quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Papagaios & Araras



Acredito que terá sido Pero de Magalhães Gândavo , na sua “História da Província Santa Cruz  a que vulgarmente chamamos de Brasil”, publicado em 1576, que já alertava : os indígenas costumam pintar papagaios para vender como araras aos viajantes menos atilados. E assim tem sido historicamente, amigos , desde nossas mais remotas origens : nossas leis mais rigorosas simplesmente não pegam; as normas mais pétreas sempre têm uma escapadinha possível;  os ritos mais sagrados banham-se rapidamente em águas profanas; nossas guerras e revoluções mais sangrentas não pingam uma gotinha de sangue sequer. Culturalmente sempre há um  “jeitinho” para se resolver tudo. Indignamo-nos, facilmente, com as tragédias que nós mesmos produzimos, seja na vida pública, na esfera privada, na política, na economia. Entupimos a cidade de lixo e nos queixamos da sujeira; desmatamos nossas encostas e reclamamos das enchentes; elegemos políticos corruptos e, depois,  nos revoltamos com os desmandos e os desvios de verbas.
                        Dias desses, um amigo tomou uma Topic para Nova Olinda. Ao passar no Colégio Agrícola, o motorista alertou os passageiros : “Pessoal, coloque o cinto de segurança que vamos passar no Posto da Polícia Rodoviária!”. Ultrapassada a vigilância, na altura das Guaribas, ele voltou a informar : “Pessoal, já passamos do Posto, podem desafivelar os cintos !”. Existe uma conduta mais brasileira que esta ? Na Expô/Crato e na Festa do Pau de Santo Antonio os políticos locais providenciam para que se evitem blitz, para que se afastem os bafômetros: fiscalização demais, eles alegam, pode prejudicar a festa. Dane-se o Código Nacional de Trânsito! Seque a Lei Seca !
                        Esta semana convivemos com a tragédia indizível da Buate de Santa Maria, onde mais de duzentos jovens perderam a vida. Impossível imaginar tantos ninhos desfeitos, tantos sonhos prematuramente esmagados, tantas mães e pais à deriva, sem um profundo sentimento de comoção nacional. E esta, também, é uma característica bem brasileira: somos solidários e emotivos. Gostamos de nos ajudar mutuamente. Claro que carregamos conosco preconceitos atávicos. A dor e o sofrimento no Sul e Sudeste têm um peso bem maior que nos grotões do Norte e Nordeste. A Seca no Piauí não tem a mesma importância da enchente em Teresópolis. Constatada a tragédia como em Santa Maria, estabelece-se a corrida desenfreada em busca dos culpados. “Queremos Justiça!” “Essa calamidade não pode se repetir !” Rapidamente, posto o excremento no ventilador, muitos sairão pouco perfumados. De quem é a culpa afinal? Do dono do ventilador? De quem colocou o excremento nas suas aspas? De quem ligou o eletrodoméstico? De quem não verificou a funcionalidade do bicho ? Possivelmente, pelas proporções gigantescas do holocausto de Santa Maria, todos os atores  sairão mais ou menos calabreados.
                                   Mas , no fundo, a mesma história tende a se repetir. Brasileiro não trabalha com prevenção do fogo, só como bombeiro. No dias que se seguiram ao incêndio, o Brasil todo começou a fiscalizar as Casa Noturnas e encontraram inúmeras irregularidades. Todas estavam perfeitamente aptas a refazer a calamidade gaúcha: esperavam apenas um estopim. Por que não vinham sendo vistas com a regularidade necessária ? Por que o problema não tinha sido detectado antes e sanado antes do sacrifício de incontáveis vidas ?
                                   E pior, amigos, escrevam aí : passados os primeiros momentos da tragédia, sepultada a notícia por outra mais cabeluda, tudo volta a ser “Como Dantes no Quartel de Abrantes”.  Depois do grande incêndio no Grand Circo Norte-Americano em Niterói , em 1961, o que melhorou na segurança destes espetáculos ? Quem fiscaliza os Circos, quando chegam nas cidades e quem verifica a segurança a fim de liberar  o alvará de funcionamento?  Após as enchentes de Teresópolis e Nova Friburgo em 2011, que se fez para que novas catástrofes não venham a acontecer ? Você se sente seguro em mandar seu filho a um parque de diversões após as medidas tomadas depois do Acidente no Parque Hopi Hari em São Paulo , no ano passado ?
                                   Culpados serão apontados em Santa Maria, processos se arrastarão na justiça, mas a centenária instituição do “jeitinho” providenciará  para que  os responsáveis saiam sapecados, mas ilesos. Só não há “jeitinho” para a imponderável dor das famílias diante da perda incalculável dos seus filhos queridos; nem para que essa tragédia anunciada não  se repita. Enquanto isso , vamos dando nosso jeitinho para que os papagaios continuem sendo negociados a preço de araras, exatamente como há cinco séculos atrás.

 31/01/13

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Pterossauro




                            "Todas as coisas têm o seu mistério,
e a poesia é o mistério de todas as coisas."
  Lorca

                                   Os Anos 70-80 , no Cariri, se caracterizaram principalmente, na área cultural, por um intenso movimento de  Contracultura, estudado, meticulosa e cientificamente, muitos anos depois, pelos olhos atilados do professor  Roberto Marques. Jovens estudantes, bafejados pelas ondas liberalizantes de Maio de 68; de Woodstock; dos Hippies;  da pílula e da disseminação das drogas; oprimidos, por outro lado, pela Ditadura Militar; sentiram-se tocados na sua criatividade, investindo contra a institucionalizada e centenária Cultura caririense. O Teatro investiu-se de novas linguagens, através dos movimentos estudantis, despertando nomes como Ronaldo Correia Lima, Francisco de Assis Souza Lima, Luiz Carlos Salatiel, José do Vale Filho,  Renato Dantas , Gil Grangeiro, encenando Brecht, Ariano Suassuna e peças de cunho mais autoral. O Cinema trouxe nomes , alguns ainda hoje fortíssimos no cenário nacional, como Rosemberg Cariri, Jéfferson Albuquerque, Hermano Penna, José Hélder Martins, Jackson Bantim. Nas Artes Plásticas brotaram :  Stênio Diniz, Luiz karimai, Normando, Edélson Diniz, Janjão e muitos outros. Na Música : Abidoral e Pachelly Jamacaru, Luiz Carlos Salatiel, Thiago Araripe, João do Crato, Luiz Fidelis, Zé Nilton Figueiredo, Heládio Figueiredo, Cleivan Paiva. A Literatura nos  brindou com : Ronaldo Brito, Francisco de Assis Souza Lima, Emérson Monteiro, J. Flávio Vieira, Roberto Jamacaru e Geraldo Urano. Todos estes artistas e tantos outros se conglomeraram em jornais como “Vanguarda” e “Flor de Pequi”; em publicações como “Cariri Jovem 68 e 69”; nas dez edições dos  “Festivais da Canção do Cariri”; nos “Salões de Outubro”, no “Grupo de Artes Por Exemplo” e no   “Xá de Flor”.  Todo este período áureo da Cultura Caririense, já estudado tecnicamente  e com tanto rigor pelo professor Roberto Marques, está a merecer um trabalho de cunho mais jornalístico , uma biografia lúdica destes lúdicos-loucos tempos.
                                   Este pequeno relato pode parecer irrelevante e enfadonho para quem não viveu esta época. Tende a parecer coisa de velho curuca contando para os seus netos : “Meninos, eu vi!”. Mas, paciência ! Ele surgiu, por conta de uma das mais sensacionais notícias dos últimos tempos. O “Instituto Caravelas” acaba de montar uma Exposição junto ao Centro Cultural Banco do Nordeste em homenagem a um poeta icônico da nossa região : Geraldo Urano. Durante toda uma semana convivemos com shows, performances poéticas, mesas redondas e uma Exposição cuidadosa, expondo a obra do nosso grande bardo. E o mais interessante de tudo : a iniciativa partiu do Instituto Caravelas  que tem no seu corpo amantes da arte da novíssima geração.
                                   A homenagem é mais que merecida. Geraldo Batista, Urano, Mérkur, Efe, multiplanetário,  foi o mais importante poeta caririense dos últimos quarenta anos. Mais que ninguém, Geraldo captou este multifacetado período histórico, pleno de enormes incongruências , de contrastes incontáveis, onde todas as chagas da civilização ficaram imediatamente expostas e era preciso mudar tudo e mudar rápido. Sua poética é única : sem data, sem fronteiras geográficas ou políticas, perpassada por uma fina e doce ironia. Os primeiros rudimentos do Tropicalismo em terras cearenses saíram de suas performances nos nossos primeiros Festivais.  Pronto a adentrar os sessenta anos, recluso, nosso bardo, mais que nunca prova que a Arte é capaz de quebrar os cadeados de qualquer cativeiro.  Suas letras foram musicadas por incontáveis parceiros : Abidoral, Pachelly, Luiz Carlos Salatiel, Cleivan Paiva, Calazans Callou. É dele a letra do principal hino deste período : “Lua de Oslo”.
                                   Em Arte, como nos fenômenos geológicos, os movimentos culturais vão se sobrepondo, como placas sedimentares. O novo nem percebe que está necessariamente montado no velho, no arcaico. O presente é, necessariamente, o passado remasterizado. Algumas vezes, o moderno faz prospecções e se encanta ao descobrir preciosas peças soterradas na história, mas sempre as vê com a curiosidade do arqueólogo, como fósseis. A descoberta de Geraldo Urano pelas novas gerações compara-se à descoberta, pela ciência, de um pterossauro vivo. Foi assim que o nosso poeta surgiu para os olhos brilhantes de inúmeros adolescentes nas performances poéticas. Levantou vôo , trazendo no bico o mistério de todas as coisas, vinha novamente de Urano, de Mercúrio, de Vênus , de Marte, do infinito :   lá onde os poetas tecem seus ninhos.

25/01/13

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

De ladeira abaixo





Rezam os anais da nossa cidade que o primeiro automóvel chegou em Crato, em 1919, por iniciativa do comerciante Manuel Siqueira Campos que terminou imortalizado,  nomeando uma das mais importantes praças de Crato. Nas décadas que se seguiram , com a pujança do nosso setor mercantil, o carro foi se tornando uma presença cada vez mais constante nas nossas ruas. Os antigos Fords Bigodes foram sendo substituídos , pouco a pouco, por modelos mais modernos : Buicks, Cadillacs, Mercedes, Mercurys, Simcas.  Após a II Grande Guerra,  começaram a chegar os caminhões que transportavam cargas , mas, também, travestiam-se de transporte coletivo interurbano. Vezes feitos pau-de-araras , tantas outras transformados em Mistos, levavam passageiros ,mundo a fora, por estradas terríveis e quase intransitáveis, num incômodo inimaginável nos dias de hoje.  Comparadas, no entanto, com as viagens longas, em lombo de animais, os caminhões traziam consigo o cheiro inevitável do novo :  maiores velocidade e conforto.
                        A tecnologia ainda primária dos primeiros veículos pesados, somada à tortuosidade natural de algumas estradas , como as que beiram a nossa Chapada do Araripe, elevavam, consideravelmente, o risco de acidentes. Ficaram famosas, na nossa região , a Ladeira das Guaribas aqui em Crato e a do Quincuncá em Farias Brito. Rodagens íngremes e extensas se associavam a fitas de freios aquecidas e terminavam desembestando caminhões, ladeira abaixo, com incontáveis vítimas. Até uns poucos anos atrás, a nossa Batateira via-se , diariamente, aterrorizada, temendo a chegada descontrolada de caminhões sem freio invadindo suas ruas e casas.
                        Pois o que vou contar vem desta época de heróicos desbravadores. Contava-se por aqui, com o exagero natural dos descendentes da Vila de Frei Carlos, esta historinha que buscava exemplificar o risco que era descer de caminhão a Ladeira das Guaribas.
                        Chagas vinha ,do Pernambuco, com um caminhão carregado de romeiros . Iam tomar a bênção ao  padrinho, pagar promessas e alimentar a indústria azeitada dos santeiros e fabricantes de rosários. Na famosa descida da serra, na altura da Barraca Verifique, o freio quebrou. O veículo começou a embalar, ladeira abaixo ,e o destino era mais que previsível: ou caía no abismo à direita ou, na melhor da hipóteses, desceria todo o percurso, equilibrado na munheca atilada do chofer e , ganhando velocidade e mais velocidade , terminaria por esborrachar-se nas casas da Batateira.  Os passageiros perceberam rápido o perigo e sojigados  entre ficar o serem comidos pelo bicho ou correr e ser pego por ele, arriscaram na segunda possibilidade. Começaram a saltar do caminhão em disparada: o desmantelo estava feito. Pernas quebradas, pescoços torcidos, pé-de-ouvidos ralados. Em pouco, tinham já pulado todos os romeiros da carroceria e da boléia. Chagas, por incrível que possa parecer, manteve-se firme na direção, aprumando ladeira abaixo. Para sua felicidade, já na proximidade das Guaribas, as rodas caíram na valeta à esquerda junto às  escarpas do Araripe. Adiante , perdendo carreira, as rodas travaram num grotão e o carro, por incrível que pareça, parou, ao arrastar o diferencial  pelo chão.
                                   Atrás , tinha restado um rastro de destruição. Romeiros feridos, ex-votos espalhados, alguns corpos sem vida. Aos poucos, os acidentados foram levados ao hospital, por carros que iam passando. Chagas permaneceu, ainda, por muito tempo, na boléia, sem entender o que tinha acontecido e deixado de acontecer. Uma viagem tão tranqüila! Como, de repente, se estabelece tamanho caos ?
                                   Uma hora depois chegou ao local um radialista. Resolvera entrevistar o  chofer, quando soube  da tragédia, através das vítimas que atulhavam a emergência do hospital. Aproximou-se o repórter do motorista e interrogou-o sobre o inusitado da cena:
                                   --- Amigo ! Parabéns, quanta perícia ! Você é um herói, meu chapa !Mas me diga uma coisa, por que você não fez como os passageiros e pulou do carro ?
                                   Chagas, ainda capiongo e confuso, explicou:
                                   --- É que eu carrego pregada aqui no tabeliê do carro, próximo ao volante, uma imagem do meu santo de devoção : São Cristovão ! Com ele, meu amigo, pra mim não tem tempo ruim !
                                   O radialista subiu na boléia , curioso em conhecer o santo milagreiro:
                                   --- Cadê o santo ? Me mostre !
                                   Chagas  escascaviou todo o quadro do caminhão e não encontrou o santo. Procurou embaixo --- poderia ter caído nos solavancos--- e nada ! Olhou, então, convicto  para o repórter e concluiu:
                                   --- O negócio foi mais feio que briga de foice no escuro. Pois na hora do pega-pra-capar, meu senhor, não é que até São Cristovão pinotou fora também,  pra num ver o destroço !

17/01/13

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Arisco



As cidades que se espreguiçam nas bordas da Chapada do Araripe vivem, literalmente, de sombra e água fresca. Os cratenses carregam consigo aquela fatia de preguiça e  de irreverência:  agimos  ainda  como caçadores-coletores,  igualzinho aos nossos avós cariris.  Somos mais afeitos à rede e à preguiçosa do que à enxada e ao moinho. É que trabalhar às vezes é até bom, mas dá uma canseira danada. E, ademais, para que essa  correria toda, se os frutos já pendem das árvores; os passarinhos ligam suas radiolas nos galhos; as fontes nos convidam para seus sonhos molhados e o verde da serra nos ensina, a todo momento, suas lições  de esperança ? Pernas para o ar que ninguém é de ferro !  Terminamos por ser, inexoravelmente,  um pouco a extensão da natureza que nos rodeia. Carregamos um sorriso mais úmido, uma postura mais refrescante, uma leveza de brisa, um líquido fluxo de levadas e cascatas. A placidez do mundo à nossa volta reflete-se no nosso espírito. A vida que palpita à nossa frente nos basta e marca, de alguma maneira, o ritmo das nossas sístoles e diástoles.
                                   A serra nos dá lições de perigo com seus penhascos e suas escarpas. A paisagem, vista da montanha, professa-nos aulas de pequenez. Somos um mero ponto diante da imensidão que se estende desafiadora no horizonte sem fim. Do alto, os homens são pequenos e as coisas minúsculas e salta-nos aos olhos a perfeita escala da nossa perturbadora  insignificância . O ciclo incessante das estações brota no nosso quintal e imanta-nos com sua magia: dias somos outono, noutros veraneamos, e , quase que continuamente , primaveramos , no aguardo dos rigores não tão rigorosos  dos nossos invernos exteriores e interiores.
                                   A vida , do outro lado da montanha, substituiu o concreto pelo verde; o sonho pela gula; as espigas pelos espigões; as flores pelo E.V.A; os frutos pelo isopor. Dizem-se todos fartos e felizes , protegidos pelos  seus muros de T.N.T. . Fartem-se ! A luz incandescente do lago artificial lhes ofusca. A nós , basta-nos o milagre nosso de cada dia : a cascata já empina as turvas águas do Batateiras e os pequis estão florando ali no Arisco e,  logo mais , nas encostas da Chapada. Vejam !

11/01/13