sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Marcas na areia sob a chuva

 

                                      


                                                                                                J. Flávio Vieira

 

                               Bem para lá “del mezzo del cammin de nostra vita” , no dizer de Dante, pomo-nos a olhar para trás observando a longa estrada percorrida até aqui. Há mais caminho às nossas costas do que à nossa frente. Batemos a poeira do longo percurso e, tantas vezes, caímos nas armadilhas do condicional. E se tivéssemos escolhido outras veredas ? Se naquele diz não  frequentasse aquela balada onde conheci a Lurdinha ? E se houvesse optado por outra profissão, não seria mais próspero ? A cada instante víamo-nos diante de veredas  e bifurcações na trajetória e presisamos que escolher que direção tomar. Aquela terá sido a melhor decisão?   Encontraríamos menos abismos e pedregulhos e lobos   se , como Chapeuzinho , tivéssemos preferido o caminho da floresta ao invés do que margeia o rio ?

                   Aqui, ali  foram-nos oferecidas alternativas e ofertadas, a seguir,  as consequências das nossas escolhas. Diferentemente das trilhas que seguimos pelos bosques, a da vida tem mão única. O sentido é um só e, à frente – sem que se saiba em que curva do trajeto—há um abismo sempre a nos esperar.  A visão pelo retrovisor, apesar de atraente e inevitável, é sempre inócua. Não há possibilidade de manobra e retorno. Não deveríamos lamentar escolhas pretéritas, aparentemente desacertadas sob as lentes do hoje. It´s My Way, como cantaria Sinatra. Sempre o mais grave não é a vereda errada que selecionamos, mas, principalmente, a curtição insuficiente do percurso, por mais íngreme e acidentado que ele seja.  O verbo viver só se conjuga no Presente do Indicativo, nunca no Passado ou no Futuro, nem no Imperativo ou Subjuntivo.

                   Numa curva à frente – sabe-se lá onde –  o  fojo  já nos espreita. Quando despencarmos, no último voo do Ícaro, talvez nos passe pelos olhos o filme da viagem de um a outro precipício. Que resquícios ficarão, pelas margens sinuosas da trilha, da nossa passagem ?  Pegadas, detritos,  entulhos, marcas em troncos de árvores ? Alguns avisos e sinais que lembrem aos outros viandantes, que nos seguem logo atrás, dos perigos e acidentes espalhados pelas vielas ?  Ou o legado do silêncio e a leveza do colibri ou da luz que trespassa a superfície das águas deixando-a incólume e intocada ?  O certo é que nossa viagem será  única, irretornável  e solitária. Tentaremos deixar marcas da nossa passagem pelas margens da estrada, mas serão apagadas irremediavelmente com as primeiras chuvas de verão. E, no voo final que nos espera, no pélago adiante, a única mala permitida será guardada no bagageiro do  coração e não poderá ser resgatada na esteira do aeroporto.

 

Crato, 19/10/24