terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Peru de Natal

Dr. Túlio Montenegro parou por um momento, no pequeno ambulatório de Cirurgia, observando aquela senhora atarracada e gorducha.Ela entrava para a revisão , com um enorme sorriso estampado no rosto. Em meio àquela simpatia explícita, ele disfarçou um pouco o cansaço e sequer percebeu a enorme caixa que ela trazia nas mãos, amarrada desajeitadamente com cordões. Por um buraco ,no topo, em feitio de periscópio, emergia a cabeça negra e o bico vermelho daquilo que demorou muito a perceber se tratar de um peru.”Taqui queu trouxe pro Senhor, Dr. Túlio” -- foi logo gritando a velha bonachona, desfiando um rosário de agradecimentos, pelo tratamento recebido e pela cura. Dr. Túlio já se acostumara àquilo e agradeceu do fundo do coração pelo presente. Paciente rico sequer retribui o favor, acha que foi tudo obrigação e reclama das mínimas coisas . Aprendera, no entanto, que os pobres mostram-se assim: agradecidos, despojados e são eles que acabam fazendo ou destruindo famas. É que existem tantos e tantos no país e fazem-se tão solidários entre si, que funcionam como uma grande agência publicitária :levam suas mágoas ou agradecimentos de língua em língua, de casa em casa : vox populi, vox dei .Pensou , enquanto a examinava, após um muito obrigado efusivo, na tarefa , digna de Indiana Jones, para transportar aquele presente do interior do estado até à capital. Primeiro a cuidadosa engorda do bicho, forçando milho de goela abaixo, por alguns meses. E o tratamento dos gogos eventuais? Depois a difícil embalagem da ave tão grande, contida dentro de uma caixa de papelão. Sem falar nas dificuldades do transporte do peru, dentro do ônibus, sob protesto do cobrador de dos outros passageiros. Depois ela ainda teve que empreender a caminhada da rodoviária até o hospital , com o peso da penosa grande e gorda e dos anos da carregadora.Aquilo sim, pensou Dr. Túlio com os botões da bata branca, aquilo sim senhor é que era uma retribuição, um reconhecimento pelo trabalho prestado e que gratificava sua alma bem mais que muitos pagamentos de cirurgias de novos ricos.
Depois que a encorpada paciente por fim deixou o consultório, Dr. Túlio acordou para o problema que agora tinha às mãos. Faltavam ainda uns dois meses para o Natal, morava num apartamento confortável e amplo, mas num apartamento ! Não tinha chácaras. Onde diabos iria hospedar aquele bípede por tanto tempo ? Colocou-o na mala do carro e partiu para casa, após o expediente. Ao chegar, já levou uma bronca da mulher pela aquisição de um novo e incômodo hóspede. “Vai melar tudo, não tem lugar para botar este bicho aqui, é melhor dar para o vigia”.Dr. Túlio, pacientemente, explicou à esposa o esforço da senhora para trazer o presente , não parecia justo e cristão livrar-se da lembrança. Finalmente acordaram que o peru ficaria amarrado na área de serviço , esperando para nutrir a ceia de natal dos Montenegro. O bicho acomodou-se por lá. Manteve aquele ar meio passivo, aquele olhar vívido e atravessado e só soltava sua salva de gluglus quando a filha menor de Dr. Túlio, punha-se a incentivar a ave com assovios.A menina, aos poucos foi se afeiçoando ao peru. Sua cachorrinha poodle, Filó, com o passar dos dias, criou uma amizade estreita com o bicho, a tal ponto que só dormia com a cabeça recostada nas suas asas. O afeto da criança terminou por contagiar a babá , a cozinheira e, por fim, a mãe que descobriu a importância da amizade natural que brotou dentro de sua casa e que de alguma maneira contagiou a todos.
Semana antes do Natal, Dr. Túlio Montenegro lembrou-se de um outro desafio. Diferentemente dos perus da Sadia, era preciso matar aquele animal enorme, de véspera. Quem diabos sabia mais fazer isto ? Depois do galeto congelado, do chester temperado, todo mundo desaprendera o ritual macabro : embebedar o peru com aguardente, sangrá-lo friamente , quando já estivesse grogue, pôr na água fervente, despelar e tirar os canhões... Desesperou-se quando descobriu que já não existiam, nesta geração, carrascos de peru! Alguém no hospital informou de uma atendente de enfermagem que era metida em magia negra e que possivelmente ainda devia manter a frieza necessária para tamanho assassinato. Procurou-a e combinou com ela, quase que clandestinamente, como se premeditasse um crime, a possibilidade de realizar este trabalho sujo. Um pouco a contragosto a empreita foi acertada.
Véspera de Natal, a calamidade! Dirigiu-se à área e pediu à cozinheira que colocasse o peru na caixa pois ia levá-lo ao sacrifício. Aí veio a avalanche: a filha começou a chorar e a gritar, a cozinheira e a babá , emburradas adiantaram que não preparariam o peru abatido e a esposa, berrando , avisou logo que se ele inventasse de matar o bichinho, simplesmente não haveria clima nenhum para se fazer a ceia de natal.Até Filó latia sem parar como se acuasse tatu. Dr. Túlio, diante de tantos advogados peruanos, não teve outro jeito, senão recuar. No outro dia, iluminou-se com a certeza de que nunca tinham feito uma ceia mais imersa no espírito natalino. Na área o peru e Filó como que reconstituíam a majestosa cena da manjedoura . Aos amigos e colegas que a partir daí, cientes da história, o perguntavam quando ia matar o peru, ele respondia com o sorriso que havia roubado daquela humilde senhora do interior :
--- O peru, meus amigos, vai morrer de velho, agora ele já é Montenegro !

22/12/09

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