quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Entrevista ao Blog das Entrevistas


Escritor inquieto e bem humorado, José Flávo Vieira busca no seu trabalho como médico o enredo e a alma para suas histórias carregadas de humanismo e questionamentos sobre a vida. Com uma produção crescente nos ultimos anos o médico/escritor consegue conseque fazer o hibridismo entre o erudito e popular, entre o local e o universal.


Alexandre Lucas - Quem é José Flavio Vieira?

José Flávio Vieira - Sou um sujeito esquisito, casado com a Medicina e amante da Literatura. Faço parte de uma longa tradição de médicos que se ligaram às Letras :Lobo Antunes, Guimarães Rosa, Moacir Scliar, Ronaldo Brito, Pedro Nava. A Medicina nos faz viver nesse limite impreciso entre a vida-morte, saúde-doença, bem-estar--infelicidade e acredito nos ajuda a conhecer um pouco mais da fragilidade humana. Pedro Nava dizia que ao médico era tão importante o Livro de Fisiologia como a leitura de Balzac. Não me considero escritor na acepção mais plena da palavra, assim como um corredor de fim de semana não pode se arvorar de Maratonista. A Literatura é um apêndice importante na minha vida, me deu a possibilidade de conhecer novas pessoas, fazer novos amigos e registrar, além da êfemero da oralidade, minha relação com a vida e o mundo.

Alexandre Lucas - Quando teve início sua atuação na literatura?

José Flávio Vieira - Cresci dentro de uma Livraria. Meu pai era professor de Língua Portuguesa e próprietário da Livraria Católica aqui em Crato. Desde menino gostei de escrever, na quinta série já redigia os primeiros textos e os primeiros poemas. Como adolescente tinha um diário escrito religiosamente. No Colégio Estadual Wilson Gonçalves fundei o primeiro Jornal Mural, participei de Grêmio Literário e fui um dos fundadores do Jornal Vanguarda nos fins dos anos 60 . Ali participei também da primeira Coletânea de textos: "Cariri Jovem 67". Hoje, olhando para trás ,com o distanciamento dos anos, imagino que desde mininote pulsava em mim esta tendência e já observava o mundo com olhos de escritor.

Alexandre Lucas – fale da sua trajetória:

José Flávio Vieira - Em 1970 fui estudar em Recife e entrei na Faculdade de Medicina em 1972, formando-me em 1977. Fiz Residência Médica no Hospital Getúlio Vargas na Veneza Brasileira(1978-79) : Cirurgia Geral. No período de Faculdade , em plena Ditadura Militar, participei de Jornais estudantis, como "O Esculápio" . Participei, também, dos Festivais da Canção do Cariri em 1974 e 1975 com o Grupo Kirimbau formado por primos e irmãos meus. Fui letrista de várias canções (" Sargaços" , quarto lugar em 1974; "Salvo Conduto", terceiro lugar em 1975 e muitas outras). Veio dessa época os meus primeiros problemas com a censura. Formado, voltei ao Crato em 1980 e desde então aqui estou. A vida de médico e pai de família me tomaram o tempo e escrevi apenas esporadicamente para os jornais da região. A partir de 1997, no entanto, comecei a escrever regularmente uma crônica nos sábados. Em 2003 lancei o primeiro livro "A Terrível Peleja de Zé de Matos com o Bicho Babau nas Ruas do Crato", um texto teatral que terminou sendo montado, através do II Edital de Incentivo às Artes do Estado do Ceará". Teve Direção minha, de Luiz Carlos Salatiel, Joaquina Carlos, Mauro Cézar, Abidoral Jamacaru e João Nicodemos e envolvia uma trupe de mais de 15 atores. Foram mais de 40 apresentações no Estado do Ceará, com grande sucesso, inclusive com premiação de Melhor Texto, no Festival de Acopiara.Em 2008 lancei o "Matozinho vai à Guerra", um livro quase que memorialístico e muito bem humorado e que terminou tendo uma das histórias : "Zezinho e o Cinematógrafo Herege" sendo levada ao Cinema por Jéfferson Albuquerque Júnior ( 2011) . Finalmente, em 2011, lancei "O Mistério das 13 Portas no Castelo Encantado da Ponte Fantástica" , um livro infantil baseado nos mitos caririenses . O Livro tem ainda um CD com 15 músicas feitas em parceria com inúmeros artistas : Abidoral Jamacaru, Luiz Fidelis, Lifanco, Luiz Carlos Salatiel, Zé Nilton Figueiredo, Pachelly Jamacaru, Amélia Coelho, Ulisses Germano, João Nicodemos e com direção musical do maestro Ibbertson Nobre; além de um Audio-Livro que vem anexo . "O Mistério..." ganhou o I Prêmio Rachel de Queiroz" da SECULT e está adotado como paradidático em inúmeras escolas cratenses. Participei ainda de Coletâneas : "Cariricaturas" e "No Azul Sonhado" e fui vencedor dos três Prêmios SESC de Contos ( 2007-2009-2011) , com coletâneas também publicadas. Continuo escrevendo para o Rádio e para o jornalismo virtual ( blogs : Cariricult, Coletivo Camaradas, No Azul Sonhado e o meu : Simbora prá Matozinho).Fui convidado este ano, ainda, a participar do Projeto "Livro de Graça na Praça" em Belo Horizonte, com conto em coletânea que será lançada em Outubro.

Alexandre Lucas – como você consegue conciliar o trabalho médico com a literatura?

José Flávio Vieira - Esta pergunta muitos colegas e clientes me fazem. Como você arranja tempo? Digo sempre que tempo a gente sempre arruma se assim interessar. E para mim escrever traz um grande deleite, um grande prazer, não é um trabalho a mais, mas uma maneira de voar para fora das tariscas da gaiola da pesada vida cotidiana. Além do mais, sou um hiperativo e não consigo ficar parado muito tempo. Não bastasse isso, a Literatura para mim é uma extensão da minha vida profissional como médico e é nesse manancial que eu bebo para derramar depois no papel.

Alexandre Lucas – Todos os dias você escreve?

José Flávio Vieira - Normalmente escrevo uma vez por semana. Sou um indisciplinado, anárquico por natureza, mas nesse ponto sou muito determinado: escrevo às quintas, a não ser quando existe um Projeto novo, aí caio de cabeçae torno-me mais regular.

Alexandre Lucas – A sua forma de escrever une o humor com o linguajar nordestino. Você acha que isso caracteriza a sua poética?

José Flávio Vieira - O humor é uma característica certamente da maneira com que escrevo, falo, vivo. É inclusive uma característica familiar, acredito que roubei das minhas raízes varzealegrenses. Gosto também de mesclar a linguagem erudita com a popular( que no fundo são o verso e anverso de uma mesma moeda) e, principalmente nos diálogos, busco imprimir a doce língua do povo. Uma tentativa geralmente inglória de levar o doce da oralidade para a forma escrita.

Alexandre Lucas – Como você ver a relação entre literatura e política?


José Flávio Vieira - Acredito que a Arte é revolucionária na sua essência e, no fundo, o artista sempre se posiciona politicamente. Escrevemos sempre para denunciar, para tentar mudar o leme do barco e dar uma nova direção. Não aprecio, no entanto, a arte engajada ( qualquer tipo de engajamento no fundo é um cerceamento da atividade artística), embora admita a necessidade disso em determinadas situações, como na Ditadura Militar, por exemplo.

Alexandre Lucas - O seu livro Matozinho vai à guerra foi indicado para o vestibular da Universidade Regional do Cariri – URCA. Você acredita que isso potencializa a produção literária da região?

José Flávio Vieira - Fiquei muito feliz com a indicação, até porque era uma luta de muitos anos. Finalmente temos a possibilidade de olhar também para o umbigo. A URCA acordou para a possibilidade de ter uma visão também regional da Literatura. Isso certamente potencializa a produção literária local e abre horizontes imensos para que a juventude conheça os nossos escritores regionais. O Ceará tem um viés terrível: ele não olha para si , ele sempre vislumbra o mar em busca de Miami. A possibilidade da Arte Popular fazer parte do cotidiano das pessoas passa necessariamente pela Escola e, finalmente, começamos a descobrir isto.

Alexandre Lucas – Quais os seus próximos trabalhos?

José Flávio Vieira - Tenho um Livro pronto de histórias mais urbanas : "A Delicada Trama do Labirinto" que estou vendo a possibilidade de publicar ainda esse ano. Penso ainda num livro de Contos que ainda merece um trabalho mais demorado. E tenho pronto um Audio- Livro de textos: " Ícaro". Penso ainda escrever alguma coisa sobre a História da Medicina aqui no Cariri. E mais: pretendo voltar a escrever para o teatro , uma das minhas paixões.

Alexandre Lucas – Quais os desafios?

José Flávio Vieira - Gosto de trabalhos coletivos ,onde possa envolver os inúmeros artistas da região. No Zé de Matos juntamos teatro-dança-música e em "O Mistério das 13 Portas" mais de 50 artistas estiveram participando do Projeto. Congregar tantas forças não é fácil, passa por administração de egos e sensibilidades, mas potencializa imensamente o trabalho e este é um desafio interessante. Um outro desafio é fazer com que o nosso trabalho seja reconhecido na nossa própria casa, que as pessoas leiam nossos escritores,assistam a nossas peças teatrais, que nossas Rádios toquem nossos artistas, que o Reisado seja visto como uma expressão da nossa identidade e não como extraterrestres que desceram numa nave espacial na Bela Vista.E também que os palcos das nossas festas mais tradicionais não sejam exclusividade do que existe de mais reles na Cultura brasileira. Isso passa pela Escola e é lá onde devemos exercer a nossa força para que a mudança pouco a pouco se efetive. E mais: o Estado precisa ser obrigado a exercer sua função , através de Política Cultural.E aí temos uma arma poderosa que precisa ser engatilhada : o voto.

Alexandre Lucas – Como você vê a relação entre arte e política?

José Flávio Vieira - A Arte por si só é um instrumento político de mudança, de vislumbre de novos tempos e novos rumos. Precisará apenas ter a leveza, a delicadeza para ser Arte e fugir simples e cartorial panfleto.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O Crepúsculo do Corno


E não há carga de fel que não traga juntinho sua xícara de mel, né mesmo ? As limitações que os anos nos vão impingindo nos carreiam alguma dose de experiência. O leitor pode até pensar : mas que o preço é muito alto ! No que preciso concordar, não sem antes inquirir : e tem outro jeito? A outra opção, infelizmente, mostra-se bem pior, assim: dêem-me a carga dos anos com sua infâmia e seus efeitos colaterais , ficarei brincando com o carrinho de rolimã da experiência. Ele não serve prá muita coisa, mas ao menos me engabelará um pouco e esquecerei o nervosismo inexorável dos ponteiros do relógio.

Fiquei esses dias a matutar quanto à mudança nos costumes, não tão diferente da que vemos na paisagem da nossa cidade. Há alguns anos, estudando alemão, perguntei ao meu professor sobre palavrões da língua germânica ( facílimos de um aluno decorar, pela curiosidade que despertam). Aos poucos os fui citando em português e o professor , oriundo de Berlim, me ia traduzindo. Em determinado ponto, gritei : Corno.! Ele não compreendeu e eu precisei explicar do que se tratava. Qual não foi minha surpresa quando, explicado o palavrão, o mestre simplesmente concluiu: --- Não existe este palavrão na Alemanha, isso lá não é nome feio. Fiquei surpreso pois ,no Nordeste brasileiro, existia uma pena de Talião para os casos de infidelidade feminina, não tão diferente daquela aplicada ainda hoje em alguns países da África e Ásia. Firmei bem a infidelidade como feminina, porque a do gênero masculino sempre foi perfeitamente aceita como tolerável , normal e necessária. Nem mesmo existe o substantivo feminino de Corno. Em compensação , o peso que recaia sobre o homem em caso de cair nessa condição era simplesmente terrível: um cargo vitalício e quase impossível de transportar , tamanha a ignomínia que impingia ao agraciado.

As gerações anteriores à minha tinham uma perspectiva muito diferente de casamento. Geralmente não acontecia qualquer envolvimento romântico, muitas vezes havia acordos de famílias, não muito diferente dos enlaces matrimoniais da monarquia. O casal firmava-se no ideal de gerar e criar os filhos e manter o patrimônio familiar. O prazer o homem procurava nos bordéis e nas senzalas: era um absurdo fornicar com a mãe dos próprios filhos, uma verdadeira tara sexual. E à mulher não se permitia ser muito mais que uma fábrica de bruguelos. Mas as folhinhas do calendário foram pouco a pouco sendo desfolhadas. As autoridades familiar e religiosa terminaram com seus grilhões arrebentados. As gerações subseqüentes , principalmente após os libertários anos 60, vislumbraram horizontes até então invisíveis. Caíram por terra os mitos da virgindade, da gravidez indesejada, do casamento arranjado, do papel de ator coadjuvante da mulher, das galés perpétuas do matrimônio. O prazer deixou de ser um pecado execrável e tornou-se uma busca importante e necessária. E o Tesão terminou por ser aceito e cultivado. E o casamento alçou um outro patamar: são mais voláteis e mais verdadeiros, existem sobre as mais variadas formas ( chamegos, ficas, amizades coloridas, rolos, ajuntamentos ) e prescindem muitas vezes da bênção religiosa, civil e social.

Todo esse vendaval levou ao franco declínio do Corno. Deixou de ser palavrão como na Alemanha, tem até Associação que os congrega e também aliviou um pouco o peso sobre os maridos traídos e , principalmente, sobre as mulheres que já não são apedrejadas em praça pública como outrora. A avalanche dos meios de comunicação abriu infinitas possibilidades no ramo da infidelidade. Os tipos tradicionais do folclore popular se desvaneceram com as imensas variedades aparecidas : Corno Facebook, MSN, I Pod, I Pad, Virtual, Maria da Penha. E o corno já não mais faz sucesso, já não é mais apontado na rua , nem corre o risco de ser cadastrado pelo IBAMA. De tão freqüente , perdeu a graça e, também, os outros se eximem de criticar porque, no fundo, todos os homens sabem que como num consórcio, participando do jogo, um dia cada um pode ser contemplado.

Um querido amigo que partiu recentemente dizia que a Cornagem tinha se tornado uma coisa tão séria que, inclusive, já seguia rigorosamente as Leis da Física. “Um Corno em movimento, tende a continuar em movimento”, ou seja tende a repetir a carga por outras vezes : primeira Lei de Newton. “A Toda ação do homem em procurar de cornear a Mulher, existe uma Reação da companheira de mesma intensidade e em sentido contrário” , segunda Lei de Newton. “Um corno atrai outro na razão direta da cornagem recebida e no inverso do quadrado da distância dos ricardões” , Lei da Gravitação Universal que explica a necessidade dos cornos se reunirem e associarem. Inclusive, dizia esse amigo, já houve repercussão até na Física Moderna. Existe, segundo ele, A Teoria da Relatividade da Cornagem. Ou seja : ser corno é relativo. Se eu descobrir que sou corno em Salitre, eu mato a mulher e o amante ; se eu descobrir o mesmo aqui em Crato, mato o amante; se em Fortaleza não mato ninguém, só me separo; agora se morar no Rio de Janeiro e não for corno, vou ficar preocupado e deprimido: por que ninguém quer essa mulher, meu Deus? Aí sou capaz de me suicidar.


16/02/12

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Ford Bigode 29



Pois é, amigos, como diria Alceu : “Você quer parar o tempo/ O tempo não tem parada”. À medida que os anos vão se sucedendo, vamos tentando inutilmente deter os ponteiros do relógio. Uma vontade danada de diminuir a marcha do carro que segue na estrada escura , inexoravelmente, para a beira do abismo. Como se buscássemos beber na Fonte da Juventude, pomo-nos a tentar puxar o freio a vácuo do trem desembestado: mentimos a idade, pintamos os cabelos, turbinamo-nos com as panacéias da modernidade : o Botox, o Viagra, o Interlace, a Lipo. Alguns tentam , em desespero, métodos pouco ortodoxos : senhoras envergam roupas de adolescentes, cortam o cabelo em pastinha, ressuscitam as minissaias e os decotes profundos. Velhos vestem bermudas de surfista, bonezinho da Nike e tênis de luzinha no salto. Medidas hilárias e muitas vezes ridículas : “O tempo não tem parada”. Muitos buscam diminuir o impacto com eufemismos do tipo : “o que conta é a idade do espírito e não a idade cronológica”. Vá lá que um Ford Bigode 1929 pode estar conservado e novinho em folha, mas jamais deixará de ser um Ford Bigode 29, um carro de colecionador, exposto à curiosidade pública, com peças e acessórios completamente obsoletos. Outros se firmam nos poderes do ditado : “Cavalo velho: capim novo !” Aí se enchem os logradouros públicos de casais esdrúxulos: avô namorando com bisneta, avó cantando : “Ai seu te pego, delícia...” para netinhos. Claro que o amor é possível varar todas as diferenças , inclusive as da idade, mas convenhamos que a freqüência anda bem além da conta ou, melhor dizendo, esta freqüência exacerbada de casais em extremos de idade estão bem além da conta : Bancária.
Já que o Tempo não tem parada, amigos, é importante se ater aos sinais premonitórios. Pois não é fácil de aceitar o inaceitável. O diagnóstico dessa entidade clínica geralmente é dada pelos outros e não pelo próprio padecente. Um professor nosso dizia que velho é aquele que tem pelo menos dez anos a mais que você. Os nonagenários assim acreditam que só pode ser considerado idoso Matusalém, Noé e a nossa querida Tália Márcia de tão saudosa memória. Ai vão alguns sinais e sintomas inequívocos da infalível quebra do Cabo da Boa Esperança, arrancados de quem tem experiência no assunto : Gastar mais na Farmácia que no Supermercado; ser alertado no banco para se dirigir à fila de atendimento prioritário; ter que escolher os alimentos não pelo sabor, mas pela quantidade de colesterol, de carboidratos e sódio da sua composição; ao viajar a nécessaire dos cosméticos ser menor que a dos medicamentos; não suportar essas musiquinhas modernas e reclamar da altura do som; gastar mais com tinta do que o pintor de paredes; ouvir o indefectível som de “A Bênção, vovô(ó)” -- pois a chegada dos netos, também, é um sinal infalível : do topo do seu monte de anos já duas gerações lhe contemplam !
Diagnosticado o problema amigo, não há tratamento conhecido e ,mais, a coisa tende a evoluir. Só existem dois caminhos possíveis. Um deles é negar a enfermidade e , sorrateiramente, procurar formas paliativas de tocar a vida. E aí a sociedade de consumo tem uma infinidade de artigos esperando na prateleira para repor as peças do Ford Bigode 29. Só não vai chegar a uma Ferrari de última geração, mas vale tentar, né ? A outra é entender a inexorabilidade do tempo e que mesmo em direção ao abismo à frente é possível curtir a paisagem ao derredor, conversar com os passageiros e, agora já com tempo de sobra, parar para um banho de bica e para a curtição dos netos, já que a desabalada carreira do veículo não nos possibilitou conviver de perto com os filhos. E mais, entender o dinamismo da existência. Precisamos dirigir o carro olhando para frente e curtindo a paisagem ao lado pois ela nunca mais retornará. De vez em quando, nos será permitido olhar um pouco pelo retrovisor, mas sempre atento à longa e misteriosa estrada que se alonga à nossa frente. Adiante está a morada da morte , mas é ali pertinho que se encontra, também, o palácio da vida. A primavera e o verão passaram com suas flores, seus frutos e seus espinhos. Agora no outono , as árvores nuas se despem de suas folhas , a paisagem no alto já não parece tão bela, mas o caminho está todo atapetado e é sempre possível tecer das folhas um cobertor quentinho para os rigores do inverno que já se avizinha.

J. Flávio Vieira

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Sopa e Mel na Tigela do Tempo


Dona Escolástica até tinha o direito de implicar com a sonoridade do seu nome . Ele terminava por lhe imprimir um ar de austeridade monástica . Pronunciado , mesmo carinhosamente, já soava como uma ordem do general para o samango. Aquilo era epíteto pesado demais para uma pessoa só, devia ser carregado, não por ela, mas por toda uma escola filosófica, pensava consigo mesma. A opinião de Escolástica, no entanto, não era compartilhada por seus conhecidos. Havia um consenso entre todos os amigos : mais que um nome , aquilo tinha sido quase que uma premonição do velho Patápio Brandão Peixoto, o pai dela. Escolástica, desde nova, mostrara-se de uma determinação e um vigor impressionantes. Despachada, nunca levou desaforo para casa e jamais precisou de ajuda de quem quer que fosse para resolver suas questões. Menina, já detinha o título de terror da rua e os meninos tinham mais medo dela do que da palmatória dependurada no armador da sala. Cresceu com a mesma impulsividade da infância e levou para a adolescência e a vida adulta aquela independência invejável. Fez-se professora primária e os alunos temiam mais a mestra do que os pais.
Toda intrepidez já precoce de Escolástica fez com que os homens dela se afastassem, como o capeta de água benta. Quase não teve namorados e casou coroa, já engatilhando os últimos cartuchos da macaca. O marido , Serginaldo, era barbeiro e um barriga-branca convicto. Diante da esposa, era autorizado a pronunciar apenas algumas palavras básicas : Sim , senhora ! Já vou ! Apois tá certo ! Você é quem sabe ! O casal teve apenas um filho que , para manter a tradição, envergou o pomposo nome bíblico de Absalão. A escolha do nome do filho transparecia uma outra faceta da nossa professora: beata piedosa , fazia do debulhamento de terço e mergulho em pia de água benta seus esportes prediletos. As más línguas até comentavam que o motivo de Absalão ser filho único, vinha da necessidade de fornicação para fazer menino: Escolástica não podia aceitar um escandelo desse tamanho e deve ter ficado aguardando o Anjo Gabriel anunciador da segunda gravidez -- essa sim totalmente livre das impurezas do coito.
A regra da mão e a luva quebrou-se , totalmente, já na segunda geração do velho Patápio Peixoto. Absalão, rapidamente, fugiu à regra. Desde cedo apresentava uns trejeitos estranhos e, já adolescente, assumiu, totalmente sua sexualidade. Só duas pessoas não percebiam ou fingiam não perceber a sensibilidade aguçada e as roupas e adereços extravagantes do menino : os pais. Absalão, rápido, entendeu a barra que era, viver aquilo que a vida lhe escolheu, numa cidade pequena. Cedo, resolveu ir estudar na capital. Desde pequeno demonstrava grande sensibilidade musical e ainda pivete começou a tocar violão intuitivamente, arte que deve ter herdado dos Brandões.
Na capital, fez-se músico de formação e não demorou a ser conhecido em todo o estado por suas habilidades nas cordas da guitarra. Tinha uma grande legião de amigos mulheres, amigas homens e fãs das mais variadas orientações. Pessoas que não tinham qualquer receio em viver os sabores da vida conforme eles lhe haviam sido servidos à mesa. Com o nome na mídia, Absalão fez-se o orgulho da mãe que dava notícias da visibilidade do filho por onde passava. No fundo, aquilo era uma maneira, à Escolástica, de passar na cara a vitória do rebento, frente aos reiterados comentários maldosos e úmidos de preconceito dos vizinhos e amigos.
No fim do ano, Absalão ligou para a mãe informando que estava indo passar alguns dias com ela. E mais: ia levando a banda e um grupo de amigos. Quando o filho chegou, foi aquela alegria danada: como pinto em beneficiadora de arroz. À medida que o dia foi passando, no entanto a genitora de Absalão não tardou, pouco a pouco, a transformar-se em novamente em Escolástica. Torceu o nariz para os amigos do filho que usavam roupas esquisitas, mesmo sem perceber, com aquela cegueira de mãe, que os homens eram afeminados demais e as mulheres másculas usavam coturno. À noite, na hora de dormir, em casa pequena, uma Escolástica tradicional saltou de dentro da mãe do músico e ordenou:
--- Ei, pessoal ! Tudo bem que vocês estão aqui e nós estamos felizes com a visita, mas vou logo avisando: aqui não tem regras ! Não tem modernismo , não ! Nada de safadeza! As mulheres dormem num quarto e os homens no outro !
Mal percebera Escolástica que o mundo dera muitas voltas e que a sopa, derramando-se na tigela do tempo, caíra no mel. Enquanto se agasalhavam, par com par, os homens com homens e mulheres com mulheres, uma das meninas sussurrou para um Absalão já em plena lua de mel, no outro lado:
--- Absalão, Absalão ! Mas tua mãe é muito avançadinha, menino ! Benza-te Deus !


02/02/12