quando finalmente resolveu se inscrever para o concurso de bombeiro. Todos os colegas se admiraram com a brusca coragem de Zacarias. O trabalho todos imaginavam ser de uma dureza tremenda: toque de recolher e despertar, treinamento militar para socorrer acidentados, apagar fogo na floresta e salvar velhinhas no meio das labaredas.
Dias depois os amigos foram surpreendidos com uma notícia terrível: Zacarias tentara suicídio e estava interno em estado crítico. D. Sofia não soube explicar o gesto tresloucado do marido. Após a alta da UTI, os colegas se acercaram de Zacarias ,com a consciência pesada de tê-lo pressionado a estudar e praticamente exigirem dele passar no teste. Isto, certamente, poderia ter levado o estudante ao desespero, na busca desesperada por uma profissão.Penalizados , junto do leito, desculparam-se:
--- Olha, Zacarias, nos perdoe, concurso é difícil mesmo, a concorrência é enorme e não é nenhum desdouro a pessoa não passar. Você vai ter oportunidade de fazer muitos outros e logo, logo vai ser contemplado... Tire estas besteiras da cabeça,descanse, tudo vai dar certinho...
Segundo Pincel, Zacarias soprou por entre as gazes que cobriam seu rosto quase que por inteiro:
---- O problema não é esse não rapaz , vejam que azar do fio de uma égua, pois não é que eu passei no diabo do concurso de bombeiro...


Artigo de Abril/2006

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

De Sangue e Rosas

Há poucos dias, em pleno centro de São Paulo, aconteceu uma cena emblemática dos tempos em que vivemos. O filho de um dos maiores empresários do país parou o carro em um sinal de trânsito e um jovem dele se aproximou ,com um ramalhete de rosas vermelhas. Em poucos instantes estabeleceu-se uma praça de guerra: os seguranças do rico rapaz, sacaram das armas e incontinente dispararam contra o “romântico” jovem, enquanto este, fazendo aparecer um revólver, por entre as flores, como num passe de mágica, retribui as balas, violentamente. O Faroeste urbano termina com um trágico final: as rosas vermelhas e o sangue, tingindo a negra tela do asfalto, com um rubro tom de espanto e perplexidade.
Difícil imaginar o que passou pela cabeça dos personagens e espectadores daquela cena , nos fugazes instantes que esta durou. Certamente os seguranças ,vendo se aproximar do empresário o rapaz do bouquet ,devem ter entendido, imediatamente, que aquele quadro era surrrealista nos dias de hoje, ninguém oferece rosas a ninguém, numa selva de concreto e cimento, e dispararam sem que precisassem de maiores conclusões. O filho do empresário deve ter concluído ter chegado o dia do acerto de contas, aquele em que o preço da desigualdade social brasileira é cobrado a chumbo e lágrimas. O pretenso assaltante ao ser atingido pelos disparos, deve ter se surpreendido mais que a sua vítima, incapacitado de entender como um plano, aparentemente tão bem arquitetado ,pôde ser tão rapidamente destruído. E os transeuntes , num misto de surpresa-medo-assombro, caíram tocados e aflitos na dura violência quotidiana, em meio ao sangue e às rosas.
Impossível alguém oferecer flores nos nossos dias, sem que por entre as pétalas e os botões se escondam a pólvora e o chumbo. Os poucos poetas que ainda tentem se arriscar nesta perigosa tarefa, hão de receber os tiros e disparos dos guardiões da sociedade, aqueles que preestabeleceram, no mundo, o reinado do medo e da infelicidade. Aquela cena é um brasão dos tempos modernos: Rosas fenecendo, embebidas em sangue ,medo e espanto, no negro asfalto da nossa crua realidade...

Artigo de 1997

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Alpinismos

De onde terá vindo, afinal, esta necessidade de observar o mundo dos píncaros? Sem quaisquer instrumentos disponíveis para ampliar a observação do mundo, além do olho nu, nossos antepassados escalaram montanhas e montes, talvez pela curiosidade de contemplar horizontes até então inescrutáveis. Do alto, quem sabe, seria possível perscrutar o universo em toda sua extensão! Por outro lado, a montanha sempre foi uma fábrica de mitos. O Olimpo era a residência dos deuses helênicos; as pirâmides egípcias, incas, maias e aztecas erguiam-se em busca dos céus; no Monte Arará, a Arca de Noé desembarcou a bicharada para reinício da obra da criação. Escalar o monte trazia não só a possibilidade de ampliar os limites físicos, mas trazia atrelada, uma força transcendental, uma aproximação com o sagrado . Do topo o homem mistura-se a deus, bebe nas fontes do divino.
A partir do Século XVIII, já em plena égide do iluminismo, o montanhismo começou a untar-se menos do ritualístico. Os homens abandonaram, aparentemente, seu caráter mais primitivamente sagrado e uma certa laicidade lhe deu características de esporte. Pouco a pouco, se tomou como desafio pisar em picos jamais alcançados anteriormente pelo pé humano. O Mont Blanc nos Alpes alcançado, em 1786, talvez demarque o ponto chave desta ânsia desbravadora , batizada de Alpinismo, que já se fazia presente desde os finais do Século XV. Em 1953, por fim, o Ocidente tocou o Everest, o teto da terra. Transformado em esporte, o montanhismo, no entanto, não perdeu de todo suas mitológicas nuances originais. Existe alguma coisa de radical , além da mera dosagem de adrenalina ,pulsando nas veias dos alpinistas.
Quando escalamos a montanha mais alta, no fundo, simulamos o nosso alpinismo vital. O pico parece inatingível. Pomo-nos a subir, lentamente, pedra por pedra, fincando grampos e pítons de segurança nas fendas disponíveis. Abaixo, a todo momento, o abismo ávido nos espreita. Existem muitos outros companheiros de escalada, mas cada um segue seu caminho único e pessoal. A cada momento, num vacilo : uma queda seca para o nada. O gelo, o cansaço, a fome corroem a esperança. E o paredão lá permanece: desafiador, zombeteiro, impávido. À medida que subimos a temperatura se torna mais insuportável e o ar mais rarefeito. Se a morna sorte nos bafeja a face, um dia, em meio a todas as intempéries, chagamos no topo. Observamos o mundo ao derredor com um ar cansado e vitorioso. Algumas fotos guardarão a memória deste momento único. E nem nos perguntaremos o que ali fomos buscar, qual prêmio almejávamos. Chegamos: é hora de voltar! E o caminho de volta é tão terrível como o de ida, com os mesmos riscos e precipícios. Se , por acaso, conseguirmos chegar no acampamento original, outras escaladas nos esperam, outros picos já nos chamam. Até o dia em que a sapatilha escorregará à beira do abismo e será a nossa vez de ensaiar o vôo de Ícaro. No final, perceberemos que o sentido do alpinismo encontra-se escondido não na alegria efêmera do pico, mas no suor derramado penosamente durante a travessia.

04/02/10