sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Hannibal em Matozinho


Assilon Cananéia tremeu do topete ao dedão do pé. De repente, ante as invectivas de D. Soledade, percebeu : tinha sido pego com as cilhas da cangalha frouxas. Ficou de um lado para outro, como galinha procurando canto para pôr o ovo. Parecia que ensaiava os passos cadenciados do Raggae, feito papagaio em areia quente. E agora? Soledade tinha sido categórica, firme, definitiva: amanhã você tem que se confessar, Si-Si, senão não vai poder comungar no casamento de Zuleika! Naquele exatíssimo momento se tinha interposto a última bola que lhe formatara a sinuca de bico. Ainda tentou contra-argumentar com a mulher. Já tinha tanta gente para a fila da hóstia, carecia lá mais um pecador no pé do padre? Soledade enfureceu, fez cara de cachorro pé-duro quando sente cheiro de onça maracajá. Aquilo seria uma desfeita sem tamanho! Onde já se viu? A filha no pé do altar e o pai esborrotando de pecado, se recusando a ajustar as contas com o Salvador? Pois bem, ameaçou a esposa: Zuleika já disse, seu miserável, se o pai não se confessar, ela se recusa a entrar na igreja, prefere viver junta com Senevaldo. Filha de pecador, tem que seguir os rastros do pai. A arapuca estava armada.

Assilon saiu meio capiongo para o trabalho. Cobrador de ônibus por longos anos, atualmente esquentava o banco no escritório da “Viação Rola Cachecha”. Não lembrava a data da última confissão. Ficou pensando na ruma de pecado que ia ter que fazer desfilar nos pés do padre. Alguns cabeludos como jumento novo. Cidade pequena, todo mundo conhecia todo mundo, ficou pensando no constrangimento que iria passar. Primeiro relacionado com o tempo da entrevista que já assustaria todos da fila da confissão e depois com o tamanho da penitência que o rigoroso Padre Arcelino lhe sapecaria. Preocupava-se, sobremaneira, com um namorico escondidíssimo que entabulara com uma beata da igreja, D. Zulena, que, por uma coincidência terrível, era sobrinha logo de quem ? Do vigário da cidade: o brabíssimo Arcelino. Convenhamos que Si-Si estava carregado de muitas razões para entrar no trabalho daquele jeito: mais prá baixo que diferencial de cururu. Os colegas perceberam o carrego , mas ignoraram, não tinham intimidade suficiente para escarafunchar aquele maribondo de chapéu. Havia, no entanto, um amigo mais chegado . Pois bem, Deusamém , montado numa confidencialidade de muitos e muitos anos, cutucou o vespeiro, sem medo das ferroadas. Si-Si , então, com os problemas já vazando pelo ladrão, contou tudo. Estava preocupado com a tarefa inadiável do dia seguinte e temendo a repercussão. Deusamém, macaco velho, saltou de lá com uma idéia brilhante. Lembrou que estava na cidade, visitando o pároco, um Padre alemão, recém chegado ao Brasil. Ainda não falava direito o português, mas teimava em confessar os fiéis. Deusamém acreditava que o Padre Nossinger Radikoff seria uma ótima saída, pois se não falava bem o português, imaginem o Matozinês, um dialeto dos mais intrincados e difíceis do mundo ! Assilon respirou aliviado e voltou para casa mais tranqüilo. Deusamém arranjara uma saída genial. Primeiro a demora seria facilmente compreendida pelo choque lingüístico entre confessor e confessado, depois havia a possibilidade de absolvição plena , sem demais protocolos e burocracias.

No dia seguinte, um contrito Assilon tomou piedosamente lugar na fila da confissão. Quando chegou sua vez, ajoelhou-se candidamente e esperou o palavrório de Nossinger que não demorou a ser escarrado da goela, com aquele sotaque forte de quem se entalou com farinha seca:

--- Meurr Filhorrr , digarr seusrr pecadorrrss!

--- Seu padre eu botei um “gato” na água lá de casa e no trabalho como cobrador, carrego um monte de “cabrito”no ônibus!

--- Meurr filhorrr, deixe de marvadezarrr com os bichinhosrrr de Deusrrr. Não derrr banhorr em gatorr não, viuuu? Agora carregarrr cabritooorr, meu filhoorrr, não serrr pecado não! Querr mais ?

--- Seu padre, quando eu vou para a roça, vez por outra eu como uma cabrinha que eu crio por lá.

--- Meurr filhorrr, isso não serrr pecadorrrrr, carne de vacarr, de boderrr, de porcorrr só serrr pecado na Semanarr Santarrr... Querr mais, meurrr filhorrr?

--- Quando não é a cabra seu padre, gosto de pelar uma sabiazinha...

--- Marvadezarrrr com os bichinhorrr de Deus, seu Assilonrrrr, de novorrr? Querr mais ?

--- Seu padre, eu tô comendo uma beata, é pecado?

--- o quêrrr ? Vocêrrr é caniballll, hein?

--- Não seu padre, eu tô fazendo um calamengau com ela toda noite!

--- Com elarrr quem ???

--- O calamengau é com Zulena !

--- Mingaurrr de Maizenarrr não é pecadorrr não seu Assilonrrr !

--- Mas seu padre, eu tenho feito com ela é por trás...

---- Porrr trássss? Arrrrr seurrr Assilonrrr ! Pois o senhorrr é um sujeitorrr traiçoeiroorrrr, não errrr ?...

No dia seguinte, devidamente purificado,ante os olhares de gratidão de D. Soeldade, o ex-traiçoeiro, ex-canibal, ex-judiador de gatos e sabiás , o ainda traiçoeiro Assilon lá estava pronto para papar a hóstia sagrada no casamento de Zuleika e Sonevaldo .

23/09/11

P.S. – De uma idéia original de Armando Rafael, este texto é dedicado ao Capitão Ariovaldo Carvalho, Cidadão Matozense.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Boff(e)


Quinca de Liliosa é um jornalista nato sem nunca ter esquentado nenhum banco de escola. Como bom profissional, corre atrás da notícia e tem uma sincronia enorme com os fatos que narra. Invariavelmente – sabe-se lá como --- esteve presente nos acontecimentos de que faz as reportagens, talvez para que isso dê uma confiabilidade maior às matérias. Não foi coisa de ouvir dizer, vi com esses olhos que a catarata ainda há de cegar ! Por mais de uma vez foi pego no contrapé, constatando-se o incrível dom da onipresença: estava em dois lugares diferentes , no mesmo instante, em que teriam havido dois acontecidos diversos. Claro que, como bom jornalista, Quinca punha tempero na reportagem : aumentava um pouco dali, esticava um tanto dacolá, acrescentava tramas paralelas, sabia perfeitamente que sem um pouco de ficção o jornalismo não é possível.

Semana passada , na praça Siqueira Campos – a difusora de Liliosa – ele me chegou com os olhos brilhando. Trazia uma notícia quentíssima. Controlou um pouco a ansiedade, enquanto esperava que a platéia se formasse ao derredor. Depois, quando já havia córum regulamentar, iniciou a narração. Primeiro, como sempre, fez ar de mistério: “ Sei não ! A coisa é séria, amigos, acho que é melhor não contar! Isso pode trazer problemas para mim!” Acostumados com o prefixo de Liliosa, os circunstantes nem tremeram, sabiam do que era preciso e aí começaram a insistir um pouco. Finalmente o nosso jornalista acedeu, não antes que todos jurassem, de pés juntos, que aquela história não ia sair dali: era segredo de estado. Preenchido o contrato que tinha muitas cláusulas leoninas, Quinca respirou fundo e, após um estudado silêncio perfeitamente teatral, desfiou o segredo, guardado a sete chaves como os dos meninos de Lurdes.

--- O Hospital Regional do Juazeiro está abarrotado de acidentados !

A platéia , imediatamente, armou um ar de incredulidade! Já? E o hospital foi feito num foi prá bater retrato, não? Eles atendem gente , lá? É? Pensei que fosse só um estúdio fotográfico! -- Saltou, ironicamente, o velho Zé Idéia de lá do seu canto!

--- Está cheinho, minha gente, foi um acidente terrível. Pernas quebradas, braços retorcidos, cílios arrancados, silicones pelo chão, perucas prá tudo quanto é lado! Só de plumas, paetês e purpurinas retiraram da porta do Regional mais de três caminhões.Sem falar em 2855 plataformas que os carroceiros carregaram. E os gritos de dor são de dar pena. É ver umas dez ambulâncias com os alarmes ligados! UEMMMMMMMMM!

O que teria acontecido? Perguntaram-se todos. Desfile de carnaval não existe nessa época. Alguma confusão em baile de gala? Mas baile durante o dia, com todas aquelas roupas de noite e logo onde? No Juazeiro? Liliosa mantinha o segredo estrategicamente. De onde teriam saído tantas senhoras prontas, em pleno dia e como fora possível um acidente daquele porte, com tanta gente fina e importante junta no mesmo momento? Aos poucos, Quinca foi revelando o resto da história, como se se tratasse de um strip-tease.

Não, não se tratavam de senhoras em stricto sensum. O acidente, na verdade, acometera um incontável número de rapazes alegres. A platéia, imediatamente, associou à Parada Gay do Juazeiro que iria acontecer naqueles dias. Caíra um carro alegórico? A estátua de São Sebastião despencara de um dos carros no meio das moças donzelas? Teria sido mais um ataque da desprezível homofobia ainda tão presente na nossa sociedade? Liliosa, no entanto, mais uma vez, desfez a interpretação rápida da platéia.

--- A Parada Gay de Juazeiro, amigos, só vai se realizar amanhã, fiquem tranqüilos que todos vocês não perderam , não! Ainda vai ser possível desfilar, viu?

O que teria, então, ocorrido? Como teria sido possível tamanho acidente, nas vésperas do evento? As bichinhas aos berros, chorosas, lacrimosas, cheias de escoriações e hematomas? As roupas de gala aos farrapos? Foi no aeroporto que ocorreu o pavoroso desastre! ---esclareceu nosso jornalista. Um acidente aéreo com os GLTS que vinham para a Parada, imaginaram todos.

Quinca, após um breve silêncio, mais uma vez dissuadiu-os. Não, não tinha sido isso! Depois de um silêncio cientificamente programado, Liliosa, por fim esclareceu a causa da calamidade. Estava mais de um milhão de rapazes alegres no aeroporto regional do Cariri esperando os companheiros que chegariam para a Parada Gay do dia seguinte. Todos foram a rigor e se espremiam , num calor infernal, só aplacado pelos incontáveis leques que ritmicamente flanavam. Junto, havia um pequeno grupo de professores que aguardava a chegada do grande Leonardo Boff que vinha, naquele dia, proferir uma memorável e concorridíssima palestra no Ginásio Poliesportivo. Arapuca estava armada, amigos. Sem ter conhecimento da vinda do teólogo, no mesmo vôo, de repente deu-se o estouro da boiada. As bichinhas saíram em desabalada carreira em busca da sala de embarque e foi um pisoteado só: cílios pelo chão, penas de pavão, silicones, perucas, plumas e paetês. É que , inadvertidamente, uma professora ao avistar o Leonardo que já havia desembarcado e se dirigia à sala de embarque, caiu na besteira de gritar:

--- Vejam, o Boff já vem ali, meu povo ! Ele é lindo !

15/09/11

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O Mono Liso


O sorriso enigmático do velho Monolo Toledo destoava, totalmente, da atmosfera ritualística que o envolvia naquele momento tão solene e compenetrado. Um risinho a meio pau que lhe imprimia uma cara meio de sarcasmo, meio de menino pego em traquinagem. Extraíssemos o ambiente pesado, a moldura tenebrosa que amparava a cena, mal saberíamos se o rosto era de satisfação por ter preparado alguma pegadinha a um amigo, se bebera um remédio amargo a contragosto ou se fora flagrado na cama com uma beata. Acentuava o enigma o cenário carregado e o figurino de Monolo. O paletó que detestava, meio amarrotado, meio pegando marreca; as flores ao derredor; o caixão de terceira; o rosto grave dos circunstantes ; o choro de cebola cortada dos dois filhos; o murmurejar mecânico das preces pelos irmãos de culto. Como uma jabuticaba em nuvem de clara de ovo, saltava aquele risinho enigmático de Mono( assim era carinhosamente conhecido entre os amigos), confrontando a austeridade monástica do velório.

Toledo , colocada a vida numa planilha do Excel, teria, certamente um saldo imensamente positivo no que tange à pauta de virtudes. Funcionário graduado do INAMPS, levara a carreira sem máculas. Aposentara-se há uns vinte anos, ainda cinqüentão, sem faltas ao trabalho, sem afastamentos por doenças e sem benefícios. Casara-se ainda no início da profissão com D. Gilbertina e, também nesse quesito, nada havia que o desabonasse. Marido exemplar, nunca se soube de qualquer gambiarra nas instalações familiares do nosso barnabé. Os filhos que vieram foram criados pelo casal com um desvelo invejável. Amparados por tanto cuidado, os meninos seguiram o bom caminho e terminaram formados em advocacia e, bem colocados, cuidaram rapidamente de dar curso às suas vidas , já sem a necessária âncora dos pais. Depois da aposentadoria , Monolo aproximou-se ainda mais de Tina , como familiarmente a chamava: eram duas almas num canudo. Evangélicos de longo curso, tocavam os dias entre cultos, orações e músicas gospels. Com vida tão regrada e filhos independentes, o casal juntara um pé-de-meia razoável , só sangrado , mensalmente, pela obrigatoriedade do dízimo: ofertado alegre e pontualmente a cada dia cinco. A existência de Mono e Gilbertina , de tão exemplar, não mereceria esse relato, não fosse pelo pequeno intervalo de uns três meses que separaram um Toledo perfeito, virtuoso, daquele sorriso enigmático, a meio caminho entre a gozação e a safadeza.

Há exatos três meses, um tufão como que revolveu a vida pacata de Mono e Tina. Os dois já varavam a sétima década, quando, subitamente, uma dor de cabeça atroz acometeu a esposa do nosso barnabé. De início o que parecia uma enxaqueca se foi agravando e em dois dias a levou à cova. O médico, ao dar-lhe a terrível notícia, levou-lhe, também o diagnóstico tardio : “Foi um aneurisma, seu Cassiano !” Seria impossível medir a dor do marido que não perdia apenas uma companheira fiel e amiga, mas de supetão arrastava de roldão a única testemunha ocular da vida de Toledo. Os filhos e os amigos tiveram a absoluta certeza de que o velho não suportaria a perda, cairia em depressão e, em pouco tempo, compraria o ingresso para o mesmo destino da mulher. Temos que admitir que as profecias não estavam de todo erradas.

No primeiro mês , manteve-se Mono praticamente recluso, recusava-se a comer, não dormia mesmo com os efeitos dos sedativos. Os filhos, morando na capital, tiveram que voltar para tocar os rumos da existência. Mono ficou morando na casa enorme que rapidamente se transformou numa imensa e intransponível montanha chamada de solidão. As previsões de todos pareciam estar prestes a se confirmar.

Ao entrar o segundo mês da perda, no entanto, Toledo virou de ponta cabeça. Começou a freqüentar bares, a beber diariamente, a enfurnar-se nos cabarés por semanas. Andava a cada dia com uma garota diferente, geralmente nova e preferencialmente de má reputação. Foi aos poucos dilapidando a poupança ajuntada por tantos e tantos anos: com Viagra, cachaça , farras e mulheres a quem tratava como princesas. Os amigos ficaram escandalizados com a mudança abrupta e a língua do Zé Povinho pinicou rapidamente o oratório de Toledo : imaculado por tantos e tantos anos.

Ontem, em plena atividade libidinosa, Mono foi acometido de um enfarte súbito e, como bom soldado, foi abatido em combate ainda com a espada em riste. E ali estava o sorriso enigmático confrontando a todos: a hipocrisia deslavada dos amigos, a santidade falsa dos irmãos, a revolta econômica dos familiares. Como se perguntasse: E agora reverenciam o longo reinado do virtuoso Toledo ou o curtíssimo e feliz governo do esculhambado Mono ?

A última namorada de Toledo aproximou-se do caixão e, ainda chorosa, cortou radicalmente as críticas veladas dos circunstantes com o único elogio póstumo:

--- Esse Mono, meu povo, era muito era Liso !


08/09/11