segunda-feira, 27 de abril de 2015

Crisálida


J. FLÁVIO VIEIRA

                                   A constatação tem a textura de uma rocha magmática: a árvore frondosa desabou e está ali estendida, inerme,  no meio da estrada. Os transeuntes obstacularizados pelos galhos volumosos se postam diante da catástrofe : menos interessados em entender os meandros da hecatombe e mais  perplexos ante o  simples impedimento  de seguir em frente. Certo que um dia , inevitavelmente, esperava-se o desabamento : destino de todos os corpos imantados pela gravidade do tempo. Mas  a queda nos toca profundamente , sempre, como se nos impingisse a certeza absoluta da impermanência , da fluidez dos minutos e das horas   escorrendo , inflexivelmente,  para o  ralo tenebroso da inexistência.
                            Hoje, a árvore, mesmo tombada,  ainda parece fazer parte da nossa perspectiva diária, como se seu reflexo ainda ali estivesse indelével no horizonte. Amanhã, no entanto, se juntará à paisagem pretérita. Caule, folhas, galhos , flores,  pouco a pouco serão mastigados pelos incansáveis operários do nada e o pó teimará em retornar a  pó , numa ubíqua e carnal comunhão com toda a natureza.
                            Os observadores da árvore mais próximos, talvez já nem a percebessem : fazia parte do gasto panorama cotidiano. Agora, no entanto, com a queda repentina e o vácuo no horizonte, se hão de perguntar perplexos : o que fica do tronco e suas incontáveis ramificações  que ontem ali estavam, dependurados na estampa do infinito ?
                            Ficam as incontáveis lembranças do seu apogeu. A sombra que acalentou e protegeu os dias não apenas dos seu frutos, mas de todos os insetos, passarinhos e  viandantes que dela se aproximaram. Também a  aparente aspereza do seu porte que precisou criar raízes fortes e profundas para suportar o peso dos galhos imensos  que lhe davam fortaleza. O despojamento de livrar-se das folhas , seu vestido de gala, nos períodos de seca e estiagem, projetando a flora  nas futuras primaveras. Ficam também  as flores com as quais inundou o mundo de cores e aromas e as serviu, copiosamente, sem distinção, a todos que por ali passaram. Permanecessem, intocados pelo tempo, os frutos estendidos  numa mesa imensa e   servidos, irmanamente,  num banquete opíparo e magnânimo,   para degustação de pássaros, borboletas e peregrinos. E , por fim, o pólen : espargido aos sete ventos , disseminando a opulência e o milagre da vida  floresta afora.
                            Tronco e  ramada ao chão são apenas uma mera metamorfose da árvore.  Ela faz-se , misteriosamente, crisálida  enquanto aguarda , pacientemente, no casulo,  a eclosão das tenras asas para  o novo voo nupcial.
                           

Crato, 24/04/15

quinta-feira, 16 de abril de 2015

O giro dos tufões


Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos...
......................................................
Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.

Antero de Quental, in "Sonetos"
 

                                                               A equação  parece simples e nem necessitaria da ajuda  da matemática. Imaginem uma garota  bonita, meiga, doce, filha de um médico renomado, nascida na capital, com todas os desejos de uma criança totalmente ao alcance das mãos. Os mais simples anseios adolescentes ali estavam perfeitamente atingíveis. O caminho mais previsível seria relegar os estudos a um segundo plano, meter-se em festas , ter a praia como uma extensão da sua casa e tomar o shopping center como seu templo  maior, onde passaria a fazer oferendas diárias ao mais sagrado deus da modernidade : o consumo. Depois, certamente, apareceria o casamento perfeito  e nem haveria a necessidade de se preocupar com o futuro. Viriam alguns filhos que seriam criados afetuosamente pelas babás, pagas regiamente, e a vida se resumiria a viagens, passeios e deleites. Os frutos da existência estavam ali pendentes em galhos baixos, prontos para a colheita diária.
                                               Este talvez seria o caminho trilhado por incontáveis dondocas dos dias atuais. A felicidade vista ali na prateleira da loja de departamentos pronta para ser adquirida , dia a dia, nas mais variadas sessões. O cartão de crédito seria o ingresso de cortesia para o Shangri-lá. Pois bem, pensem, agora, num anjo que , simplesmente, resolve nadar contra a corrente e escolhe trilhar, biblicamente, o caminho estreito ao invés da highway.  
                                               Ela se chamava Marinila e fez-se aluna dedicada, enveredou pela Medicina e formou-se com aquela chama hipocrática de tratar e curar os mais necessitados. Poderia escolher uma especialidade rentável, destas que enchem os olhos dos recém-formados da atualidade  tão afeitos às cabines duplas. Eles babam de satisfação e descobrem, rapidamente, sua vocação,  no sonho certo do pote de ouro ao pé do arco-íris. Ao invés disso, ela buscou o patinho feio da sua profissão : A Medicina Social. Poderia, mais uma vez, ter se dedicado única e exclusivamente ao bem-estar da sua própria família. Carregava consigo, no entanto,  a vontade de mudar o destino terrível de uma outra família que houve por bem adotar : a de milhões de desafortunados que migalhavam no país , diuturnamente, por uma consulta, um exame complementar, um medicamento. Profundamente religiosa – uma faceta que herdou indelevelmente da família—descobriu cedo que a doença estava intrinsecamente ligada à política e que , como diria Foucault, para ser sadio o homem necessitaria primeiramente ser liberto.
                                   Num crítico momento porque passava o Brasil, meteu-se na luta desigual que redundou na Constituição de 1988 e nos alicerces do Sistema Único de Saúde. Envolveu-se, logo a seguir, nas gestões municipais do SUS, no interior do Ceará, naqueles terríveis instantes da implementação do novo Sistema, nadando contra as fortes correntezas contrárias da Medicina Privada. Como Secretária de Saúde, deixou um legado inesquecível de trabalho árduo, técnica afiada, administração sóbria e solidária,  e honradez absoluta e irretocável. O Cariri viu, diante de si, a mais completa , justa e bem intencionada Secretária de Saúde de toda sua história. Depois, ascendeu à vida acadêmica, como professora e Coordenadora da Faculdade Federal de Medicina do Cariri, após cumprir, com galhardia, Mestrado e Doutorado na Itália. Os alunos liam facilmente nos seus olhos que a Medicina não era um ofício mas uma Arte,  que o médico trabalhava num templo e não em uma oficina.
                                   A batalha maior da sua vida, no entanto, estava ainda por vir. No auge das vidas profissional e pessoal,  eis que o destino lhe põe face a face com o inimigo contra o qual batalhara durante todos seus dias : a Moléstia. Enfrentou-a com  força hercúlea, instante a instante, minuto a minuto. Manteve-se impávida ante o sofrimento e a dor, fazendo tremular, até o fim, a verde bandeira da esperança. Nestas esquinas tortuosas da vida é que se percebe, claramente,  a religiosidade de superfície.  Do seu corpo já frágil, porém, brotava uma luz incandescente, reflexo da profunda espiritualidade que imantou toda sua existência. Ante o desespero dos amigos mais próximos, pedia que orassem simplesmente para que se fizesse a vontade de Deus e não para que Ele viesse a mudar os seus desígnios.
                                   Estas palavras saem apenas agora depois de quase um ano do voo último do nosso pássaro. É que para todos nós,  Marinila se mostra ainda tão vívida , parece que encontraremos aquele sorriso  aberto e largo na quebra da próxima esquina. E a  ausência se faz insidiosamente, como um caruncho que nos vai , lentamente, roendo as fibras da nossa alma.  A saudade, no entanto, esmaece um pouco quando vemos diante de nós um outro irmão que sofre, uma injustiça que precisa de luta para ser corrigida,  uma caridade que necessita transformar-se, urgentemente, em justiça social.  Marinila, como por encanto, chega então com o seu sorriso e sua meiguice de outrora, junta-se a nós no Amor sagrado, na comunhão universal do eterno Bem.

Crato, 16/04/15     

                                         

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Os elos de uma só cadeia




“Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

Castro Alves ( “Navio Negreiro”)

                                               O lenga –lenga parece cantiga de grilo : não tem fim. Desde os anos 90 roda,  no Congresso,   Projeto de Emenda Constitucional que busca reduzir a Maioridade Penal no Brasil. Em meio ao tiroteio interminável da nossa violência urbana, com frequentes casos de menores envolvidos em delitos, a grande Mídia – reflexo das classes mais privilegiadas do país que lhe patrocina—tem levado a maior parte da população ( mais de 80%)  a crer nesta medida como fundamental para a atenuação da nossa violência urbana. Recentemente a Comissão de Constituição e Justiça apreciou a PEC 171/93, apresentada pela Frente Parlamentar de Segurança Pública, vulgarmente conhecida como  Bancada da Bala, e a proposta foi aprovada por mais de 70% dos votos. Deve agora seguir os trâmites legais e ir, depois, à  votação  na Câmara e no Senado.
                            Nado contra a maré mais uma vez.  Acredito que a Emenda, se aprovada, não só não atenuará o problema, como tende a piorá-lo. Continuaremos  matando algumas formigas na boca do formigueiro, imaginando que assim solucionaremos o problema da saúva no milharal. E as razões que me levam a pensar assim são transparentes. Primeiro , as estatísticas mostram que apenas uma fatia mínima dos jovens , algo em torno de 0,5%, comete delitos. Estes, na sua maioria , são pobres, pouco alfabetizados, negros e residem em áreas em que o Estado sempre se mostrou profundamente omisso. Eles são , na verdade, vítimas do sistema perverso onde estão metidos e não agentes da violência das ruas.  Punir apenas, isenta totalmente o Estado da sua culpabilidade e estaremos, mais uma vez,  mexendo apenas nos efeitos e colocando no baú as causas.  Além de tudo, se resolvesse cadeia para criança, o problema estaria , de longe, resolvido. Temos uma Pena de Morte tácita nas ruas para os menores infratores. Nos últimos vinte anos,  os homicídios de crianças e adolescentes cresceram 350%,  só em 2010, foram assassinadas 24 crianças e adolescentes a cada dia.  
                            Aplicada a nova Maioridade Penal, os presídios,  já perversamente abarrotados, se encherão , agora, de crianças, sujeitas a todo tipo de agressão. Já possuímos a quarta maior população carcerária do mundo.  Delinquentes menores se matricularão, automaticamente, em verdadeiras universidades do crime . Os presídios brasileiros têm uma vergonhosa taxa de reincidência de 70% e a do sistema socioeducativo aplicado, com toda falha desse mundo, não chega a reincidência a 20%. Aprovada a PEC, feriremos , de morte, o Estatuto da Criança e do Adolescente e mais : a Emenda parece de todo inconstitucional. Além de tudo, para nós que nos preocupamos tanto  com a imagem do país no exterior, estaremos agredindo acordos internacionais importantes como  a Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Declaração Internacional dos Direitos da Criança compromissos assinados pelo Brasil. Por outro lado, a elite brasileira que tanto se preocupa em copiar modelos estrangeiros precisa saber que das 57 Legislações internacionais existentes sobre Maioridade Penal, apenas 17 preconizam maioridade abaixo de 18 anos, ou seja a minoria de tão-somente 29%. Os índices de delitos entre jovens no Brasil de 10%, por outro lado, estão abaixo da média mundial  que é de 11,6%.
                            A aprovação da PEC 171/93, assim, não é só inócua, como perigosa e irresponsável. A chave para minorar a delinquência juvenil no país está na Educação e não na punibilidade. O Estado precisa  olhar para todos e não tratar alguns como filhinhos do papai e os outros como enteados. É preciso , sim, continuar na luta contra a desigualdade social. As vozes que hoje se levantam  a favor da diminuição da Maioridade Penal  são a reencarnação daquelas mesmas que um dia se puseram contra o fim da Escravidão e  a favor do genocídio de Canudos e do bombardeio do Caldeirão.  Elas continuam hasteando os mastros dos seus Navios Negreiros e reerguendo seus Pelourinhos pelas praças deste país.


Crato, 02 de Abril de 2015