sexta-feira, 25 de abril de 2025

Memórias da Caserna

 

 


                               Fulgêncio  era durão. Morava em Matozinho, num sitiozinho nas margens do Rio Paranaporã,  que, a maior parte dos meses, sobrevivia apenas dos seus pequenos poços. Só nos invernos mais fartos , criava sustança e sonhava  ilusórios sonhos de permanência. Com D. Bernardina, biblicamente,  cresceu e multiplicou , jogou ao mundo quinze filhos. E tinha lá outra diversão naquele fim de mundo ? A filharada veio quase como um acidente de percurso, efeito colateral da única diversão que lhe era permitida. Para uma ninhada tão grande, para administrar, aprendeu a usar técnicas de caserna: aquilo era mais um batalhão do que descendência. Ordem dada, era ordem cumprida. Remédio para as transgressões , estava prontamente a mãos : palmatória, cipó de mufumbo, chinela currulepe. Bernardina e Fulgêncio se faziam iguais generais deste quartel familiar. Imbirra de menino, crise de adolescência, problemas existenciais  eram prontamente resolvidos pelo Dr. Chico Chicote, o psicanalista de plantão no armador mais próximo. Pedagogicamente, crescidos , todos os conflitos que por acaso fossem aparecendo na estrada da vida, ante o aprendizado inicial, apareciam sempre como de menor importância e facilmente enfrentados pelos meninos que tinham sobrevivido ao corredor polonês da Psicologia Fulgêncio-bernardiniana.

                   Como sempre, nem todos os soldados desse quartel seguem à risca os preceitos da autoridade. Virgulino, um dos filhos, era impulsivo e , como burro brabo, difícil de amansar mesmo diante da metodologia rígida dos pais. Rebelde, aos quinze anos, depois de uma pisa por conta de uma das suas frequentes danações, fugiu de casa e desapareceu , sem deixar rastro. Pegou um caminhão e fugiu para o Pará. Terminou se fixando na cidade de Faro, onde não tinha parente, nem aderente. E lá se foi ficando, trabalhando na lavoura, como agregado e, depois, se apossando de terras devolutas se tornou um pequeno  produtor. Junto , linha dura, numa época em que a constituição era traçada por qualquer cidadão comum, fazia trabalho de pistolagens para amigos fazendeiros. Apagou seu passado  e não quis saber mais da família. Resolveu erguer tudo do zero e implodiu a antiga ponte que o ligava a Matozinho.

                   Fulgêncio fez vista grossa com a partida do menino. Era uma boca a menos para alimentar. D. Bernardina, no entanto, ficou ressabiada e carregava consigo uma mágoa que eclodia periodicamente, aquela síndrome do ninho vazio. Como mãe, remoía perguntas como: por onde andará meu filho ? Por que não fiz nada para evitar a fuga. Suas apreensões multiplicaram-se mais ainda quando, anos depois, circulou a conversa de que Virgulino tinha sido assassinado pras bandas da Amazônia.

                   Mas a vida, como um carrossel, dá muitas voltas e teima em fazer com que nossos caminhos terminem onde tudo começou. Trinta anos depois, Virgulino começou a trabalhar com um fazendeiro nordestino que havia adquirido terras por ali. Com o tempo, conversa vai, conversa vem, descobriu que o patrão era de Serrinha dos Nicodemos e, como ele, naquele destino de judeu, terminou  ali, buscando, a terra prometida. Um belo dia, o patrão que voltava periodicamente a Serrinha para visitar os parentes, o convidou para ir com ele. Eram mais de dois mil quilômetros de estrada e queria companhia. Virgulino  resolveu ir junto, por mera curiosidade. Não tinha nenhuma pretensão de rever Matozinho e nem sabia se seus pais ainda eram vivos.

                   Passados uns quinze dias em Serrinha, Oduvaldo, o patrão de Virgulino, lhe fez uma proposta. O crime, por maior que fosse, depois de trinta anos, já tinha prescrito. Vamos lá em Matozinho , no Sítio Bulandeira, ver o que sobrou daquele passado que você estilhaçou !  Virgulino, a princípio, recuou, aos poucos, no entanto, bateu-lhe a curiosidade dos tempos meio dourado/meio cinza da sua infância. Acedeu.

                   Saíram de manhãzinha  Oduvaldo  preparou uma visita algo teatral. Chegando à Bulandeira, estacionou defronte à casa e deixou o funcionário escondido dentro da caminhonete 4X4. Pelo vidro fumê, Virgulino observou que nada tinha mudado em tantos anos. A casinha era a mesma, a roça idêntica, o grande juazeiro verdejante ainda estava ali compondo a paisagem. Identificou seu pai sentado numa cadeira de balanço, debaixo de um pé de fícus, junto à casa, nu de cintura para cima. A mesma cara sisuda , ótima para fazer cobranças. Cabelo grisalho e o rosto marcado por sulcos como o porão do açude do Sabugo  no mês de outubro. Mais à frente sua mãe, com um vassourão, limpando o terreiro. Cabelos grisalhos , a mesma face, só um pouco dissolvida pelo calor do tempo. Viu quando Oduvaldo puxou conversa com seu pai, perguntando sobre o inverno, dizendo que era do Norte e estava prensando em comprar terras em Matozinho. Fulgêncio o recebeu com atenção, embora com aquela cisma de matuto: um pé à frente e outro atrás. Conversa vai, conversa vem, Oduvaldo , fazendo o cerca-lourenço, disse que morava agora no Pará. Com a deixa, Bernardina se acercou e entrou na conversa. Disse de um filho que tinha ido há muitos anos para o Pará, mas soube que tinha sido assassinado. Oduvaldo ainda adiantou sobre os riscos de violência naquelas terras sem muita lei. Falou, então, que tinha trazido um presente do Pará para eles. Dirigiu-se à caminhonete, abriu a porta e , de lá, saltou  Virgulino.

                   No primeiro momento, o casal não entendeu bem o que estava acontecendo, mas rápido, Bernardina, em lágrimas, correu e abraçou-se com o filho. Meu filho ! Meu filho ! Só aí o velho Fulgêncio matou a charada. Mesmo assim, não bateu a passarinha, permaneceu sentado e , mantendo a fleuma, fez o comentário que ficou represado por mais de trinta anos:

                   --- Eu não disse, Bernardina ! Que morreu que nada ! Quem diabos ia queria matar um besta desses !?

                   Durante o dia, o clima foi amainando, a conversa foi sendo atualizada. Foram chegando alguns irmãos que moravam por perto, com filhos e netos. Contaram-se as baixas acontecidas nas últimas três décadas.

                   Depois do almoço – duas galinhas caipiras foram sacrificadas em homenagem às alvíssaras, Oduvaldo  resolveu cutucar a orça com uma varinha curta.

                   --- Seu Fulgêncio, a gente veio mesmo aqui foi porque seu filho quer receber um pedaço dessa terra que ele tem direito por herança.

                   Do outro lado, o velho recobrando a guarda meio baixa, atacou:

                   --- Herança ? E eu já morri,  foi ? E vocês não me disseram nada ? O defunto não tem o direito de saber que já bateu as botas, não ?

                   Oduvaldo, então, contendo o riso, cutucou novamente a  cascavel, pra ver se ela ainda armava bote:

                   --- Não, seu Fulgêncio, como nós vamos ter que voltar para o Pará e Virgulino não sabe quando torna, ele quer que o senhor dê em dinheiro a parte da terra que ele tem direito por herança !

                   Oduvaldo, então, já tendo definitivamente matado as saudades, levantou-se da cadeira de balanço, pegou uma vara de marmeleiro da cerca do quintal e mostrou que ainda estava em pleno vigor a Constituição Fulgêncio-Bernardiniana promulgada trinta anos atrás:

                   --- Ah ! entendi, seu Oduvaldo ! Agora, sim ! Vocês querem que eu compre a mim mesmo essa terra que já é minha, não é ? Cadê Virgulino ? Chame ele ! Vou dá-lhe umas varadas no lombo , com validade de mais trinta anos! Quando acabar, perder a validade,  vocês voltam aqui e a gente faz o inventário !