sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Pra que serve a Poesia ?


Permitam-me começar esta cerimônia com um poema do “Four Quartets” de Thomas Stearnes Eliot . É que a literatura carrega consigo seus misteriosos ritos e se há muito de eucarístico na Poesia , os versos são uma Prece e nos conectam com o divino e o sagrado, fazendo pairar sobre todos nós os eflúvios das musas e deuses do Olimpo.



“Em meu Princípio está meu fim. Umas após outras

As casas se levantam e tombam, desmoronam, são ampliadas,

Removidas, destruídas, restauradas, ou em seu lugar

Surgem um campo aberto, uma usina ou um atalho.

Velhas pedras para novas construções, velhas lenhas para novas chamas,

Velhas chamas em cinza convertidas, e cinzas sobre a terra semeadas,

Terra agora feita carne, pedra, fezes,

Ossos de homens e bestas, trigais e folhas.

As casas vivem e morrem: há um tempo para construir

E um tempo para viver e conceber

E um tempo para o vento estilhaçar as trêmulas vidraças

E sacudir o lambril onde vagueia o rato silvestre

E sacudir as tapeçarias em farrapo tecidas com a silente legenda”

.................................................................................................................

“Aqui ou ali, não interessa

Devemos estar imóveis e contudo mover-nos

Rumo a outra intensidade

A uma união mais ampla, uma comunhão mais profunda

Através da escura frieza e da vazia desolação,

O grito da vaga, o grito do vento, as águas infinitas

Da procelária e do delfim. Em meu fim está meu princípio"


E a poesia, amigos, parece louco dizê-lo , está no princípio de tudo neste universo. O Gênesis e o Apocalipse que mais são além de um orgasmo poético das superiores e insondáveis forças que com seus cadarços invisíveis movem a amplidão ? A flor fosforescente que, em botão, desabrocha no campo; a pétala que adiante cai e alimenta o solo; a semente que se abre e reinicia o ciclo; o pólen aspergido pelo vento que amplia o universo da fertilização; o corpo desfalecido que sucumbe – são todos capítulos de uma mesma história, ramalhetes de um mesmo bouquet.

Pareceria , então, perfeitamente plausível que aqui estivéssemos em comunhão , para uma celebração sagrada: o lançamento de um livro de poesias. No entanto, diante de um mundo tão pouco poético, tão tecnicista, tão pouco glamoroso, esta solenidade pode parecer totalmente obsoleta e grita-nos a pergunta inevitável : Prá que diabos serve Poesia no mundo de hoje ? Um mundo onde não mais se conversa: se tecla; não mais há encontros em praças, mas em chats; onde o olho-a-olho, o toque, o sorriso foram substituídos pelos e-mails. Um mundo líquido, tão bem caracterizado por Baumman , onde a fluidez estonteante leva de roldão não só as modas, os costumes, mas os sentimentos mais profundos que serviram um dia de amálgama contra a inevitabilidade da morte e o cupim inexorável do tempo. Numa sociedade tão pragmática como a que nos tornamos, onde tudo no planeta se tenta representar numa planilha do Excel; onde o Código de Barras foi se tornando mais importante que o Código de Ética; onde o grande dilema de Hamlet hoje se resume a “Ter ou não ter: eis a questão”... Prá que diabos serve a Poesia ? Se já não nos interessa o mistério das coisas porque tudo pode ser encontrado facilmente no Google; se escancaramos todas as barreiras da intimidade ; se amigo é definido como aquele que faz parte da mesma comunidade no Facebook; se a Ciência tudo pode e tudo permite; se só existe um Deus : O consumo e uma só Igreja verdadeira: o Shopping Center... Prá que diabos se lança um livro de poesias ?

Antecipei, amigos, estas questões porque percebo, claramente, que muitos dos que vieram já se viram diante de iguais inquirições e boa parte daqueles que convidados não compareceram, com certeza, assim o fizeram, acicatados por dúvidas semelhantes. A Poesia ? Tem alguma serventia ?

Pois bem, amigos, tentarei decifrar o enigma da Esfinge. A poesia não possui qualquer utilidade prática, como dizia Leminsky : é um objeto perfeitamente inutilitário. Com ela você não desconta cheque em Banco, não compra bolacha em supermercado, não cura tísica de menino catarrento. Mas a nossa Sociedade, amigos, só compra objetos perfeitamente úteis? Observem a casa de vocês num dia de mudança: quanto traste adquirido desnecessariamente ! O taco de beisebol trazido como lembrança de Miami; as roupas incontáveis que caíram de moda de repente; o sapateiro repleto de sapatos que fariam inveja a um imbuá... Hoje, amigos, mais que nunca, as coisas todas são perfeita e intencionalmente descartáveis , até nós! Mas não proponho que vocês comprem poemas por simples compulsão, que juntem os livros às outras tantas coisas imprestáveis da casa de vocês. Não !

Observem mais um pouco e percebam que na nossa casa existem objetos valiosíssimos, inegociáveis e que, por outro lado, não teriam qualquer valor de mercado. A foto da primeira namorada que entocamos no fundo da gaveta; o primeiro caderno de caligrafia ; a primeira boneca de porcelana; uma pedrinha que trouxemos da Chapada Diamantina num Réveillon inesquecível... ninguém daria um vintém por qualquer um desses itens e por outro lado muitos não os venderiam por qualquer dinheiro desse mundo. Eles têm um valor intrínseco que é impossível de mensurar. Não existem balanças aferidas para pesar o sonho e os mais estranhos objetos do nosso desejo. Há assim valores que sobrepassam as simples tabelas contábeis do Deve-Haver. E eu ousaria afirmar que – imunes aos bolores do tempo e à ferrugem das horas – esta é a única bagagem que nos será permitida conduzir na derradeira viagem quando o Princípio de tudo tocará a sua outra extremidade : o Fim.

A Poesia, amigos, faz parte dessa aresta imaterial da nossa existência. Sem ela é-nos impossível atingir a essência íntima das coisas. Ela possibilita enxergar além da fronteira do aparentemente real. Olhos embotados pela dura realidade cotidiana , uma normalidade perigosa nos solapará pouco a pouco a alma: a violência, a desigualdade, a injustiça, o preconceito, a fome irão se tornando para nós perfeitamente normais e imutáveis. A Poesia nos mostrará outros caminhos a trilhar, antepondo-nos um filtro diante das retinas poderemos perceber nuances até então inexploradas do universo à nossa volta. A percepção dessa dimensão multi-sensorial nos faz compreender o planeta além do nosso pomar e do nosso quintal. Seria impossível a um poeta acender o estopim do Enola Gay ou incendiar Roma, mesmo sob o pretexto de compor uma Sinfonia perfeita. É que Ética e Estética são o verso e o anverso de uma mesma moeda, amigos. Se alguém pretende ensinar Ética para as gerações futuras, conduza as crianças pelas veredas da Arte. Qualquer pessoa que consiga se emocionar diante do Não-Figurativismo de Iberê Camargo , tem no seu âmago uma profunda comunhão com os mistérios da Vida. E a Poesia , amigos, é o amálgama básico de qualquer forma de Arte, uma poderosa forma de alumbramento.

E aqui estamos nós, em meio a tantas digressões, para o lançamento do sétimo livro do nosso Wellington Alves: “Inventário de Poesias”. Mais conhecido por todos pelo afetuoso apelido de TON-TON. Ele, em verdade, seguindo o epíteto quase que premonitório, sempre executou a sinfonia da Vida em muitos tons : Médico psiquiatra, cidadão do mundo, alma de boêmio, militante político ,compulsivo tecedor de amizades; a poesia de Ton-Ton é uma extensão da sua vida. Apesar do que possa parecer o título desse livro, não se trata de um poeta burocrático, Ton-Ton deixa fluir dos seus versos, o encantamento de um vate maduro frente ao mundo com seus mistérios, suas complexidades e sua finitude. Sabiamente, o poeta faz o inventário, em vida, para muitos amigos e muitos leitores, da riqueza que foi auferindo durante a existência. Não de bens materiais perfeitamente expostos ao caruncho e às traças e que fazem a canibalesca festa dos inventários tradicionais, onde se partilham quinquilharias , se destroem laços familiares e se criam inimigos figadais. Ton-Ton deixa como herança sentimentos impalpáveis mas perceptíveis fragmentos de toda uma existência: seu amor incondicional por Fátima e pelos filhos, sua proximidade ao sagrado e sua aversão ao ritual, a estrada que se alonga às costas e parece se estreitar à frente.

Sintam-se assim, todos, seus herdeiros universais. A cada um de vocês caberá : uma nesga da lua de agosto, um crepúsculo na duna de Jeriquaquara, um sopro do orvalho da Chapada, um alvorecer no Vale do Loire. Este é o tempo de viver e conceber, da ampla comunhão com a vida, antes que o Tempo venha estilhaçar as trêmulas vidraças que separam o Príncipio do Fim.


P.S. - Apresentação do livro "Inventário de Poesias" de Wellington Alves, em 24/11/11 no SESC /Crato, com inesquecível Performance de Luiz Carlos Salatiel.


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Krakatoa


Primeiro ano da Residência Médica. Recém saídos do Internato, os médicos carregavam consigo toda a ansiedade e insegurança do início da profissão, mas , por outro lado, a certeza de que era possível dar um cangapé na falida estrutura da Medicina brasileira e construir um mundo melhor que o proporcionado pela geração anterior. Sem utopia, não se vive! Hospital Público de referência, na capital, sobrevivia em meio aos inúmeros contrastes. De um lado, um Corpo Clínico da mais refinada qualificação, do outro as deformidades típicas dos países de terceiro mundo : a falta quase contínua dos mais elementares insumos. Os residentes, uns 30, com aquele ofuscante brilho nos olhos de início de carreira, se subdividiam nas inúmeras especialidades: Clínica Médica, Cirurgia, Ortopedia e Oftalmologia. Os homens, naquele ano, eram feios de fazer dó : pareciam uns papangus. As mulheres, mais jeitosas, com exceção de uma ou outra mais fraquinha de feição, como comentavam os meninos. Havia, no entanto, uma Residente da Oftalmo que era lindíssima: uns dois metros, olhos azuis, curvas que lembravam a estrada de Petrópolis. Os residentes a comparavam ao Krakatoa : alta, linda, em plena erupção, mas perfeitamente inacessível à maioria dos mortais. Nada mais congruente que um colírio daquele naipe escolhesse a área de oftalmologia, pensava a tropa !

Com o desenrolar dos dias, os meninos se foram apaixonando alternada e seguidamente por Ludmilla – assim se chamava e o nome sensual já lhe fora colocado quase como uma premonição. Aceravam, faziam o cerca-lourenço, soltavam a lábia que não era suficiente para derrubar um Airbus daquela envergadura e , depois, diante na negativa, caiam num estado de desolação de fazer pena. Aos poucos, os rapazes desconfiaram que Ludmilla se fazia de gostosa e difícil por uma causa muito pragmática. Devia ser muito interesseira, conhecia perfeitamente o farto e rico material que possuía e não pretendia queimar as fichas com qualquer pé rapado. O grande problema ali é que a Residência parecia laje de rio : era uma liseira generalizada! Os carros da galera eram geralmente populares e com largos anos de estrada, muitos já nem pagavam IPVA.

Pois bem, um belo dia, Ludmilla comentou, em tom de deboche, a Getúlio, um residente de cirurgia, que inclusive já tinha sido preterido por ela, que não lhe faltava mais nada. Pois , no último fim de semana, o Crizélido, o mais feioso da turma, residente da Ortopedia, depois de umas cervejinhas, não lhe dera uma cantada? Era só o que me faltava! Um chaverinho daqueles ! Feio que só briga de foice no escuro ! O Getúlio se indignou junto com ela ( meio por ciúme, meio prá encompridar conversa) e pinicou o oratório do colega:

--- Mas menino, num falta mais nada mesmo! Um sapo às avessas daqueles ! Ludmilla, e o pior : eu conheço aquilo desde menino! Ele nasceu lá no Mato Grosso, em Dourados, na minha cidade. O pai é podre de rico, tem fazenda prá tudo quanto é canto. Ele mesmo tem uma BMW lá! Mas aqui o sovina passa por pobrezinho, por miserável. Tem um Gol velho caindo aos pedaços, divide tudo quanto é conta com a gente. Diz que é para não dar na vista, pois tem medo de ser seqüestrado, o salafrário !

Ninguém compreendeu bem o desenrolar dos fatos. Após a descasca de Getúlio, estranhamente, já no outro final de semana, Crizélido e Ludmilla estavam aos beijos e abraços. O namoro pegou fogo e já no final do primeiro ano da Residência, ela apareceu grávida: parece que esqueceu de tomar os comprimidos. Casaram logo depois. Terminaram e voltaram para Dourados onde um Hospital montado pelo pai de Crizélido já os aguardava. Vivem felicíssimos: é “mor” prá cá, “mor” prá lá !

Mais uma vez parece ter se confirmado a máxima rodrigueana: Dinheiro compra tudo, até Amor Verdadeiro ! Quanto a Getúlio, além da Cirurgia, ganhou uma nova profissão: o de Conselheiro às Avessas ! Dizem que foi ele quem deu cordas para Kadaffi não abdicar e, a pedido de Lula, foi ele quem convenceu o Zé Serra que era ele( bonito e simpático) o candidato ideal do PSDB a Presidência da República.

24/11/11

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Lançamento : Livro de Poesias


Autor - Wellington Alves ( Ton-Ton)
Apresentação : J. Flávio Vieira

Performance / Leitura de Poemas :
Luiz Carlos Salatiel


Data - 24 /11/11 ( Quinta-Feira)
Local : Auditório do SESC / Crato

Hora - 19 Horas

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Ficando no prejuízo


Chegou em casa e a mulher estava tiririca. Sabe-se lá como diabos ela descobriu a tramóia ! Devem ter sido as outras, pensou em meio à ressaca fenomenal, a classinha é extremamente solidária, quando são amigas contam tudo que viram ( sempre com algum acréscimo), em nome da dignidade feminina, quando são inimigas o fazem para ver o circo pegar fogo e deliciar-se de longe com as labaredas. Tinha tramado tudo, nos mínimos detalhes, durante uns dois meses. A mulher era uma fera: para cascavel só faltava o guizo. Pediu, com antecedência, para que a Grendene o escalasse naquela horário nobre que vai de uma hora da manhã até às oito horas do dia seguinte. Sapecou uma estória que estava a perigo e necessitava do adicional noturno. Os colegas desconfiaram daquela predileção de tetéu, justamente no mês de julho mas engoliram com alguma careta a justificativa . No finalzinho de junho já avisou à mulher da novidade. A patroa estrebuchou, logo no mês de férias dos meninos, no mês da EXPÔ/Crato, aquela notícia pouco auspiciosa! Mas empresa é assim mesmo mulher, quem quiser que se enquadre, senão a porca torce o rabo ! Guilhermina( assim chamava-se a crotálica esposa) destilou algum veneno, mas terminou por entender ,a contragosto, as razões apresentadas e abrandou o coração ao imaginar as possibilidades comerciais do adicional noturno. A partir daí o fojo estava armado e precisava só um ou outro ajuste, a sintonia fina do piau. Pois bem, chegada a EXPÔ/CRATO , foi uns dois dias com a serpente, digo esposa, e os filhos dar uma olhadinha nos bichos de dois e quatro pés e os meninos rodaram no parque. Tudo com muito comedimento que assalariado não pode se dar ao prazer de beber cerveja de três reais e refrigerante de um e cinqüenta, não ! Estribuchou mas não houve jeito, teve que cair na ratoeira da carestia que lhe disseram foi armada por causa de uma tal de terceirização e que por isso mesmo todos os preços , no Parque, foram multiplicados por três.Fez tudo isto com desvelo , o cuidado e a atenção para com a família fazia parte do plano que projetara. Na segunda de Exposição, chegou com cara amuada em casa , fingindo-se aborrecido e avisou à sua serpenteante mulher que a folga programada para a Sexta-Feira tinha sido cancelada por conta da doença de um colega que entrou com atestado.Ela resmungou, reclamou e ele, estrategicamente, somou suas lamúrias às de Guilhermina. A partir daquele momento puxara o cão para posição de tiro, o projeto encontrava-se na sua fase final de implantação. Na sexta, por fim, saiu de casa por volta das 11 da noite, pronto para o trabalho. Fingiu cansaço e partiu. Dobrada a primeira esquina, escapuliu ladinamente para uma bodega da caixa d´água, onde a turma já o esperava e encheu a cara de cana e não de “loura gelada”, conforme mandava o momento. Dali , enfiou um chapéu de palha grande na cabeça e partiu para o show do RPM. Foi uma noite e tanto. Arranjou uma moreninha torada no grosso, de pernas curtas mais roliças e dois air-bags de segurança e resolveu exercitar a última invenção dos novos tempos, coisa que sua geração jamais experimentara: o “Fica”. Ao amanhecer nem lembrava bem o nome da sua “ficante”, em homenagem ao RPM , lembrou-se dela sob o epíteto significativo de “Stefanie de Mônaco”.

Mal entrou em casa, no entanto, mal disfarçando o fim da embriaguez misturado com o começo da ressaca, aquela surpresa. Nem o FBI, nem o SNI, nem mesmo o MOSSAD conseguiriam tamanha agilidade na espionagem. Guilhermina saltou de lá, com a língua bífida e armou bote. Ele ainda tentou criar algum álibi, alguma estória paralela mas desistiu aí por volta da quinta lapada do cepo de carne no pé do toitiço.Recobrou os sentidos três dias depois na UTI do São Francisco, todo enfaixado: só os olhos de fora. Pensou ainda em dar parte da mulher, mas não existe delegacia especializada para homem agredido por esposa e, além do mais, estaria exposto definitivamente à execração pública. Quando o médico veio para visita perguntou o paciente sobre o atropelamento, imaginou que esta tinha sido a versão apresentada por Guilhermina, quando do internamento e manteve a versão. Disse que tinha sido uma moto que ziguezagueva na pista, próximo da sua casa ou uma cobra venenosa que o tinha mordido. O médico informou então que ele sofrera um traumatismo encefálico, mas encoontrava-se bem, estava pensando inclusive em dar alta, mas dependia tudo dele :

---- O senhor ainda deseja Ficar ??

O paciente levou as duas mãos enfaixadas até à cabeça inchada e, com aqueles olhos roxos, de guaxinim, suplicou :

---- Pelo amor de Deus, doutor, nunca mais eu quero Ficar nesta vida, viu ?

J. Flávio Vieira

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Show "Traduções Cariris" abre a XIII Mostra Cariri das Artes


A mais importante semana do ano no Cariri começa hoje !

A festa começa com a apresentação do Tradições Cariris, marcado pela interseção entre as tradicionais batidas dos Zabumbeiros Cariris e a união de músicos emblemáticos da região como Abidoral Jamacaru, Luiz Carlos Salatiel e João do Crato.

O som do grupo conta ainda com os teclados e a sanfona de Ibbertson Nobre, a bateria de Saul Brito e o baixo de João Neto.


Simbora !

Local : Praça Padre Cícero - Juazeiro do Norte

Hora - 20 H

Data - 11/11/11

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Próteses

Cacildo entrou no Bar com aquela cara de “Inhá, comeram meu cuscuz!”. Os amigos perceberam, facilmente, que o homem andava ruim da piraca. Nos últimos tempos, invariavelmente, tinha sido assim: assuntava mais , dava palpite de menos. Os colegas de balcão haviam notado claramente a mudança de humor. No fim do expediente reuniam-se ali no barzinho para remoer as últimas novidades e contar as vantagens que , tirante uma ou outra mentira, saltavam mais do pretérito que do presente. É que a turminha já quebrara a barreira do som dos sessenta e as histórias eram cada vez mais reprises . O diabo é que Cacildo até varara bem as idades de rombo : 40, 50, 60. Aparentemente não tivera crises maiores e sempre pareceu conformado com a ferrugem inexorável do tempo : algumas coisas endurecendo, outras amolecendo e , pior: sem ninguém ter o privilégio de escolher quais deveriam ter uma ou outra consistência.

Que sovela perfurava, então, o juízo de Cacildo ? Como protético sempre levara uma vida tranqüila. Varava os dias em meio a bridges e pererecas : clientes não lhe faltavam. Não enricara, mas aprendera a viver dentro do orçamento, sem maiores atropelos. Não tivera filhos e, assim, não diminuíra os dias tentando domar o indomável. D. Celidônia, a esposa, era um doce de pessoa. Não o atanazava, não colava no pé de Cacildo feito Araldite . Kardecista de carteirinha, aceitava todos os defeitos do marido de bom grado. Na outra encarnação – dizia ela -- havia sido sogra dele e , agora, precisava ,sim, seguir seu karma. Ademais, Celidônia não tinha muito do que se queixar. O marido era o protótipo dos esposos dos Anos Dourados : sistemático, quadrado como um dado, palavra sua talhava no granito. Não tinha vícios maiores, apenas era chegado a um namorico fortuito, à porta de um cabaré : coisa que na sua geração era perfeitamente perdoável. Esposa era para ter menino: fornicar com a mãe dos próprios filhos era coisa de tarado. Os companheiros de tantos anos, assim, não conseguiam encontrar um nexo causal entre o cotidiano e o ensimesmamento repentino do nosso protético.

Passados uns seis meses, os colegas de Bar, que até então tinham agido como se nada acontecesse, começaram a se preocupar. Resolveram, então, fazer o “cerca Lourenço”. Arrodiaram a fera , com cuidado : como quem toma chegada prá matar passarinho. Esperaram o momento certo para o ataque final e, num sábado, após a sexta dose de uísque de Cacildo, finalmente chegaram no corrupio. Arrocharam pouco a pouco a prensa, até que o amigo soltou a frase introdutória do desabafo :

---Esse mundo tá virado de cabeça para baixo ! Tá tudo às avessas ! E eu que pensava que fazia próteses ! Não existe nada mais natural nesse mundão, só prótese prá tudo quanto é lado !

Puxaram dali, esticaram dacolá e depois do mote, finalmente Cacildo soltou a glosa. Há uns dois anos começara um namoro com uma mocinha. Ela fora lá na oficina encomendar uma chapa para a mãe. Tinha uns vinte e poucos anos. Conversa vai, conversa vem, prova daqui, prova dali, terminaram com um romance. O cavalo velho lambuzava-se no capim novo e criara alma nova. A auto-estima subiu como foguete em dia de renovação. Ainda era um garanhão, debaixo daquelas cinzas ainda existiam brasas que se sopradas davam labaredas vultosas -- pensou Cacildo, entre dentes . Passados os dias , Minervina – assim se chamava a menina --- queixou-se das condições em que vivia e insinuou uma ajudazinha. Cacildo prontificou-se a mantê-la. Uma vezinha, só ? Aquilo não custava nadinha. Mas o eventual transforma-se em permanente, com os meses, o subsídio terminou por ficar regularíssimo.

pelo segundo mês de enrabichamento, Minervina lhe sussurrou uma confidência: tinha um namorado já há uns dois anos e o namoro era sério. Cacildo , no início, ficou meio chateado com a novidade. Depois, no entanto, bateu-lhe aquele orgulho besta :

--- Ora bolas, sou eu que estou botando galha nele, né ? Ele que se vire e agüente as pontas !

Pois bem, depois da revelação, uns dois ou três meses passados, Minervina esperou o momento pós-êxtase e lhe soprou na cama redonda do motel: O noivo dela tinha marcado o casamento para a próxima semana. Cacildo ficou meio desapontado. Mas que jeito? Avisou, então, a Minervina que aquele tempo que haviam passado junto tinha sido muito legal, mas agora estava no momento de pôr um ponto final em tudo: casamento é coisa séria, Miné! Ela pareceu também meio perdida, mas terminou por concordar. Era melhor assim ! Cacildo passou os dias seguintes com aquele sentimento dúbio : meio-alívio-meio-saudade.

Transcorridos uns quinze dias da data marcada para o enlace, Cacildo estava fechando a oficina, no fim do dia, quando chegou um rapazinho e disse que precisava falar com ele. O protético imaginou fosse alguma encomenda de última hora. Reabriu a porta, já parcialmente fechada, e sentaram-se . Logo no início da conversa, Cacildo empalideceu. Pelo andar do lero-lero, compreendeu : Era o marido de Minervina ! Concluiu que tivesse descoberto a antiga sociedade e vindo para o ajuste de contas. O rapaz, no entanto, calmo explicitou um outro e inimaginável problema:

--- Meu nome é Renildo . O senhor namorava com minha atual esposa, não era? Eu sabia de tudo e até curtia! O bom é que o senhor ajudava com uma graninha. Todo final de semana , a gente podia sair e curtir: um forrózinho, uma lapadas . Depois do casamento , o senhor acabou tudo e agora, seu Cacildo, tá uma barra! Eu queria ver se o senhor volta, acaba com essa besteira e continua tudo do jeito que tava !

Passada a surpresa, o protético recobrou o fôlego e o sangue na cara e concordou. Mantiveram o ménage a trois por uns três anos. Um belo dia, final de expediente, entrou uma mulher estranha na loja. Ombros largos de nadadora, andar de lutador de MMC, boné na cabeça. Com voz de barítono foi direto ao assunto. Minervina havia se separado do marido e agora estava vivendo com ela. Estava indo ali para dizer que ficasse na dele, não precisa mais de ajuda, Minervina agora estava sob nova administração e ameaçou:

--- Se se meter com ela, venho aqui e quebro seus dentes, entendeu ?Ou não me chamo Irismar ! Você é que vai precisar de chapa, seu merda...

Cacildo , passado o susto, respirou fundo . Que jeito? É dançar conforme a dança! --- pensou ele com suas pontes ! Passaram-se uns dois anos sem que tivesse surgido notícias do novo casal. Semana passada, encontrou com Minervina na rua. Estava mais velha e mais bofona .Disse, com voz grave, que a vida estava um inferno, que tinha acabado o casamento com Irismar, por conta de ciúmes e pediu, em lágrimas, uma ajuda do ex-amante. Estava tentando refazer a vida, mas a coisa estava difícil. Acredite:

-- Estou inclinada a voltar para o Renildo, está novamente rolando um clima. A questão, Cacildo , é que ele só me aceita com uma condição : seu eu fizer a cirurgia para mudança de sexo. O senhor me ajuda a pagar? Por minha felicidade? Pelos velhos tempos?

O protético, sem entender o rumo da conversa, interroga:

--- Mudança de sexo ? Mas você é mulher, Minervina! Teve uns lances aí com aquela sapatão, mas é mulher !

Minervina, então, esclareceu tudo, trazendo Cacildo para os novos e confusos tempos -- mais próteses, menos de realidade:

--- Sou, Cacildo, mas aí é que tá o problema! Renildo agora é gay ! Assumiu !


10/11/10