sexta-feira, 27 de junho de 2014

O Sedento Deus Liberdade

J. Flávio Vieira

A violência sempre esteve ligada ao poder.
                                    E a violência masculina é um exercício perverso do poder.  
Affonso Romano de Sant' Anna

                                   A Violência é uma irmã siamesa da Civilização. A história da humanidade , desde os seus primórdios, tem sido escrita  com a rubra tinta do sangue. A evolução natural da nossa espécie nunca conseguiu debelar esse mal, apenas ele foi se metamoforseando e aparecendo com outras nuances e outras máscaras. A pólvora substituiu a espada, o canhão à espingarda, o tanque de guerra ao aríete. Se se reparar direitinho,  a Violência tem seu nascedouro nas nossas mais simples relações domésticas. Por trás dela sempre existe impulsionando-a o exercício do poder : seja de pai para filho, de patrão para empregado, do rico para o pobre, do político para o eleitor, do homem para a mulher, da nação mais favorecida contra as mais lascadas. A célula mater da Violência, no entanto, brota das nossas mais simples e domésticas  relações humanas. E ela nos aproxima, mais que nada, das nossas origens animalescas, quando abandonamos o racional e agimos como um lobo na matilha.
                                   No Cariri convivemos com uma chaga secular: a Violência contra a mulher. Entre 2009 e 2011, a cada 90 minutos,  uma mulher foi morta no Brasil , no mesmo período, só no Ceará, pereceram 684 mulheres. Estes índices são assustadores. Recentemente, aqui no Cariri,  nos espantamos, novamente, com dois fatos que, de tão comuns, parecem já corriqueiros. Duas médicas foram alvo impensável desta temida violência. Semana passada, Dra. Ângela Gimbo sofreu um atentado terrível, que quase lhe ceifou a vida, por razões estranhas e que estão em processo de investigação. Dra. Ângela é  uma profissional da mais alta qualificação, infectologista radicada na região há muitos anos e que atualmente assumia, com enorme desenvoltura,  o Cargo de Diretora da Faculdade de Medicina de Juazeiro do Norte. Não bastasse esta notícia triste, esta semana, uma outra médica, Dra. Elizabete Bernardo, viu-se vítima de um crime passional, perpetrado por seu antigo companheiro, perdendo a vida de forma trágica e brutal. Dra. Elizabete era professora também da Faculdade de Medicina de Juazeiro e profissional capacitada e de finíssimo trato. Aparentemente, se tratam de dois crimes totalmente isolados e sem qualquer ligação um com o outro, há, no entanto, um fio condutor ligando as duas tragédias.
                                   No caso da Dra. Ângela, possivelmente, há motivos relacionados diretamente à sua atividade como dirigente de uma empresa educacional.  Administrar é ferir interesses de um lado ou do outro. Não será difícil para os investigadores fecharem o firo. O desvendamento do crime é essencial para que os caririneses ao menos consigam dormir com alguma tranquilidade. No caso da querida Dra. Elizabete, homicício seguido de suicídio, deslinda-se,  imediatamente,  a causa , mas permanece o gosto de fel em todos os seus amigos e admiradores. Em ambas situações percebe-se , claramente, a questão de Gênero presente. Os últimos cinquenta anos se caracterizaram por um avanço expressivo nos horizontes femininos. A mulher passou a ocupar espaços até então tidos como um  monopólio masculino. Conseguiram uma invejável independência financeira, levando a que hoje já sejam cabeça de família de um terço dos lares brasileiros. Já não precisam se submeter ao julgo do varão que lhe dava o pão mas , em troca, as mantinha subjugadas. Já não necessitam ser infelizes, mantendo relacionamentos de fachada. No trabalho, também, têm as mulheres formas peculiares de administrar, são, em geral, mais corretas e menos propensas ao “jeitinho”. Todas essas transformações , no entanto, não foram percebidas, ao que parece, pelo sexo antigamente tido como forte. Amor não correspondido se torna uma afronta para aquele que sempre se achou proprietário universal  da sua  companheira. Regras e leis cumpridas à risca viram uma agressão para os adeptos das maracutaias tão tupiniquins.
                                   Dra. Ângela e Dra. Elizabete são mais  dois cordeiros imolados  ao sedento Deus Liberdade. Esperamos que sejam os últimos. É preciso se pensar num mundo melhor e mais justo, onde o homem não seja o lobo do homem. Que diabos de animal racional é esse e que ainda se diz feito à imagem e semelhança do Criador ? Se pensamos desarmar nossos espíritos e atiçar nossos corações é preciso provar que já conseguimos sair da Selva e que criamos leis mais humanas e mais justas de convivência social.


Crato, 27/06/14    

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Na Liberdade : Uma mocinha e uma orquídea

Recendia  um frescor que se lhe escapava por todos poros. Aquele mesmo que se pressente no primeiro desabrochar do lírio na primavera ou no  amadurecer do fruto opimo no pomar. Como se a vida explodisse em toda sua fúria, naquele interlúdio único: entre a promessa do passado e  a perspectiva evanescente   do futuro.  A mocinha ali estava  na Feirinha da Liberdade e vestia-se do seu despojamento e do seu frescor. Os demais adereços e penduricalhos, naquela idade, pareciam todos perfeitamente supérfluos. Um shortinho jeans , um tênis All Star, uma blusinha curta, deixando antever a barriga tanquinho. O cabelo liso, algo revolto, caía-lhe, por sobre os ombros, delicadamente, como uma cascata. Os olhos vivíssimos, negros, observavam, inquietamente, ao derredor, sem se demorarem muito em qualquer foco, cobrindo, avidamente, os  cento e oitenta graus. A mocinha carregava consigo aquele bulício típico da idade, como um  pássaro , na árvore, tremeluzindo entre os galhos, arisco, temendo o caçador.

                        Na mão esquerda, em concha, estendida  na altura da coxa, a mocinha sustentava um jarrinho com uma orquídea que acabara de comprar. Com  flores de quatro pétalas brancas, fortemente  chamuscadas de lilás e um tubérculo central rubro, em formato de fechadura, a orquídea enchia os olhos de quem a visse, olhos já meio  transbordantes  pelo frescor da menina.  Havia um pacto tácito entre as duas imagens que se somavam, tal dois viços que se fundissem e pipocassem:  como a fusão  dos dois núcleos de hidrogênio na Bomba H. E resplandeciam na certeza de que o ciclo natural da vida ali se iniciava com todo no seu fragor. Aquela visão fazia-se única atemporal e eterna.  Depois , também para a mocinha e a orquídea, viriam o verão , o outono , o inverno. As pétalas murchariam, ressecariam e tombariam pelo solo, prontas para um novo renascimento, para a sucessão de vibrações regulares e  infinitas de um   mesmo pêndulo.    Até que um dia, por fim, a ferrugem do tempo emperraria o pêndulo e subsistirá  apenas a lembrança da mocinha, da orquídea que, como num alinhamento de planetas, um dia se reuniram na Liberdade e passaram a ser apenas uma entidade  una e resplandecente, imune às traças das horas e à oxidação, aparentemente inexorável , dos segundos.
13/06/14