quinta-feira, 14 de agosto de 2008

É DE UVA...
















Clodoveu Macambira aparentava uma saúde de ferro. Montado no alto dos seus sessenta e lá vai pedrada , mostrava-se rijo que só noivo naqueles tempos em que ainda existia lua de mel. Ninguém conseguira imaginar que o homem já estava de passagem comprada. Um belo dia, como bom jóqui gastronômico, passou a perna numa panelada e só se apeou na Botica de Janjão. Empanzinado, de nada adiantaram o chá de macela e jalapa, antes da lua despontar por trás da Serra da Jurumenha, Macambira estava com Deus. Figura querida em Matozinho, vereador por mais de cinco legislaturas ininterruptas, seu enterro foi uma apoteose, com direito e incelença, a encomendação de padre e a um porre fenomenal dos seus amigos mais chegados. E foi de um destes camaradas de noitada – Jojó Fubuia – que arrancamos esta história : as peripécias de Clodoveu além túmulo. Jójó conta, com toda a convicção deste mundo, que naquele mesmo dia sonhou com o companheiro de farra chegando aos céus e prestando contas com o porteiro celestial . O que vai aqui narrado é, pois, um resumo do que Fubuia , entre um gole e outro, nos contou. Vendemos a história pelo mesmíssimo preço que a adquirimos. Reclamações, suspeitas, dirijam-se ao autor do relato que pode ser encontrado, diariamente, no seu escritório particular no “Bar do Giba”.

Fubuia diz ter visto Macambira, algo atrapalhado, chegando na entre – sala celeste, em meio àquela paisagem quase que polar. Anjos tocando trombetas em meio às nuvens branquíssimas , inúmeras pessoas espalhadas pelo ambiente em atividades várias, aparentemente aguardando a sua vez. Tirante o som estridente e periódico das trombetas, tocadas na chegada de cada novo candidato às hostes celestiais, nosso vereador conseguiu ouvir um som baixo, mas que lhe pareceu bastante familiar. Tratava-se de uma banda de forró, com suas cantoras gasguitas. Mas esta porcaria no céu ? – pensou o matozense. Só algum tempo depois, um senhor de barbas ruivas sentado próximo à porta, descobriu o segredo.

-- Esta música vaza do inferno, toca dia e noite, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. É por isto mesmo que aquilo lá é o inferno, meu senhor !

Clodoveu sentou-se numa beira de nuvem e ficou observando o movimento. A um canto, um velho de cabelos brancos esperava com paciência com uma resma de papéis nas mãos , aparentemente há muitos anos. De um outro lado, um outro rapaz de meia idade, carimbo na mão, ia identificando um sem número de folhas em branco. Um pouco afastada do birô de entrada, uma senhora de uns 50 anos, empunhava um telefone e não parava um só momento de discar e de balbuciar palavras incompreensíveis. Nosso matozense, por outro lado, observou que três recém-chegados, falaram rapidamente com São Pedro e entraram no céu sem burocracia e sem mais delongas. Macambira logo imaginou que devia tratar-se de santos e beatos, embora não tivessem qualquer aparência disso. Aguardou ainda uns dois dias, cubando o movimento, temendo aproximar-se do porteiro , sem saber ainda a senha de entrada. Criou , por fim coragem, e se dirigiu ao nosso primeiro papa.

--- São Pedro, a benção ! Cheguei antes de ontem e queria saber como faço para entrar no céu. Estive observando e vi que tem pessoas que entram rapidamente e outras ficam esperando por aqui, sem entrar. Qual o critério, meu santo ?

--- Clodoveu, de comum acordo com Jesus, resolvemos estabelecer regras para a entrada. Aqui se é admitido dependendo da profissão. Viu aqueles dois que entraram bem rápido ? Um foi o Senna, o outro João do Pulo, ambos bem rápidos nas suas atividades profissionais.

-- E aquele outro de roupa branca ? Entrou zunindo e por uma porta lateral...

--- Aquele era médico...trabalhava num hospital público...

--- Mas meu santo, esse povo passava um século para atender um paciente , o senhor não sabe das filas do SUS ?

--- É meu amigo, mas médico tem lá suas prioridades, você tem que admitir isso... eles têm uma entrada especial , entram pela porta dos fornecedores.

--- E por que aquele velho do cabelo branco, com aquela ruma de papel não entra ? --- Quis saber Macambira.

--- Aquele velho é um juiz e já deu entrada no processo de admissão no céu, mas você sabe como a justiça é lenta, não é mesmo, que sabe daqui uns oito anos... ?

---- São Pedro, e aquele rapaz que não pára de carimbar papel, quando vai poder entrar ?

---- Aquele, Clodoveu, era funcionário público, se aposentou sem nunca ter trabalhado e vai ter que pagar um pedágio de pelo menos 30 anos , antes de ser admitido.

Macambira , então, observou mais uma vez a senhora, de telefone no ouvido, sem parar um momento sequer de soletrar palavras incompreensíveis e resolveu saber do porteiro.

--- E a telefonista, por que não entra logo ? Uma profissão tão cansativa e chata ?

--- É, meu caro vereador, mas esta senhora era telefonista do Serviço de Atendimento ao Consumidor da TIM, chegou aqui já há uns cinco anos, e só vai poder entrar quando conseguir cancelar a linha do seu próprio telefone...

Clodoveu, então, após tomar pé em todos os critérios admissionais celestes, preocupou-se. Afinal fora vereador durante toda a vida. Sabia que resolvera com celeridade algumas pendências, principalmente em período eleitoral, mas não se podia atender com presteza a toda demanda.

--- Bem, meu bom Pedro, agora chegou a minha vez, fui vereador a vida inteira lá embaixo, quanto tempo vou ter que esperar ?

--- Meu amigo, que nada, você pode entrar imediatamente, por aquela porta lá do fundo...

--- Obrigado, São Pedro, obrigado, vou agradecer tudo a Jesus !

--- Jesus, Clodoveu ? Jesus que nada ! Agradeça ao capeta, que político, meu filho, tem cadeira cativa nas labaredas do inferno... e não esqueça , viu ? “Chupa, chupa, chupa qué de uva!”

J. Flávio Vieira

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