quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

A Festa de Olugbejé

Quem são estas figuras esquálidas , transpirando um consolado sofrimento, que se postam pacientemente sentados , em volta do Terreiro, como se esperando a aparição súbita da Virgem? Trazem consigo um ar cansado , como se houvessem sido arrancados, a contra vontade, de uma tela de Portinari. São faces apáticas , tintas de desencanto, onde no entanto, sublevam-se, misteriosamente, raros fios de esperança. À sua volta o Terreiro Axé Ilê Uilá, fazendo um brusco contraponto, explode de alegria. O calor de Agosto parece se amplificar nas cores branca, preta e marrom- rajado, em homenagem a Omulu. É a Festa de Olugbejé que reverencia o Orixá da Saúde e das Pestes. O Runtó , num canto, percutindo o atabaque, imprime um ar de estranho mistério no ambiente. A gugura é dada, fartamente, em oferenda ao Orixá. Quase que matematicamente os circunstantes saúdam Omulu:
---- Atótóo !!!!!
Em suas vestes sacerdotais, Pai Katolé, o Babalaoô do Axé Ilê Uilá, , ajudado pelo Pejigan , manipula calmamente o Rosário . Ao derredor seus filhos aguardam, ansiosos , abertura do Oráculo de Ifá.. Anualmente, já é uma tradição, no Olugbejé, Pai Katolé joga os búzios e ouvindo Orunmirá , faz as previsões para o ano vindouro.Fim de século, término de milênio, a solenidade religiosa tomava características bastante especiais. Esta é a razão maior para tamanha concentração naquela Segunda-Feira, no culto a Omulu.
---- Atótóo !!!!!
Em profundo êxtase, Pai Katolé toma da peneira com os 16 búzios sagrados- o Merindologún. A platéia, num misto de ansiedade e expectativa, aguarda as misteriosas palavras de Oludumaré , na certeza de que terá a antevisão do caos ou da bonança. Um agricultor do Barro Branco, face esculpida pelo barro e pelo Sol, adianta-se na primeira pergunta:
--- Teremos Inverno , nos próximos anos?
O Babalaoô arremesa os búzios sagrados e, enquanto os recolhe , meticulosamente, responde, com voz cavernosa:
--- Chuvas cairão, mais fortes em alguns locais e mais fracas em outros. Onde houver fartura Olurum mandará junto a alegria, onde houver seca dará força e resignação para vencer a sede e a fome.
---- Nosso povo será feliz no próximo milênio , Pai Katolé? Indaga uma mocinha , ainda não contaminada pelo amargor dos anos.
Búzios atirados, atenta leitura feita, o Sacerdote, pausadamente , retruca:
---- Impossível falar-se em felicidade por todo um milênio. A felicidade nutre-se na água da fugacidade. É volátil e transitória por própria essência. Fosse eterna, não teria qualquer significado, talvez se chamasse monotonia. Ela só existe com sua irmã xifópaga: a Tristeza. A felicidade, por outro lado, é um estado de espírito pessoal e intransferível, independe de tudo que está ao seu derredor. Não tem cabimento, pois, falar na felicidade de um povo ou de uma nação.
Os atabaques marcam ritmadamente as palavras do Pai de Santo.Sem piscar os olhos, a platéia bebe sôfrega os ensinamentos do Sacerdote de Ifá.
--- No próximo Século, Pai Katolé, os pobres terão direito ao Reino da Terra ou precisarão esperar pelas benesses do Reino de Olurum, após a morte?
Búzios abertos, búzios fechados... O êxtase... e a resposta:
---- A terra não foi criada para ser o paraíso de poucos, o purgatório de alguns e o inferno de muitos.Este estado de coisas foi criado pelo próprio Homem e pelas forças negativas espirituais.O Homem tornou-se a anti-matéria do próprio Homem.Só teremos dois caminhos a seguir: ou viveremos com alguma equidade social ou nos auto-extinguiremos como espécie, no planeta.
--- O que o futuro, enfim nos proporcionará? O que dizem os búzios?
Olhos fitos na peneira, Pai Katolé em transe, declara:
---- O futuro, amigos, não são as páginas subseqüentes de um livro, previamente escrito e editado. O futuro é uma página em branco e que cabe a nós rascunhá-la , com as multicoloridas tintas da aquarela, com o rubro da violência ou com o preto – e –branco da trivialidade. O futuro é, pois, inescrutável, pois ele existirá como mero reflexo do que formos projetando no presente. Esta pergunta não deve ser feita aos Orixás , mas a nós próprios.
Por fim , um velho de barbas brancas caídas ao peito, interroga:
---- Qual serão os acontecimentos mais importantes do próximo milênio?
Pai Katolé lança os búzios, num movimento nervoso. Os olhos brilhantes fitam-nos dispersos erroneamente na peneira. O Babalaoô, com voz doce, conclui:
---- Muitos acontecimentos pretensamente soberbos acontecerão nos próximos mil anos, mas os mais importantes continuarão sendo: a alternância do sol e da lua, a áurea e púrpura floração do Pau-d’arco nas encostas das serras e o voejar despretensioso das borboletas nos campos de girassóis...

30/12/09

sábado, 26 de dezembro de 2009

O Ovo do Sonho


Por um momento ainda tentou acreditar , enquanto cantarolava: "Eu sou o bom, sou o bom, sou o bom....", tentou acreditar que a imagem refletida no espelho do banheiro era a sua . Era sim aquele ali era o "Negro Gato de Arrepiar" , o tremendão espedaçador de corações; não havia nenhuma dúvida. Há pouco recebera o convite de um Cara, convidando-o para uma Tertúlia, uma reunião jamais imaginada: os mais importantes Conjuntos musicais do país: The Fevers, Os Pholhas, Os Golden Boys , ali estariam num encontro inimaginável e histórico. Ensaiando os passos ziguezagueantes do Twist, arrancou do Guarda-roupa a velha Calça Lee , boca de sino; o empoeirado sapato cavalo de aço; a Camisa Volta ao Mundo e o negro blusão de couro. Com habilidade arqueológica, exumou da gaveta o colarzão metálico e o pôs cuidadosamente no pescoço, após vestir toda aquela indumentária em feitio de armadura medieval que, não entendia bem porque, ainda ontem tão perfeita, hoje mal cabia no modelo. Aplacou um pouco o cheiro de mofo das vestes com o inconfundível : "Topaze" da Avon. No momento exato em que banhava a vasta e negra cabeleira com a insuperável Brilhantina Glostora , é que lhe veio o primeiro sobressalto: havia algo de errado com a lâmina do espelho( Ah essa tecnologia moderna!): a juba refletia-se estranhamente rala , teimando em não fazer topete e em não cair nos ombros, e, possivelmente por conta do reflexo da florescente, os cabelos mostravam-se grisalhos, como se alguém (quem sabe, o tempo?), numa daquelas freqüentes gozações, lhe tivesse atirado Maizena. Rapidamente desviou o olhar para as costeletas : duas botinas de cano largo, que ali estavam tal e qual um elmo : de fazer inveja ao próprio Elvis. Solfejando: "Vejam só que Festa de Arromba, noutro Dia eu fui parar"... folheou desordenadamente a velha agenda, até encontrar o telefone da Mariazinha : Será que ela ia para a Tertúlia? Tantas vezes me rejeitou "só porque sou pobre demais", pensou. Quem sabe ,hoje, a lábia tradicional, a cantada tantas vezes insulsa não faria efeito? Tentou discar várias vezes. Não entendia por que , sempre atendia uma voz chata e monocórdica pedindo para verificar novamente o número, que não tinha 07 dígitos, dizendo ser de uma tal de Telemar . Nem sequer falava na SERTESA.
--Encontro com ela, por lá!
Na rua buscou com os olhos o famoso "Mustang Cor de Sangue". Como só avistasse um fusquinha estranhamente familiar, entrou cantando "Meu Calhambeque, bibite..." Ah! Mas o carango não quis pegar na chave, pois aí pegou no tranco mesmo : "With a Little Help From My Friends". Saiu em disparada, como que derrapando nas tortuosas curvas da estrada de Santos e ia matutando com seus colares: "Existem mil garotas atrás de mim .
Entrou no Clube. Aos poucos, na penumbra, foi reunindo a velha patota. Estavam lá , alegres todos , mas um pouco distantes , como se atônitos se mostrassem sobreviventes de alguma catástrofe longínqua e impalpável. O Rum com Cola foi desanuviando os semblantes e , em pouco, estavam todos no ponto, morou? No palco, os Fevers apareceram quentes como nunca. Enquanto os Pholhas tocavam, alguém se lembrou, discretamente, de algum outro tipo de folha bem mais inflamável e que rolou incandescente de mão em mão , levando, magicamente, os jovialíssimos Golden Boys a brilharem em feitio de cometa, como certamente nunca tinham resplandecido até então.
--"Bicho, olha quem tá ali!"
Não soube nunca ao certo quem teve, na rodinha, aquela iniciativa. Olhou do lado e ali estava, a paixão da sua vida; aquele broto a que mais amou . E dela, até aquela data, sequer ao menos tinha ganho um beijo, um toque mínimo que fosse... ou seria por isso mesmo que tanto ainda a amava? Algum louco já dissera ela tinha se casado e separara há pouco tempo, mas agora, não tinha nenhuma sombra de dúvida: tinha sido, ao certo, um simples namoro, uma volátil chuva de verão. Mariazinha era a mesma menina na sua saia plissada, nos seus olhos negros, profundos e expressivos ; no seu sorriso sensual, leve e enigmático. Tentou balbuciar alguma coisa, algo assim como: "Você é o tijolinho que faltava na minha construção"... mas percebeu que todas as palavras pareciam supérfluas e desnecessárias: a orquestra atacava de "And I Love Her ". Simplesmente tomou-a nos braços e começaram a dançar num espaço infinito, etéreo e atemporal, como se passado e presente houvessem se fundido: como se a vida tivesse se iniciado naquele exato momento, rompendo com estardalhaço o ovo do sonho que havia hibernado por tantos e tantos anos...


26/12/09

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Peru de Natal

Dr. Túlio Montenegro parou por um momento, no pequeno ambulatório de Cirurgia, observando aquela senhora atarracada e gorducha.Ela entrava para a revisão , com um enorme sorriso estampado no rosto. Em meio àquela simpatia explícita, ele disfarçou um pouco o cansaço e sequer percebeu a enorme caixa que ela trazia nas mãos, amarrada desajeitadamente com cordões. Por um buraco ,no topo, em feitio de periscópio, emergia a cabeça negra e o bico vermelho daquilo que demorou muito a perceber se tratar de um peru.”Taqui queu trouxe pro Senhor, Dr. Túlio” -- foi logo gritando a velha bonachona, desfiando um rosário de agradecimentos, pelo tratamento recebido e pela cura. Dr. Túlio já se acostumara àquilo e agradeceu do fundo do coração pelo presente. Paciente rico sequer retribui o favor, acha que foi tudo obrigação e reclama das mínimas coisas . Aprendera, no entanto, que os pobres mostram-se assim: agradecidos, despojados e são eles que acabam fazendo ou destruindo famas. É que existem tantos e tantos no país e fazem-se tão solidários entre si, que funcionam como uma grande agência publicitária :levam suas mágoas ou agradecimentos de língua em língua, de casa em casa : vox populi, vox dei .Pensou , enquanto a examinava, após um muito obrigado efusivo, na tarefa , digna de Indiana Jones, para transportar aquele presente do interior do estado até à capital. Primeiro a cuidadosa engorda do bicho, forçando milho de goela abaixo, por alguns meses. E o tratamento dos gogos eventuais? Depois a difícil embalagem da ave tão grande, contida dentro de uma caixa de papelão. Sem falar nas dificuldades do transporte do peru, dentro do ônibus, sob protesto do cobrador de dos outros passageiros. Depois ela ainda teve que empreender a caminhada da rodoviária até o hospital , com o peso da penosa grande e gorda e dos anos da carregadora.Aquilo sim, pensou Dr. Túlio com os botões da bata branca, aquilo sim senhor é que era uma retribuição, um reconhecimento pelo trabalho prestado e que gratificava sua alma bem mais que muitos pagamentos de cirurgias de novos ricos.
Depois que a encorpada paciente por fim deixou o consultório, Dr. Túlio acordou para o problema que agora tinha às mãos. Faltavam ainda uns dois meses para o Natal, morava num apartamento confortável e amplo, mas num apartamento ! Não tinha chácaras. Onde diabos iria hospedar aquele bípede por tanto tempo ? Colocou-o na mala do carro e partiu para casa, após o expediente. Ao chegar, já levou uma bronca da mulher pela aquisição de um novo e incômodo hóspede. “Vai melar tudo, não tem lugar para botar este bicho aqui, é melhor dar para o vigia”.Dr. Túlio, pacientemente, explicou à esposa o esforço da senhora para trazer o presente , não parecia justo e cristão livrar-se da lembrança. Finalmente acordaram que o peru ficaria amarrado na área de serviço , esperando para nutrir a ceia de natal dos Montenegro. O bicho acomodou-se por lá. Manteve aquele ar meio passivo, aquele olhar vívido e atravessado e só soltava sua salva de gluglus quando a filha menor de Dr. Túlio, punha-se a incentivar a ave com assovios.A menina, aos poucos foi se afeiçoando ao peru. Sua cachorrinha poodle, Filó, com o passar dos dias, criou uma amizade estreita com o bicho, a tal ponto que só dormia com a cabeça recostada nas suas asas. O afeto da criança terminou por contagiar a babá , a cozinheira e, por fim, a mãe que descobriu a importância da amizade natural que brotou dentro de sua casa e que de alguma maneira contagiou a todos.
Semana antes do Natal, Dr. Túlio Montenegro lembrou-se de um outro desafio. Diferentemente dos perus da Sadia, era preciso matar aquele animal enorme, de véspera. Quem diabos sabia mais fazer isto ? Depois do galeto congelado, do chester temperado, todo mundo desaprendera o ritual macabro : embebedar o peru com aguardente, sangrá-lo friamente , quando já estivesse grogue, pôr na água fervente, despelar e tirar os canhões... Desesperou-se quando descobriu que já não existiam, nesta geração, carrascos de peru! Alguém no hospital informou de uma atendente de enfermagem que era metida em magia negra e que possivelmente ainda devia manter a frieza necessária para tamanho assassinato. Procurou-a e combinou com ela, quase que clandestinamente, como se premeditasse um crime, a possibilidade de realizar este trabalho sujo. Um pouco a contragosto a empreita foi acertada.
Véspera de Natal, a calamidade! Dirigiu-se à área e pediu à cozinheira que colocasse o peru na caixa pois ia levá-lo ao sacrifício. Aí veio a avalanche: a filha começou a chorar e a gritar, a cozinheira e a babá , emburradas adiantaram que não preparariam o peru abatido e a esposa, berrando , avisou logo que se ele inventasse de matar o bichinho, simplesmente não haveria clima nenhum para se fazer a ceia de natal.Até Filó latia sem parar como se acuasse tatu. Dr. Túlio, diante de tantos advogados peruanos, não teve outro jeito, senão recuar. No outro dia, iluminou-se com a certeza de que nunca tinham feito uma ceia mais imersa no espírito natalino. Na área o peru e Filó como que reconstituíam a majestosa cena da manjedoura . Aos amigos e colegas que a partir daí, cientes da história, o perguntavam quando ia matar o peru, ele respondia com o sorriso que havia roubado daquela humilde senhora do interior :
--- O peru, meus amigos, vai morrer de velho, agora ele já é Montenegro !

22/12/09

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Olhe aqui, meu senhor!

Acredito que nada existe tão sincero e objetivo quanto aquele bilhete de despedida dos suicidas. Nele se colocam as verdades cruas e sem dissimulações, mesmo porque este tipo extremo de literatura não permite revisão e copidescagem. O estilo , normalmente , tende a ser mais substantivo e menos adjetivo. Quem mergulha nos mistérios da escrita busca a transparência dos suicidas. Percebe-se bem que os grandes textos são escritos com aquela certeza do testamento derradeiro, como se o autor estivesse subjetivamente deixando a vida para entrar na história. E num mundo tão pouco poético como o que vivemos, onde esmaeceram definitivamente as amarras do sonho, do mito, da transcendência; quem já não pensou, seriamente, em deixar este mundo pela porta dos fundos ? Muitos talvez tenham desistido com a certeza que a vida é insignificante demais para merecer um ato tão heróico. Este assunto veio à baila, quando me lembrei, esta semana da carta de um primo que , anos atrás, buscou a solução definitiva, na tentativa de afastar-se dos fantasmas que o perseguiam sem nenhuma trégua. Entre as mensagens que legava para a família, sem maiores ressentimentos, terminava com uma declaração de amor a uma de suas paixões : “E sempre fui Vascão!”
Não sei bem como, esta frase tocou-me a mente, já passados quase trinta anos do trágico acontecido, no momento em que, por ironia, o Flamengo chegava ao Hexa-Campeonato. Como rubro-negro, misturei minha alegria à satisfação de uma imensa torcida se que espraiou por todos os cantos do país. No fundo, imaginei que lá chegaríamos, pois, este ano, tínhamos enviado para junto dos anjos dois flamenguistas do mais fino jaez : Seu Almir Carvalho e o grande Orney Moura. Certamente eles lá estavam, cutucando nossos santos protetores, mexendo os pausinhos e secando, , dissimuladamente, concorrentes como o São Paulo e o Internacional.
Observando aquela explosão coletiva de euforia por parte da seita rubro-negra e , por outro lado, os atos de vandalismo da torcida do Curitiba, pelo rebaixamento à segunda divisão, pus-me a refletir sobre a fonte de tamanha exaltação que , às vezes , chega a beirar o fanatismo. A televisão só se apoderou das casas e consciências , aqui no Cariri, aí pelos anos 70. Antes disso assistíamos às partidas de futebol apenas pelo Rádio. Até os jornais, entre nós, não chegavam com regularidade. Que magia fazia com que as crianças escolhessem um time para torcer ? Muitos delas nunca tiveram o prazer de ver seus times jogar e, tantas vezes, sequer jamais conheceram fotografias dos seus ídolos. E mais, time de coração é para toda a vida, independentemente de desempenho, de vitórias, de campeonatos. Talvez a paixão do torcedor seja aquela única eterna, definitiva: até que a morte os separe; ou talvez mesmo sobreviva à foice da velha, como , agora, Seu Almir e Orney parecem provar. De que fonte flui tamanho potencial de energia ? Que força misteriosa faz com que o menino ainda pequeno já comece a balbuciar o nome do seu time predileto?
As guerras tão freqüentes na história da humanidade foram, paulatinamente, sendo substituídas pela diplomacia. Nossa sanha quase selvagem de ver escorrer o sangue dos inimigos se foi transferindo, pouco a pouco, para os coliseus. As batalhas hoje se travam, na sua maior parte, nos estádios. No fundo, no inconsciente coletivo, se assiste ao embate não de duas equipes esportivas, mas de dois exércitos. Por isso mesmo é que muito facilmente os estádios se transformam em campo de guerra e o que aparentemente parecia uma simples competição esportiva termina por reeditar as antigas batalhas com muitas baixas e feridos. Os jogadores vencedores são heróis imediatos e louvados como guerreiros míticos. Quando a Seleção Brasileira ganha da Argentina é como se tivéssemos, novamente, vencido a Batalha de Monte Castelo.
Quando diplomata em Los Angeles , Vinicius de Morais conheceu um milionário que não compreendia a razão do poeta querer voltar desesperadamente para o Brasil. Como, se estava residindo no paraíso terrestre, arrodeado das maiores beldades de Hollywood, circulando nas mais sofisticadas rodas da capital mundial do cinema? Em um poema chamado : “Olha aqui, Mister Buster”, Vinicius definiu claramente como é construída a escala de valores de cada um de nós:


“Me diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster:
O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?
O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?
O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?”

Além, muito além do paraíso artificial ofertado pela mídia, pelo consumo, existe, dentro de cada um de nós o sabor inefável dos pequenos prazeres, dos mais simples e inexplicáveis quereres. Ferrari novinha, Bolsa Louis Vuitron, Iate, Hotel 5 Estrelas ? Tudo bem, legal, legal... Mas sabe lá você o que é filhós, o que é um doce de leite da Isabel Virgínia, o que é um baião de dois com pequi, o que é um sanduíche do Enoque, meu Senhor ? O que é torcer pelo Mengão, Mister Buster ?
18/12/09

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

L´état c´est moi


Genealogia é coisa de gente importante e abastada. O cabra melhora de vida, toma ares de emergente e, de pronto, vai escarafunchar as origens. No fundo, quer mostrar que se trata de um PO, puro de origem, que sua boa condição atual não foi um simples acaso, um mero golpe de sorte. “Meu bisavô foi herói na Guerra do Paraguai !” “ Meu tataravô herdou todas as terras onde hoje se situa a cidade de Matozinho!” Como, entre nós, mais cedo ou mais tarde , todas as linhagens chegam invariavelmente na Taba ou na Senzala, há que se usar inúmeros artifícios no intuito de manter a pureza e nobreza dos ascendentes. Como índio e escravo não possuíam documentos, vão sendo apagados das árvores genealógicas, citados apenas pelo primeiro nome e, no geral, se lhes dão profissões tidas como mais nobiliárquicas: proprietário rural, empresário,comerciante etc. Desde a Colônia, os trabalhos manuais sempre foram tidos como coisa de gentinha, os artesãos, assim, tornam-se fantasmas nestas árvores, frutos que se vão encobrindo por trás das ramagens dos anos. A pobreza pode até ser divulgada e enaltecida desde que o pé rapado, no transcorrer da existência, tenha dado a volta por cima e se tornado um herói, um político poderoso , um artista, uma pessoa famosa. A coisa é tão séria que os espiritualistas buscam, também, construir sua Árvore Genealógica da pré-vida, num trabalho quase que arqueológico, montam o que cada um foi em outras encarnações. Poucas vezes reencarnamos como escravos, como mendigos, como bandidos, o mais freqüente é ter sido filho de um Faraó, ter vivido como nobre da Corte de Luiz XV, ter-se investido no corpo de algum General do exército napoleônico. Talvez, no fundo, todos lutem por dar algum sentido a suas vidas, procurando lastros, lançando âncoras na tentativa de fundear nossos navios existenciais que singram a deriva em meio ao tsunami da morte de todos os dias.
Cerdônio Benuar chegou a Matozinho aí pela década de 1920. Tornou-se um próspero comerciante na cidade e, no inventário, legara aos descendentes além de inúmeras propriedades , mais de vinte imóveis na Vila. Os filhos e netos tocaram os negócios do velho com muita maestria e foram ampliando sobremaneira o patrimônio da família. Quebraram a inflexível regra de “Pai rico-filho nobre-neto pobre”. O sobrenome Benuar Cerdônio legou também aos seus descendentes, no entanto, desde tempos imemoriais a família era conhecida como “Canela Preta”. Talvez a mudança tenha advindo da estranheza do “Benuar”. Consta que os filhos primogênitos do patriarca ainda andaram puxando peixeira por conta da denominação. Nos anos 40, no entanto, Caledônio, um dos filhos mais novos, enveredou pela política e assumiu , de vez, o sobrenome. Depois de muitas e muitas eleições, a família terminou assimilando definitivamente o “Canela Preta”. Junto à assimilação, no entanto, vinha anexa toda uma mitologia gloriosa e épica sobre o nome familiar.
Segundo eles, o primeiro Benuar teria vindo fugido da França. Célion era filho de Luiz XVI e de Maria Antonieta e, na hora do pega-pra-capar, em plena Revolução, uma mucama chamada Louise Fragonard, havia fugido com a criança, no intuito de livrá-la da guilhotina. Em pleno inverno, fugindo a pé, haviam, por fim , chegado a uma pequena cidade do Sul da França chamada de Tarbes. Chegaram enlameados e sujos . Louise contou uma história fantasiosa que havia fugido de um marido louco e violento que queria matar a ela e ao filho. Ali ficaram conhecidos como os “Pied Noir”, ou , na tradução, os pés pretos. O “Pied Noir” terminou virando na corruptela de “Benuar” . Fugiram depois para a cidade de Viseu, em Portugal, uma vez que estavam sendo perseguidos pelos revolucionários e seus asseclas. Célion casou ainda em Portugal e gerou uma única filha : Leopoldina Benuar. Ela seria a avó de Felipe Benuar que veio morar no Brasil e que teve entre sua descendência Cerdônio Benuar aquele que veio bater em Matozinho. A família explicava que por conta do francês “Pied Noir” , pé preto, é que veio o Benuar, que em Matozinho, para facilitar as coisas, virou : ”Canela Preta”. Os “Canelas Pretas” geralmente terminavam a narração da história declarando : se voltar a Monarquia na França, nós vamos reivindicar nossos direitos, pois somos co-sanguíneos de Luiz XVI: “O Estado é nóis mermo aqui!”.
Esta era a versão épica apresentada pela família . Existia, no entanto, uma outra menos heróica e mais plausível e que circulava, à sorrelfa, de boca em boca. Quem a narrara, pela primeira vez, havia sido o velho Sinfrônio Arnaud, já beirando o próprio centenário. O homem guardara a versão oficiosa quase como segredo de estado, pois sempre se fizera grande amigo dos “Canelas Pretas”. Só contara porque, segundo os amigos, já nos noventa, andava “tresvariando” . Cerdônio, segundo o velho Arnaud, era filho, na realidade, de uma prostituta antiga de Matozinho chamada Judite. Ela ali fundara um dos primeiros rendez-vous da cidade conhecido por todos por “Caçuá”. O nome Benuar, na realidade, seria uma corruptela de “Caçuá” e não sobrenome porque , rodada como era Judite, seria impossível saber quem era o pai sem fazer exame de DNA em todos os homens casados e solteiros da redondeza. Embora existissem suspeitas sérias em cima do Padre Umbelino Candeia. Bom, e o sobrenome famoso “Canela Preta” veio por conta da atividade primeira de Cerdônio, nada higiênica: “Esgotador de Fossa”. O homem , trabalhador como era, vivia com as canelas pretas , calabreadas de excremento.
Bem, amigos, aí vão as duas versões. Escolham a que melhor lhes apetecer. A genealogia de Celedrônio não é diferente de tantas outras fabricadas por aí. De qualquer maneira, se um dia forem a Matozinho, aconselho que esqueçam a versão do velho Sinfrônio Arnaud. Ninguém tem pé-de-ouvido prá fuxico, nem barriga prá amolar lambedeira de doze polegadas.

10/12/09

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Meias & Cuecas

Pois é, amigos, se restou ainda uma quotinha de indignação por aí, guardem com muito carinho. Não vai faltar oportunidade de usá-la. Agora mesmo estourou mais um escândalo: a distribuição de dinheiro, arrecadado pelo comércio de licitações, em Brasília, por José Roberto Arruda, Paulo Octávio e seus asseclas do Democratas e quadrilhas outras afins. Desta vez, nem o galho de arruda pode nos socorrer. As imagens colhidas pela Polícia Federal parecem irrefutáveis, mas claro, fazem-se necessárias outras provas: a venérea pode ter sido contraída na bacia sanitária mal higienizada. Permitam-me, mais uma vez ,refletir sobre assunto tão repetitivo no noticiário nacional.
Primeiro, acredito que a atividade política está intimamente ligada à corrupção, ao favorecimento, ao compadrio, ao tráfico de influências. E isto não só no Brasil. Há apenas países em que o controle é mais rigoroso. Não existe uma linha divisória clara entre a política partidária e a contravenção. Entre nós, esta realidade é visível em todas as esferas da nação, uma simples gestão de uma associação comunitária, dificilmente será aprovada por uma auditoria minimamente séria. Não há eleição sem caixa 2, sem entrada de dinheiro sujo, sem negociação de cargos, de licitações, sem a semeadura inevitável do nepotismo. A política tem uma ética própria que hoje deixaria Maquiavel próximo ao processo de canonização. A bandalheira independe de desenvolvimento econômico, de forma de governo, de sigla partidária. A diferença básica está apenas onde a grana será depositada : na cueca ou na meia. A meu ver, o único filtro para a mamata desenfreada encontra-se no amadurecimento político do povo. Basta que o corrupto seja eliminado sumariamente pela cimitarra do voto para as coisas começarem a entrar nos eixos. Vejam a realidade brasileira: Arruda e Paulo Octávio já possuíam uma folha corrida péssima, que os tinha levado à renúncia temendo o impeachment, mas mesmo assim foram reeleitos pela população sem nenhuma dificuldade.
Querem ver outra curiosidade? Sete pedidos de Impeachment de Arruda até hoje já haviam sido protocolados no STF. Os partidos que davam apoio ao governo dele e se beneficiavam, rapidamente saltaram do barco: dizem que os ratos são os primeiros a perceberem o rombo no casco. O pedido da Bancada Evangélica, então, me pareceu interessantíssimo. O motivo não se ateve ao fragrante ilícito filmado e registrado continuadamente pelas câmeras, mas a uma outra causa bem insólita. Em um dos vídeos, após pôr a mão na bufunfa, a quadrilha fez uma corrente de oração, agradecendo ao Criador, pelo dinheirinho farto e fácil. Terá sido porque estes fragrantes já aconteceram também com alguns pastores e tudo, assim, torna-se perfeitamente normal? Ou porque não recolheram o dízimo da dinheirama? A CNBB também, em nota, se mostrou indignada com o uso de preces em momento tão pouco especial. Lá vou eu meter meu bedelho e enfiar uma outra reflexão, goela abaixo.
Ora, a oração feita pelos ladrões, agradecendo pelo furto aos céus, a meu ver, é perfeitamente cabível. Nossa relação antiética não é apenas com o profano, ela se estende a todas as nossas atividades humanas, inclusive ao nosso relacionamento com o sagrado. Vejam as promessas que fazemos aos santos. A maior parte das vezes, propomos uma espécie de escambo: se passar no concurso, meu São Sebastião ( claro que prejudicando vários outros que não tiveram a intercessão divina) eu dou duas sacas de feijão para a igreja. A mocinha amarra a imagem de Santo Antonio de cabeça para baixo, em um copo de água, e promete só libertá-lo se conseguir um marido. Ou seja, seqüestra e tortura o santo para conseguir seu intento. A mulher que todo ano faz a procissão de São José, em Março, em ano de seca, aproxima-se da imagem e ameaça: --- Se esse ano não chover, tu num vai ter procissão , não, viu ! Conheci uma senhora que praticava abortos, mas não os fazia nos domingos, por conta de uma promessa que tinha feito com Nossa Senhora do Carmo. O comerciante comete todas as falcatruas imagináveis, mas todos os anos ajuda na Festa da Padroeira e isso, por se só, o faz puro e imaculado. Todos essas condutas trazem embutidas uma ética bastante particular, condutas aparentemente cristãs, mas francamente pagãs na sua essência.
Arruda e Paulo Octávio não são muito diferentes da imagem de cada um de nós refletida no espelho. Quantos de nós não encheriam as meias, da mesma maneira, se tivéssemos a oportunidade ? O crime maior não terá sido terem filmado aquilo que todos nós já sabíamos? O mundo só vai mudar quando a indignação de cada um de nós se estabelecer na urna e não nas conversas de bar, entre um e outro scotch. E quando o preço da ilegalidade passar a ser pago na prisão e não nos templos, em módicos dízimos mensais.

03/12/09