J. Flávio Vieira
Sempre fui uma pessoa sem grandes aspirações. Nunca dei braçadas fortes nas marés da vida, preferi sempre boiar e deixar-me levar pelo fluxo das ondas. Busquei sempre colher os frutos que estavam ao meu alcance, recusei-me a trepar nos galhos mais altos da árvore menos por medo e mais por comodismo. Todas as pretensas vitórias caíram-me nas mãos naturalmente. Neguei-me a entrar na corrida desenfreada e a concorrer com outros corredores que os vi , sempre, como companheiros de viagem e não como guerreiros. Com isso, não consegui chegar aos píncaros sonhados por tantos, mas a vida deu-me o bastante. Plantei algumas árvores, vieram filhos e netos para enlanguescer meus fins de semana, a casa está abarrotada dos livros que sonhei e dos discos a que aspirei. Tenho um carro velho e uma mulher nova. Encontrei na Medicina a profissão que me permitiu melhorar a vida das pessoas e, também, ciclando próximo daquela fronteira sensível entre a bem-estar e a doença, a vida e a morte, aprender um pouco sobre a fragilidade da existência e a sua precária permanência. Com a passagem dos anos voltei-me à literatura , um desejo juvenil que , com os anos, reascendeu , como fogo de palhiço. Vieram os livros como novos filhos e sei a real importância deles principalmente para mim. Escrevi sempre para minha tribo, nunca tive pretensões de universalidade. Sou bastante crítico e exigente e entendo exatamente a simplicidade de minha obra. Até porque comparo-me logo com Machado, Cortázar e Calvino, para imediatamente diluir qualquer forma de pabulice. Os anos foram chegando e começo a perceber a obsolescência da velhice. Somos apenas um mero transtorno para as novas gerações, um obstáculo pronto a ser removido, mais cedo ou mais tarde, para alívio de todos. Passada a régua, feitas as contas, nada deixamos, o planeta não ficou melhor ou pior com a nossa passagem. Escrevemos nossa história insulsa e insípida na superfície das águas de um rio caudaloso que escorre atropeladamente em busca da foz. Ninguém viu, ninguém leu, as águas não se tornaram mais límpidas ou barrentas, nem mais frias ou mais tépidas.
Apesar disso tudo, resta-me uma simples aspiração. Queria estar no Galo da Madrugada nesse sábado, lá na Praça Sérgio Loreto, no meio da turba alegre de bêbados, como tenho feito nos últimos trinta e cinco anos. Sair à deriva seguindo um caminho que sobe ou outro que desce, sem destino certo, sem mapa, sem GPS. E ali celebrar a vida, esse nada que, apesar de tudo, é uma dádiva e tem o sabor do caramelo que derrete , pouco a pouco, na boca do menino, sem que ele precise expressar aquele prazer simples e único, como um orgasmo ou a brisa da noite, como uma chuva de orvalho, como a vida.
Crato, 27 de Fevereiro de 2025