sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Cara ou coroa

 


O certo é que aquela dúvida infeliz estava comendo  o juízo de Ernestino , como ferida braba, havia uma ruma de semanas. Tanto que o velho amofinou, andava mais calado e mais capiongo pelos cantos, com aquela cara de Sinhá-dona -quem-comeu-meu milho. Parecia gato assuntando  cheiro de Pittbull. Os amigos mais chegados diziam que nunca o tinham visto daquele jeito. Nem quando enviuvou  de D. Judite, uns dois anos atrás. E olhe que já lhe pesavam mais de oito décadas no lombo e, mesmo assim, a perda não lhe pareceu coisa do outro mundo, como de pronto se imaginaria. Foram mais de cinquenta anos de um casamento de altos e baixos em que os dois foram sustentando o andor mais pela força do hábito do que pelas vias da afeição. Os filhos, como inhambu,  à medida que foram empenando, levantaram voo e ganharam o mundo, espalharam-se Brasil afora, tangidos pela esperança inglória de melhores ares e melhores tempos. D. Judite e Ernestino , já sem muito combustível no tanque, enfrentaram o destino que lhes bateu à porta: uma pontinha de terra nas cercanias de Matozinho, uma casinha de campo, uma roçazinha dessas que anum atravessa de um voo, um açudeco que nem tirava um ano todo só de seca e um criatatoriozinho: galinhas, carneiros e umas  vaquinhas que destilavam o leite mugido da manhã.  A vida terrena dependia mais que nunca do céu. Ano de inverno farto, abasteciam o paiol prevendo os tempos de seca futuros. Quando o céu fechava suas torneiras, tinham o kit de sobrevivência no deserto: o paiol, o poço que dava água rasa , cavado no porão do açudezinho.  A partida de D. Judite deixou um Adão sem sua Eva no paraíso que lhes restou, aquele em que a árvore do bem e do mal perecera de sede e de fome.

                        Ernestino enfrentou com garra a perda. Vivendo naquelas brenhas, Morte e Vida sempre lhe pareceram faces de uma mesma moeda. E todo o dia o destino jogava Cara & Coroa. O passar dos dias, no entanto, lhe foi trazendo uma certeza: a solidão é um animal feroz. Sentiu-a invadindo seus dias, desbotando sua alma, assim como a cajarana de-vez fazia com seus dentes em tempos de safra.  Depois de uns seis meses, já tinha jurado seguir o caminho agora sozinho, descobriu que não seria tão fácil. Até os amuos e os lunduns de Judite faziam-lhe falta. Sozinho,  tinha ele que brigar com ele mesmo, chamar palavrões para a rapaz do espelho e, principalmente, não havia a quem contar a história nossa de cada dia, como se escrevesse na lousa com a mão direita e já viesse esfregando o  apagador com a esquerda.

                        Resolveu sair, novamente,  à caça e passou a frequentar a igreja , as quermesses e os sambas no pé da Serra do Sabugo. Jogada a rede de malha fina, uns seis meses depois, viu que tinha no landuá duas curimatãs. Uma mocinha de uns dezesseis anos, Fideralina,  bonita e espevitada, arisca como bico-doce em talhado de serra. Por falta de melhores partidos e sob influência de familiares, ela se botou pra cima de Ernestino, imaginando  alguma herança  e a pensão do Funrural. E, do outro lado, D. Afonsina , uma sessentona ainda escamurçante, rezadeira afamada de Bertioga, com fama de desentalar osso de goela de menino e curar picada de cobra pelo rastro. Afonsina tinha fama de mandona e dizia-se que o marido não a largara, mas teria desertado pra se livrar das ordens da marechala Afonsa. Ernestino estava nessa encruzilhada. A quem escolher? A juventude esvoaçante de Fidera ou as ordens do dia de Afonsina?

                        Depois do morde daqui assopra dali com Afonsa e Fidera, as duas começaram o cerca-lourenço por uma definição  do pretendente. Percebendo que havia disputa e dúvida, então, arregimentaram forças de lado a lado, convocaram corta-jacas e  fofoqueiras de plantão para espalharem fofocas e disse-me-disse e partiram para luta, cada qual com seu regimento.  Essas eram as razões pelas quais Ernestino, ultimamente, estava como preá acuado por cão perdigueiro.

                        Foi aí que lhe bateu  a ideia salvadora.  Pedir a opinião do Coronel Anfrízio Maia , homem sisudo e pragmático, membro da reserva da Infantaria Nacional e que tinha sido seu colega no Tiro de Guerra  218 de Matozinho. Ernestino partiu para a fazenda do coronel com aquela sensação de faraó que se dirigia ao Oráculo de Delfos. Anfrízio havia sido consultado previamente sobre a possibilidade de recebê-lo e, como sempre o fazia, em situações especiais, envergava seu fardão da Infantaria com várias medalhas dependuradas no peito. Recebeu-o sério ,mas amistosamente,  na varanda do casarão na Fazenda Malhada do Meio. Ernestino, então, lhe pôs a par da situação. Enviuvara e, mesmo já meio borocochô, tomara a decisão de casar novamente. Estava impossível empurrar o Jeep da vida sozinho. Apresentou, então, o perfil das duas pretendentes ao coronel e a dúvida atroz que o assaltava. Casar com a novinha espevitada ou com a velha passada na casca do alho ? Anfrízio fechou a cara por uns instantes, fitando o horizonte que se estendia para lá do verdume do canavial,  e, depois de alguns instantes, deu seu parecer:

                        --- Olhe, Ernestino, você me conhece e sabe que sou positivo como o cabo direito da bateria. Essa é uma situação melindrosa e prefiro não dar palpite. Quem lá diabos entende esse bicho esquisito chamado mulher?  Deixo a escolha e o risco com o amigo ! Boa sorte ! Seja feliz !

                        Ernestino pareceu meio desapontado, mesmo assim agradeceu a disponibilidade do antigo companheiro do Tiro de Guerra. Quando já ia saindo em busca do cavalo cardão que o esperava arriado no oitão da casa, o coronel o chamou:

                        --- Ernestino , boa viagem ! Se lembre rapaz que é muito mais fácil amansar burra nova braba do que tirar móca de uma égua velha, viu ?

                        E, enquanto o colega já passava o pé no estribo, concluiu:

                        --- De qualquer maneira, quem avisa amigo é ! Velho como tu tá, com essa cara que parece uma lata de assar castanha, Ernestino, montando em burra braba ou enfrentando mucica de égua velha: tu vai cair do cavalo !

 

Crato, 22/08/24

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

D. Almina e as lições do Tempo

 

 


O tempo
entre o sopro
e o apagar da vela

Paulo Leminski

 

 

                        Talvez a vida se resuma exatamente a isso: o breve espaço  que separa o sopro do apagar da vela. O tempo, no dizer de Quintana, é o mais voraz dos animais domésticos. E, pobres humanos, convivemos com a inexorabilidade do seu passar. Como se o tic-tac dos ponteiros fosse devorando fragmentos de instantes, momentos, vivências.  A água que escorre por sob a ponte flui para a foz, nunca mais retorna à nascente. O Eclesiastes vaticina que há tempo para todo o propósito debaixo do céu, mas  o moto-contínuo da areia fluindo pela ampulheta nos deixa cépticos sobre  a esperança da colheita futura ainda em tempos de semeadura. Nunca sabemos o que nos espera na próxima curva da estrada: o abismo ou o arco-íris ? A grande questão da existência talvez esteja escondida na mensuração do tempo com   a bitola do tic-tac do relógio : os segundos, minutos e horas. Neste sistema métrico,  a vida se estende por alguns anos prováveis, calculados em tabelas estatísticas, salvo, claro, os acidentes de percurso, os desvios padrão. Rubem Alves, por outro lado, falava com propriedade que a vida se mede não só pelas batidas do relógio, mas também pelas do coração. Precisaria ser aferida em  quantidade mas também em  intensidade.  Há instantes únicos, efêmeros, voláteis que significam toda uma passagem terrestre: o sorriso do filho, o beijo de uma namorada, uma imersão espiritual, o amanhecer a beira mar. Impossível avaliá-los pela simples trena cronológica. Vidas como a de Rimbaud que partiu aos 37 anos; Castro Alves, aos 24 e Francisco de Assis aos 44 demonstram que a longevidade não pode ser calculada apenas pelas folhinhas do calendário. Estão eles perfeitamente vivos , ativos e perenes nos dias de hoje. Impulsionados que foram pela poesia e pela fé que é uma forma mimética de poesia.

                   A verdadeira dimensão de uma existência não se computa pelos anos vividos mas pela intensidade que  se conseguiu impelir em cada um dos instantes que se desfrutou.

                   Celebramos hoje  o centenário da minha tia e madrinha  Almina  Alencar Arraes Pinheiro. A tia conseguiu um feito quase único, associou uma longevidade cronológica mas também  sentimental à sua vida. Como professora teve nas mãos a possibilidade de mudar rumos e destinos; como mãe semeou pelo mundo frutos benfazejos e opimos, e  brindou-nos , no outono da sua trajetória luminosa, com a lição de que , mesmo com o irremissível desfolhar da árvore da existência, pelo sopro do tempo,  é possível parar sempre no Bem-me-quer.

                   Encontra-se lúcida e ativa. Desde os 80 anos navega pelos mares da internet como uma capitã de longo curso. Escreveu, inclusive , uma cartilha para pessoas da terceira idade terem acesso mais fácil ao mundo digital. Ela legou á posteridade   a sua duradoura aula  de mestre de que é preciso beber a existência em todas suas estações. Banhar-se na exuberância multicolorida da Primavera; resplandecer com os raios incandescentes do sol, no Verão; travestir-se de novas roupas e adereços como as árvores o fazem no Outono e encantar-se com o curto-circuito dos relâmpagos e a chuva que cai no telhado nos rigores do Inverno. Que percurso vital  acolhedor  e pleno ! Como a vida pode ser longa e próspera entre o sopro e o apagar da vela !

 

Crato, 03 de Agosto de 2024