quinta-feira, 30 de junho de 2011

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Adivinha


Hortelina já havia disparado todos os tiros da macaca, já não mais havia projéteis na cartucheira. Só projetos. Mesmo assim, solteirona de longo curso, via seu sonho de casamento de vela na mão , na UTI. Até que lhe foram aparecendo pretendentes enquanto o fulgor da juventude ainda rescendia seu perfume de jasmim. Sistemática, Hortelina escolheu demais. Queria um par perfeito, um homem desses que não existem nem nos livros de ficção: bonito, rico, fiel, eterno, inteligente, elegante, educado. As amigas já lhe vinham alertando que ela precisava fazer um upgrade na folha de exigências: hoje até Homem mesmo, sem nenhum outro atributo, estava difícil de achar. Hortelina, no entanto, insistiu nos critérios rigorosos e ali estava varando a quarta década, sem a menor expectativa de ter seu sonho realizado. Mantinha, na capa, um certo ar de dignidade e placidez, uma tentativa inalcançável de mimetizar o desespero que lhe roia a alma.

Talvez tenha sido por isso mesmo que na última noite de São João caprichou no figurino. Caracterizada para a festa, desdobrou-se nas adivinhas. Tomou umas cinco colegas mais distantes, com quem se indispusera anteriormente, como comadres de fogueira. Enquanto os balões corriam pelos céus, sob o ribombar das bombas e dos rojões, enfiou uma faca virgem na bananeira do quintal. Colocou o nome de vários possíveis e desejados pretendentes em pedacinhos de papel, os enrolou e mergulhou numa vasilha com água, próximo à fogueira, voltou após a meia noite. Esperava que um dos papelitos desenrolasse o que indicaria o nome do futuro consorte. Para sua surpresa , na volta, todos estavam intactos e fechados. O desapontamento inicial, no entanto, foi minorado logo depois. Hortelina atou um anel a um fio de cabelo e equilibrou-o dentro de um copo meio d´água. O anel bateu apenas uma vez na superfície do copo, indicando casamento próximo: em um ano. À tardinha já tinha colocado uma clara de ovo em um outro copo d´água , coberto cuidadosamente com um lenço branco e uma tesoura aberta em forma de cruz. Observou o copo ao varar a meia noite: no fundo formara-se a imagem indiscutível de um navio. As amigas sorriram e confirmaram : viagem próxima. Quem sabe de luz de mel?

Hortelina dançou a quadrilha com um sorriso indisfarçável no rosto.À beira da fogueira ainda tentou ver o rosto refletido na bacia, mas não deu nenhuma importância ao fato de não ter conseguido. As outras profecias mais favoráveis já lhe bastavam. Até se arriscou um pouco mais na batidinha e ficou loquaz, como macananã em roça de milho verde. Pela manhã, arrancou com cuidado a faca da bananeira e lá estava a letra do nome do futuro noivo estampada pelos poderes de São João : “W”. Pensou, pensou, mas não lembrou de nenhum paquera conhecido que se chamasse Washington, Wanderley, Wellington. Deve ser algum arrivista, algum representante comercial que chegará pela cidade nos próximos dias, pensou Hortelina com seu califón.

Os meses se passaram e nada de se concretizarem as profecias. Um belo dia Hortelina , sem mais nem menos, apareceu com uma dor de cabeça súbita e que piorou em poucas horas. No velório disseram ter sido um tal de aneurisma cerebral. As amigas inconsoláveis não entendiam as falhas proféticas de São João: teria comemorado demais no próprio aniversário? Depois começaram a fechar o firo. Hortelina não vira a imagem refletida no espelho: sinal de que aquele era o última festa junina. A clara do ovo mostrara um navio, indicando viagem e nossa solteirona acabara de empreender uma gigantesca: com passagem apenas de ida. O anel , no entanto ,indicara casamento em um ano e a bananeira até apontara que o noivo teria o nome começado por “W” . Onde estava o furo profético? Uma comadre de fogueira foi quem desvendou o enigma. Hortelina tinha olhado a faca ao contrário e virá “W” ao invés de “M”. Seu noivo chegara a tempo e se chamava Morte: bonito, elegante,fiel e principalmente eterno. O noivo que Hortelina sonhara durante toda a vida chegara súbito e apaixonado montado no seu cavalo selvagem.

24/06/11

sexta-feira, 17 de junho de 2011

As mudanças de Generéia


As transformações apareceram de forma insidiosa, assim como o cupim destroçando pouco a pouco uma biblioteca. Quando Matozinho, muitos anos depois, olhou para trás é que percebeu a inexorável ação do tempo. Não só a vila havia pouco a pouco mudado seu leiaute – bastava ver as antigas fotos do lambe-lambe Zèzinho do Papouco – os costumes tinham ido junto. Certamente a chegada da televisão foi um dos propulsores daquela reviravolta. Depois da TV , Matozinho nunca mais foi a mesma. Travestiu-se de ares modernosos embora, no fundo, ainda permanecesse profundamente provinciana. As mocinhas já não mais aceitavam roupas de costureira, queriam as pré-fabricadas com os últimos modelitos das novelas. E os adereços seguiram a mesma tendência: nada mais de gigoletti, de travessa no cabelo e de cara sem maquiagem. Até as velhas já ousavam abandonar os véus, os califons, as combinações e as anáguas. Os rapazes já se espelhavam nas bandas de rock e comentava-se que até mesmo alguns baseados já muitos tinham experimentado. E de nada adiantava o sermão do padre, o esporro dos mais experientes: o mundo velho estava perdido no mato e sem cachorro. Os matozenses recobriram-se de um ar de fidalguia, como se a vida de todos houvesse saltado de uma novela: cada um passou a se achar mais importante que o outro e estabeleceu-se uma epidemia de pabulagem desenfreada.

E foi exatamente nesta época que D. Generéia , que morava no centro, resolveu mudar-se para uma outra casa, numa rua mais afastada. O marido havia perdido uma sinecurazinha que mantinha na prefeitura e a coisa apertara. Viu-se Generéia numa sinuca de bico. Primeiro não podia passar por baixo ( e isso lá era papel de atriz de novela!) e aceder que saía por pura liseira e , mais, que estava se mudando para uma casa mais pobre sita num cuvioco , próxima à famigerada Rua do Caneco Amassado. Uma notícia dessas não carregava nenhum glamour, nem era digna de um script de mini-série. Espalhou, de peito aberto, que havia sido recomendação de Janjão da Botica, uma tentativa, de mudando de clima, melhorar a asma feroz e o chiado de peito de que Generéia assumiu ser acometida. “É uma questão de tempo, vou mais prá veranear e quando voltar não venho morar perto dessa rafaméia aqui, não, já estamos pensando em fazer um palacete na nossa chácara no pé da serra da Jurumenha” , disse uma Generéia orgulhosa e cheia de si , com cara de Odete Roitman.

Após a enfática declaração de Generéia, pulou no meio do terreiro um outro problema: a mudança. É que não existe neste mundo de meu Deus uma coisa mais desmantelada que mudança de pobre. Imaginem uma carroça repleta de cacarecos velhos, soltando , como uma medusa, perna prá tudo quanto é lado. E mais: tendo que ser providenciada em várias viagens, durante o dia, já que no escuro não há nenhuma condição de se fazer o translado. É como se , de repente, a família expusesse suas entranhas à execração pública. A necessidade de uma mudança com essas características, certamente contradizia os atuais padrões globais da cidade de Matozinho. Se ao menos houvesse um caminhão baú, levando os teréns tudo entocado no breu da madrugada! Mas carroça!

Manhãzinha chega o carroceiro “Paçoca” com sua carrocinha, acompanhado de uns três moleques para assessorar no penoso mister. Os vizinhos observavam de longe, mantendo distância regulamentar, esperando de dentes e língua afiados, o momento de pinicar o oratório da pábula companheira de rua. Generéia postou-se na janela e começou a irradiar a mudança, em voz alta. Era uma desesperada tentativa de minorar um pouco a caótica visão dos cacarecos dependurados, utilizando alguns recursos da publicidade. Quando “Paçoca” pegou a Tevezinha preto-e-branco de umas quatorze polegadas, Generéia gritou para que todos ouvissem:

--- Meu povo ! Cuidado com a TV de Plasma !

Logo depois, os assessores recolheram os brinquedos dos filhos e colocaram numa caixa de sapato : uma peteca, duas bolas de gude, um triângulo, uma carrapeta e um pião. Quando traziam para a carroça, Generéia alarmou:

--- Epa ! Cuidado prá não quebrar o Videogame dos meninos, viu?

Quando “Paçoca” pegou a chaminé do fogão de lenha, repleta de pucumã e arrumou aquele cone preto retinto no meio da carga, Generéia saltou de lá e alarmou:

--- Preste atenção, seu Paçoca ! Vê se não arrebenta minha coifa, joviu?

Logo depois, os três moleques, com uma dificuldade imensa, pegaram a jarra de barro cheinha de água e, cambaleando pelo peso, começaram a levar até à carroça para colocar em cima da cantareira que lá já estava acomodada, com uns quatro canecos pendendo pelas beiras. De repente, o pote liso escorregou e lascou-se no chão. Foi água para tudo quanto é lado. Do outro lado da rua, Zé Fubuia que observava tudo: o fato e a versão bradou a todos pulmões:

--- Acode minha gente ! O Gelágua de Generéia partiu-se no meio !

17/06/11

quarta-feira, 15 de junho de 2011

´É HOJE ! "O CINEMATÓGRAFO HEREJE" - REAPRESENTAÇÃO


I MOSTRA DE CINEMA E VIDEO DE CRATO

REAPRESENTAÇÃO :

DIA - SEXTA - FEIRA ( 17 DE JUNHO)

HORA- 19:00

LOCAL - CINE TEATRO MODERNO

IMPERDÍVEL !

quinta-feira, 2 de junho de 2011

O Paraíso de Vittorio Di Maio


"O cinema é o modo mais direto de entrar em competição com Deus."

(Federico Fellini)



Idos de 1926, Fortaleza. Praça do Ferreira, o coração da capital cearense. À tarde um velhinho , carregando tropegamente o peso dos seus setenta e quatro verões, pobremente vestido, tentava evitar a queda que se prenunciava a cada passo dado, arrimando-se numa tosca bengala. De repente, a gravidade, por fim, fez valer a sua força e o ancião tomba na calçada do antigo “Art Noveau”. Os transeuntes demoraram a perceber que não se tratava de um tombo qualquer, aos poucos , desinteressadamente, notaram: o velhinho não mais fazia parte do mundo dos vivos, fora fulminado por um ataque cardíaco. Ali permaneceu, exposto à curiosidade pública, totalmente anônimo e desprovido de recursos, uma das mais históricas figuras da cultura brasileira. Por ironia do destino,pobre, findava seus dias na mesma calçada em que deu à luz à sétima arte em terras de Alencar.

Chamava-se Vittório di Maio. Nascera em Nápoles na Itália em 1852. Sabe-se lá porque aportou no Brasil, o certo é que por aqui chegou em fins do Século XIX. Os primórdios do Cinema tinham acontecido em Paris em 1895, com os Irmãos Lumière e no ano seguinte já se tinha repetido a experiência inovadora no Rio de Janeiro. O Cinema nacional, no entanto, começaria com aquele napolitano magricela. Em 1º. De Maio de 1897, na Cidade de Petrópolis, no Teatro Cassino-Fluminense, Vittorio di Maio, exibiu, no seu “Cinematógrafo”, os primeiros filmes feitos em terras tupiniquins. Quatro Curtas-Metragens, neles apareciam: uma artista circence, uma apresentação infantil de um colégio do Andaraí, o terminal de bondes de Botafogo e a chegada de um trem na estação de Petrópolis. Di Maio fez-se expositor ambulante, mas fundou Cinemas em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul , na Bahia e os vento do destino terminaram por ligá-lo definitivamente ao Ceará. Vittorio talvez tenha sido levado a interiorizar a sétima arte por conta da forte concorrência que terminou surgindo no Sul e Sudeste, só na década seguinte à apresentação pioneira e histórica de Petrópolis surgiram mais de 20 salas de espetáculos no Rio e outras tantas em Sâo Paulo.

O certo é que Di Maio chegou em terras cearenses em 1907. Por aqui já se ensaiavam, na capital, os primeiros rudimentos de Cinema : o Bioscópio que foi introduzido em Fortaleza por um outro italiano : chamado Paschoal. Ele exibia pequenos rudimentos cinematográficos como : “Jubileu da Rainha Vitória” e “Os Pombos de São Marcos”. Outros Bioscópios se seguiram : um trazido por Arlindo Costa, colocado num paredão existente na Rua Major Facundo; um outro na Praça do Ferreira e outro num prédio onde depois funcionou a Faculdade de Farmácia do Ceará. No Crato, no mesmo período, aqui já chegou a novidade, trazida por Luiz Gonzaga – o Gozaguinha que foi o nosso primeiro fotógrafo . Gonzaguinha fora a Fortaleza comprar material fotográfico e trouxe a novidade para o Crato. Instalou a “Lanterna Mágica” na primeira sede do Grupo Teatral “Os Romeiros do Porvir” que fora fundado por Soriano de Albuquerque em 1902 e de que Gonzaguinha fazia parte. A sede existia num casarão da Rua Miguel Limaverde e causou frisson na cidade, uma vez que a magia tinha que acontecer no escuro e facilitava os namoros, as apalpadelas, numa vila ainda profundamente provinciana.

Pois no mesmo 1907, Di Maio, trazia consigo uma verdadeira evolução da sétima arte : “O Animatógrafo” e fundou, em Fortaleza, o nosso primeiro Cinema ,nos fundos da Maison Art Nouveau, no mesmo local onde, vinte anos depois , cairia fulminado pelo enfarte. Em 1909 duas outras salas foram erguidas em Fortaleza : o Cine Rio Branco, por Henrique Mesiano e o Cassino Cearense por Júlio Pinto.

Há exatos cem anos, em 03 de junho de 1911, Di Maio ligou definitivamente seu nome à história do Cariri, inaugurando em Crato o “Cinema Paraíso”, o primeiro de todo interior do Ceará. Apenas dezesseis anos após a primeira exibição mundial de um filme, o Crato já possuia um cinema. A sala situava-se na Praça da Sé, defronte ao prédio do Museu, onde antigamente funcionou a Biblioteca Municipal e, ultimamente, uma botique e os bares “Guardinha” e “João Penca”. A tela ficava do lado oposto ao do Museu e a sala de projeção num sobrado pequenino que olha para a Fundação J. De Figueiredo Filho. Segundo Florisval Mattos : “inaugurou o cinema Paraíso o filme Borboletas Douradas. Um dos assistentes contou-me que as borboletas apareciam voando, e, quando pousavam, invés de borboletas eram mulheres…”.

O Cinema marcou definitivamente a vida da nossa cidade. Foi o primeiro veículo de mídia visual que tivemos. Sucederam-se outras salas de espetáculos: O Cassino Sul Americano em 1918, O Cine Moderno em 1934 , o Cine Araripe nos Anos 50 e o Cine Educadora já nos anos 60. Di Maio nem percebeu, em vida, a revolução que trouxe para as terras de Frei Carlos. De repente a magia começou a nos despertar para o mundo com suas possibilidades e complexidades. Mudaram os costumes, o escurinho propiciou todo um clima para os namoricos dos nossos avós. Muitas gerações terminaram profundamente marcadas pelo encanto da telona, basta ver a invejável quantidade de cineastras que saíram das terras de Frei Carlos : Hélder Martins, Ronaldo Correia de Brito, Jéfferson Albuquerque,Francisco Assis, Hermano Penna, Rosemberg Cariri, Luiz Carlos Salatiel, Bola Bantim, Pedro Ernesto Osterne, Petrus Cariri, José Roberto França,Glauco Lobo, Virgínia, Fernando Garcia, Francioli Luciano, Wanderley Vancillus,Franklin Lacerda, Alexandre Lucas, Émerson Monteiro, Luiz José e tantos, tantos outros.

Hoje a cidade que foi o berço do cinema em todo interior do estado, não possui mais uma sala de espetáculo sequer. O cinema hoje é para ser apreciado por uma elite nas fechadas salas de shopping ou sob a redução impensável do DVD e do Blue-Ray.Di Maio foi totalmente esquecido por uma região que tem uma amnésia toda preferencial por nossos vultos realmente importantes. A maior homenagem que podemos prestar a Di Maio neste centenário do cinema no Cariri seria reabrir nosso novo Cine Teatro Moderno para exibição de filmes clássicos nacionais e estrangeiros, com porta aberta. Aí, quem sabe assim , o filme da nossa cidade terminasse com um final apoteótico e feliz e o Cinema Paraíso , cem anos depois, nos transformasse numa Cidade Paraíso.

02/06/11