sábado, 7 de junho de 2008

BZU 66

Marilaque, quando novinha, não era definitivamente de se jogar no lixo. O rosto, a sala de estar do corpo, não era lá estas coisas, os olhos bonitos e claros embaçavam-se em meio ao um nariz adunco e proeminente que dava sombra a uma boca um pouco rasgada demais. O corpo, no entanto, era sinuoso como um violão, os seios fartos e pontiagudos, a cintura finíssima e uma bunda tanajurosa de fazer inveja a muitas mocinhas da sua geração. O conjunto agradava, mesmo porque homem foge dos detalhes, não percebe culotes, estrias celulites : invenções de outras mulheres fofoqueiras e de bichas. O corpão de longe parecia de cara muito convidativo e isto na verdade era o que interessava. Namorou bastante, num tempo em que se permitia apenas a mão naquilo e aquilo na mão; aquilo naquilo terminava sempre no altar , na polícia ou em capação. O problema maior de Marilaque diziam as amigas: a menina mostrava-se banqueira demais, cheia de riquififes, para namorar até que não escolhia tanto, mas na hora de casar só queria árvore frondosa tipo : juiz, médico, promotor, banqueiro. Com opções tão restritas , o tempo se foi escoando e quando Marilaque deu por si a juventude havia evaporado, junto com sua inebriante essência. Demorou um pouco, assim, em alargar os critérios rigorosos para escolha matrimonial e quando cuidou já era tarde demais. Todos os homens interessantes da sua geração haviam casado, os novos queriam uma espécie de indenização monetária para ficar ao seu lado e os descasados só se interessavam por meninas novinhas. Com pavor descobriu, já próximo aos quarenta, que suas chances haviam se acabado, que ficara pra titia. Tornou-se, então, uma das peruas mais deslumbradas de Matozinho, parecia um carro alegórico. Maquiagem carregada de palhaço, roupas arroxadíssimas, uma pastinha no cabelo desta que só senta em criança até os 12 anos e adereços dourados por tudo quanto era lado : brincos, cinto, fivela, colares, pulseiras, parecia um tabuleiro de Micheline.

Coroa, passou a freqüentar todas as festas que apareciam na região. Conseguiu até uns namorados, uns fica, mas nada de proposta matrimonial. Terminou por concluir, desesperadamente, que por vias comuns seria impossível arranjar marido. Decidiu , então, partir para o sobrenatural. Freqüentou terreiros, encomendou trabalhos, fez promessa com São José e nada de desencantar o príncipe. Recomendaram, então, Santo Antonio da Barbalha e seu Pau Miraculoso. No dia aprazado até tentou tomar chegada, mas a multidão gigantesca a impediu de se aproximar do mastro enorme da bandeira carregado por centenas de homens suados e embriagados. Temeu, inclusive, ser esmagada por aquele falus sagrado nos momentos em que o punham no chão. Teve então uma idéia sensacional, esperou a madrugada, se dirigiu então à praça da matriz e, com uma faca, tirou raspas de casca do pau do santo casamenteiro. Chegando a casa, fez um infusório delas com água fervente , deixou esfriar e depois acondicionou em um tonel de alumínio. Como o desespero fosse inimaginável, resolveu utilizar uma dosagem bem acima da prescrita normalmente pelas beatas de plantão. Durante toda a semana seguinte passou a utilizar o chá miraculoso em diversas vias de administração. Pingou nos olhos, como colírio, nos ouvidos como solução otológica, fez gargarejo e , finalmente, colocou o remédio numa bacia enorme e fez seguidos banhos de assento por mais de uma semana.

Depois do tratamento, Marilaque ficou esperando o resultado da magia. Não demorou muito e a simpatia, incrivelmente, passou a dar resultado: começou a ser assediada por inúmeros pretendentes. Animou-se toda , criou alma nova e ante tanta fartura, voltou à pabulice de sempre. Primeiro porque lembrou que o querido Santo casamenteiro tinha fama de escolher pouco os pretendentes. É que eram tantos os pedidos que chegavam ao seu departamento celeste que para dar de conta não podia ser muito exigente, ia despachando conforme a necessidade. Depois porque sempre fora mesmo cu doce e percebia os mínimos defeitos , todos eles graves e totalmente irreconciliáveis. O primeiro pretendente que a procurou era um senhor de meia idade, calmo e de vestes simplíssimas. O dispensou prontamente de início por conta dos visíveis sinais de pobreza, depois porque , estranhamente, andava arrodiado de passarinhos. Um preguiçoso daqueles não poderia sustentar uma casa ! O segundo noivo que lhe apareceu um cavaleiro montado em um lindo cavalo branco, vestido para guerra e empunhando uma longa e aguda lança. Um guerreiro, afeito aos campos de batalha, lá teria tempo de cuidar de uma esposa a contento ? Dias depois lhe bateu à porta um senhor de face sisuda emoldurada por uma barbichazinha branca, carregando uma criança de uns oito anos, propôs matrimônio, prometendo amá-la eternamente. Marilaque despachou-o afirmando que ele era muito velho para ela e , além do mais, não queria servir de babá para filho de ninguém. Finalmente, um belo dia, apareceu um cara altíssimo , de olhar penetrante, com um perfume estranho, fala envolvente e que lhe prometeu todas as riquezas deste mundo. Sequer precisou pedir-lhe a mão, arrebatou-a num pulo, levou-a para um banho de loja no shopping, carregou-a depois para uma Clínica de Cirurgia Plástica e lhe pagou um serviço geral de lanternagem. Saiu de lá com a cara da Angelina Jolie depois que caiu do avião. Foram então dias e mais dias de amor turbulento destes de pelar e assar todas as partes que tinham sido banhadas pelo infusório de Santo Antonio. A felicidade parecia completa até que percebeu que a placa da caminhonete Pajero do marido lhe parecia familiar: BZU 666. Tarde demais, viu-se de repente arrastada por uma força estranha para o firmamento. Despertou da vertigem , em cima de uma nuvem de onde se avistavam duas portas uma iluminada e resplandecente e a outra enferrujada, tosca, pavorosa. Enquanto era carregada para a porta negra por uma anaconda imensa, avistou um dulcíssimo Santo Antonio que lhe falou:

---- Vocês mulheres não têm mesmo jeito. Mandei três maridos perfeitos e você recusou, Marilaque. O primeiro São Francisco de Assis , mal teve tempo de falar com você. O segundo , São Jorge , no seu cavalo, teve que voltar para a lua imediatamente sem sequer ter recebido um minuto da sua atenção e o terceiro, São Vicente, só porque levava um meninozinho você pensou logo que o homem era pedófilo! Não tem jeito não, santo com vocês não leva vantagem nenhuma. O povinho pra gostar do satanás !


J. Flávio Vieira



terça-feira, 3 de junho de 2008

Enquanto isto em Matozinho...


O delegado Cilestrino Safanão vinha exercendo suas funções policiais em Matozinho havia já uns três ou quatro anos. Mais durão que coco babaçu , o homem ficara conhecido pela intransigência. Com o aparecimento quase que meteórico de juizes na região, ele se acostumara a investigar, prender, julgar e muitas vezes aplicar a sentença retirada o mais das vezes do Código de Hamurabi . Com ele não tinha arrodeios, cerca-lourenços, ia rapidamente ao âmago da questão e a velha palmatória que um dia a professora Genecilda Garrido utilizara como importante instrumento pedagógico na sua escola, era agora usada diariamente para arrancar à fórceps confissões dos detentos. Não havia crime que não fosse elucidado pelo caminho direto do réu confesso. A vila, desde que nosso delegado tomou posse, se transformara . Dormia-se de porta aberta. Ladrão , tirante os oficiais da prefeitura, sumiu de Matozinho. Os bêbados adquiriram uma harmonia e solidariedade difíceis de se ver em qualquer outro lugar deste mundão de meu Deus.

Um belo dia, Safanão comunicou que tiraria férias, coisa que nunca fizera desde que aportara por ali : andava meio cansado e queria passar um diazinhos na praia. Chamou então o cabo Oliveirão e lhe passou prontamente o bastão. O cabo transpareceu alguma preocupação com o novo cargo temporário; mas a vaidade falou mais alto, empinou os peitos e começou imediatamente a falar grosso e a dar esporros nos subordinados. Passou, na sua gestão, a aplicar o método Cilestrino de investigação. Batia primeiro e perguntava depois. Andava na cidade com ar imperial, em qualquer rodinha de praça esperava serem emitidas as várias opiniões para ele , majestosamente dar a palavra final. Tudo ia bem até que depois da primeira semana aconteceu o tsunami.

De repente a notícia tomou conta da cidade. Num átimo vários membros de duas importantes famílias políticas de Matozinho, os Candeia e os Mangabeira, inimigos figadais, invadiram a delegacia , de arma em punho, numa balbúrdia jamais vista. Eram facas, trinchetes, espingardas, garrunchas, num morre-mata terrível. Só após quase meia hora é que o delegado ad hoc Oliveirãoi conseguiu entender a sinuca de bico que teria que resolver. Zuzinha , filho do Cel Serapião Candeia , havia “bulido” com Dagimar, a filha única do Cel Uglino Mangabeira, seu ferrenho adversário político. A bomba relógio, pois , estava ali na frente do cabo , prestes a explodir. Ninguém na cidade sequer sabia que os dois jovens andavam namorando às escondidas , repetindo um Romeu & Julieta de capoeira. Matozinho ainda vivia num tempo em que virgindade de moça era tão intocável quanto o Santo Sudário. Ali na frente, pois, em meio aos impropérios de lado a lado estavam divididos, num casa-num-casa infernal os Montecchios e Capuletos matozenses. A qualquer momento a chacina poderia ter início, assim, um Oliveirão trêmulo e pálido tentou por alguma ordem na casa e falou aos gritos :

--- Calma ! Calma ! um de cada vez! Me diga aí Cel Uglino, afinal qual é sua queixa ?

--- Queixa que nada, peguei este salafrário que tá aqui na minha frente, mexendo com minha filha e pensei em capar o homem imediatamente, só não fiz porque não sei se a sem vergonha de minha filha tá prenhe deste desgraçado e não quero que meu neto nasça sem pai, mas este safado vai ter que casar é agora mesmo, seu delegado !

A turba que superlotava a delegacia se agitou e quase ia às vias de fato, num arranca-rabo terrível :

--- Casa ! Num Casa! Casa! Num Casa !

Um Oliveirão mais trêmulo que Toyota em Ponto Morto, teve que gritar novamente a plenos pulmões, antes que se iniciasse a terceira guerra mundial.

--- Calma ! Calma Pessoal ! Deixem eu continuar as diligências ! Cel Serapião Garrido, dê a sua versão dos fatos.

O velho Serapião, com cara de poucos amigos, lascou:

--- Oi aqui, seu delegado, se meu filho tiver devendo vai ter que pagar, agora o que soube é que tem muito cabra aqui em Matozinho escovando o fato desta D. Daguimar e meu filho não vai pagar sozinho não !

A coisa então esquentou de vez , em meio ao novo Casa-Num Casa, a peixeira caiu no centro e pelo menos cinco cabras saíram de bucho rasgado para o atendimento na Botica de Janjão. Só com um tiro pra cima desferido por um Oliveirão mais perdido que cachorro que cai de caminhão de mudança em noite de São João, conseguiu acalmar um pouco os ânimos. A turba então imprensou o delegado contra a parede querendo uma decisão final .

--- Casa ! Num Casa ! Casa! Num Casa ! Como é seu delegado, qual a decisão final ? Casa ou Num Casa ?

Oliveirão entendeu, claramente, que qualquer decisão que tomasse terminaria em tragédia, seria trucidado por um ou outro lado. Antes do cheque-mate, no entanto, respirou fundo e atacou:

---- Olhe, meu povo, calma ! Eu vou dizer uma coisa a vocês , nós vamos ter que esperar Cilistrino, pois ele me deixou aqui no lugar dele, mas com funções bem claras : na área de roubo, resolva só até surrupiamento de galinha. Na área de violência você só tem ordem para resolver até tapa em pé de ouvido e pisão em dedo mindinho e na área sexual, seu Oliveira, você só tem competência para resolver até punheta, joviu ?

J. Flávio Vieira