quinta-feira, 31 de março de 2011

A calçada dos Piancós


--- De que adianta ainda continuar vivendo, meus filhos? Nem mais no Crato, eu moro !

Quando o velho Felinto pronunciou aquela frase, os filhos quase que piraram. Já vinham percebendo que, depois dos oitenta, o pai decaíra, andava mais capiongo e ensimesmado. Logo ele que sempre se mostrara tão expansivo e, até então, enfrentara os ataques inexoráveis do tempo com galhardia e bom humor! Acreditaram que devia se tratar de alguma depressão – um dos demônios da velhice – já que, recentemente, Felinto havia perdido a esposa e um dos seus amigos mais diletos: Sampson. Ficara como um Mateu sem Catirina , sem Mestre e sem Jaraguá. Como encontraria forças para brincar o Reisado da vida? Aquela frase, no entanto, feriu os tímpanos dos familiares : a depressão talvez fosse apenas um dos acompanhantes do séquito terrível da demência. Felinto , desorientado, dava mostras que nem mais percebia que estava na sua cidade querida, companheira dileta de toda uma vida! Com o passar dos dias, no entanto, os filhos se tranqüilizaram um pouco. Embora Felinto permanecesse sorumbático e pensativo, não mais demonstrou sinais de desorientação. Claro que poderia ter se tratado de um curto circuito , um daqueles que frequentemente antecedem a explosão final das turbinas da lucidez. Os filhos, então, se aproximaram mais do velho e insistiram , dia após dia, em testes de memória. O pai foi aprovado em todos com distinção e louvor, como se dizia na juventude dele. Um dia, por fim, conseguiram , com alguma relutância, uma declaração de Felinto que terminou por demonstrá-lo mais vívido e sábio como jamais pensariam. Terá sido, quem sabe, o clima proporcionado por aquela noite de lua cheia, confidente e cúmplice das peripécias do nosso Felinto desde os tempos mais remotos. O certo é que , como no teatro, com iluminação perfeita, nosso candidato a gagá desembuchou seu monólogo. Tivera, até ali, uma vida longa e feliz. Uma pitadinha de sucesso, algumas gotas de fracasso, muitas xícaras de desejos, colheradas de prazeres, copos de dissabores... Mas foi com esses ingredientes que conseguiu montar a palatável receita da sua existência. No outono e inverno dos seus anos, no entanto, começou a perceber que o bolo começara a azedar e, quiabando dia após dia, terminou nos últimos meses a se tornar intragável. Olhando para trás, pelo retrovisor, percebeu claramente que a morte , como um curare nos vai paralisando paulatinamente: o fim instala-se a crédito. E foram muitas e muitas mortes no último quartel : o tesão, a mobilidade, a saúde, a esperança, o vigor físico, a esposa e o amigo de todos os momentos: Sampson. Com a velhice ele se transformara numa coisa obsoleta. Já não falava a língua dos jovens e, pior, os últimos remanescentes do seu idioma haviam todos respondido à chamada inexorável da velha da foiçona. Como uma vitrola imprestável servia apenas à curiosidade pública. Via-se como uma peça de museu, exposta periodicamente à visitação . Tantas mortes seguidas e continuadas o tinham abatido, mas nada fora tão forte como a percepção que tivera há uma semana. Lembrou do Crato da sua juventude, procurou-o vila afora e simplesmente não mais o encontrou. Onde estava encantada a cidade encantada que conhecera algumas décadas atrás? As casas coladinhas uma na outra, aconchegadamente, sem muros, quem imaginaria se transformariam nos presídios de segurança máxima da atualidade? Os vizinhos eram quase que familiares que moravam num outro quarto da casa. Estavam sempre próximos e havia uma contínua troca de pequenos favores de lado a lado. A televisão e o rádio de algum morador mais abastado eram objetos de uso comunitário. Claro que as fofocas pululavam na vilazinha de muro baixo, mas nada se compara à frieza e à indiferença dos dias atuais. As calçadas eram uma extensão da casa, uma espécie de Centro de Convenções da família, ainda não tinham sido açambarcadas pelas ruas, pelos postes, pelas placas de propaganda. As ruas, então muitas ainda sem calçamento, faziam-se o playground das crianças, o parque de diversão da molecada: o palco do pião, da bila, da bandeira, do chicote queimado, do pega, da bola. Não haviam ainda sido invadidas pelo carro e pela moto. Os cinemas , cujo escurinho fora cúmplice de namoricos e apalpadelas, haviam fechado as portas. Os clubes sociais sobreviviam às custas de bandas de forró com sua apologia única e repetitiva à cachaça e à raparigagem. Naquele dia chegara à conclusão aterrorizante e definitiva : já não moro mais no Crato! Suportou até a ação do apagador do tempo sobre sua história, mas pareceu-lhe insuportável quando a isso se associou o extermínio puro e simples da geografia. Tanto que avisou aos filhos: não sei se vale a pena esperar a cobrança da última prestação, estou pensando, seriamente, em me adiantar e saldar antecipadamente a minha dívida para com a morte. Os filhos de Felinto entenderam as razões do pai e decidiram respeitar o curso de colisão que tomara, afinal sempre fora um ótimo e destemido timoneiro. Ontem, no entanto, no jantar, Felinto pareceu, estranhamente, mais alegre e palrador. Disse aos parentes que desistira da derradeira empreitada. Recobrara as forças. Para uma récua de filhos incrédulos ele explicou a súbita guinada que dera no Titanic da sua existência, já indo em direção do iceberg . Passara na Caixa D´água nestes dias e tivera uma visão consoladora. Estava lá , triunfante, a Calçada dos Piancós. Todos sentados, à noite, com suas cadeiras do lado de fora, contando as últimas e mais picantes novidades da cidade, juntos com muitos amigos. De um lado a TV ,ligada à tomada por uma gambiarra, transmitia um fabuloso Fla-Flu, em pleno calçamento. Corria uma cervejinha solta e , a um canto, um dos meninos assava uma carninha numa churrasqueirinha de roda de fusca. Felinto, imediatamente, banhou-se na alegria de outrora.Parecia Noé ao avistar a pomba com o galho de mato no bico. Restava ainda uma esperança. Nem tudo estava perdido.

--É preciso avisar ao IBAMA, ainda existem os últimos exemplares da espécie mais ameaçada de extinção nos dias de hoje: Gente, gente de carne e osso !


J. Flávio Vieira

quinta-feira, 24 de março de 2011

Maria Fumaça


O velhinho entrou no consultório meio desconfiado, meio cabreiro. Como boi no matadouro, esperando o xunxo do magarefe. Dois filhos o puxaram até ali e duas filhas o empurraram. Todos carregamos, no íntimo, a certeza da imortalidade física: o velhinho, sabe-se lá porque, pressentia que sua moléstia não era coisa simples, dessas de se resolver com Capivarol e Extrato Hepático. Sentou-se meio constrangido, mas ,rápido, recobrou o equilíbrio e desatarraxou um vendaval de sintomas. Estava naquela idade em que os inimigos começam a armar o cerco e passam a disparar sem piedade sua metralhadora de achaques, de dores e infortúnios. O médico o examinou com cuidado e teve a certeza de que o velhinho não exagerara na premonição. Algum esmeril feroz carcomia as forças daquele que um dia fora um touro indomável, trabalhador incansável no campo, um artista da enxada e do arado. A madeira de lei dera cupim. O esculápio solicitou alguns exames que confirmassem sua certeza e prescreveu alguma medicação que, certamente, não diminuiria a doença, mas aumentaria a esperança do velhinho. Receita na mão, antes de sair, o paciente fez um pedido inusitado:
--- Doutor, o senhor gosta de escrever , não é ?
O médico , que produzia esporadicamente alguns textos para a imprensa local, confirmou:
--- É , vez por outra eu escrevo umas potocas sim, seu Pedro!
--- Pois é, vou pedir um favor : escreva sobre a Maria Fumaça !
O profissional, polidamente, prometeu fazê-lo, mesmo sabendo que o compromisso fazia-se apenas um ato de educação, uma promessa dessas que os políticos firmam no palanque: afirmam como sem falta e faltam como sem dúvida. O médico seguiu sua via crucis: o atendimento interminável de pacientes, com aquela sensação de quem tentava esgotar um olho d´água. Tardizinha, voltando para casa estafado, lembrou , estranhamente, da reivindicação do ancião e pôs-se a imaginar as razões possíveis e ocultas daquilo que soara quase como o último desejo de um condenado. Por quê a Maria Fumaça ?
O trem terá sido o primeiro transporte de massa de acesso a todas as classes sociais. Como uma serpente enorme varava os sertões, levando na barriga pessoas, sonhos, ilusões. Trazia ainda mantimentos, as notícias , as cartas e as últimas novidades dos mais distantes rincões. Imaginem o encantamento que causava no caboclo que observava seu porte gigantesco e seu “café-com-pão” interminável. E a estridência do apito agudo, nos ermos campos de outrora? A fumaça que esvoaçava da chaminé, como se fora o dragão de São Jorge? E mais: a possibilidade de transportar cada passageiro em busca do sonho mais inalcançável? A Maria Fumaça deu asas ao matuto e tornou viável o destino cosmopolita do cearense. Desde que seu apito ecoou pela primeira vez na pradaria , o caboclo descobriu definitivamente que esse mundão não tem cancela. Há a possibilidade de ser infeliz em muitos lugares diferentes. Se é tão difícil mudar a história da humanidade, o trem nos deu a condição de alterar ao menos a geografia.
Na iminência de empreender uma longa viagem, compreendeu, por fim, o doutor, a visão da Maria Fumaça serpenteando os campos sertanejos trazia consigo um alento, uma tranqüilidade quase que etérea. O trem que partiu, um dia retornará, inevitavelmente, trazendo no seu matulão novas esperanças e bons augúrios. E lépido e fogoso um rapazinho saltará na mesma plataforma em que um dia o velhinho alquebrado embarcou, apenas com passagem de ida, com destino ignorado e sem imaginar que todas as estradas terminam sempre na mesma estação.


24/03/2011

sexta-feira, 18 de março de 2011

Japão


A imagem que saltava da TV parecia familiar. Dir-se-iam vários meninos brincando com seus carrinhos e casinhas na beira da praia e, de repente, uma onda mais forte , engolia todos os brinquedos e os levava maré abaixo. As imagens mostraram-se depois perfeitamente reais, não fossem alguns detalhes: os objetos não se tratavam de miniaturas e , antes de tudo, aquilo não se enquadrava numa simples brincadeira infantil. Retratavam , na verdade, uma tragédia de proporções gigantescas, do outro lado do mundo; dessas que se têm tornado, estranhamente, tão corriqueiras nos últimos tempos. Um terremoto de intensidade recorde no Japão, acompanhado de um tsunami devastador que varreu o norte do país. Prejuízos incalculáveis, reatores nucleares emitindo radiação a céu aberto, mais de cinco mil mortes e milhares de desaparecidos.
Os grandes desastres trazem consigo a possibilidade de refletirmos sobre nossa pequenez diante da imensidão do universo. E as perguntas se sucedem e são inevitáveis. Por que nos últimos anos as grandes hecatombes têm se repetido com tamanha freqüência? Terremoto e tsunami destroçaram a Indonésia; um outro terremoto quase que aniquila o Haiti, depois o Chile e a Itália. Sem falar na tempestade de Nova Orleans , há poucos anos. E as chuvas devastadoras de Pernambuco na ano passado e este ano na região serrana do Rio e no Crato agora em Janeiro? Até que ponto estas catástrofes são mera coincidência; até quando são respostas à ação do próprio homem sobre o equilíbrio instável da natureza? Uma outra questão: as Usinas Nucleares, depois do acidente asiático, devem continuar sendo exploradas como uma forma segura de energia, em substituição ao petróleo e a outras formas mais limpas , como a hidroelétrica?
Quem acompanhou o noticiário da tragédia japonesa deve ter percebido algumas peculiaridades. A primeira delas é o quanto a organização e o trabalho preventivo são capazes de minimizar as baixas. Quando se computarem todas as mortes japonesas talvez alcancemos 30.000 perdas. No Haiti foram mais de 200.000 e na Indonésia mais de 300.000. Como o Japão conseguiu impactar de forma tão forte as suas mortes? Através da tecnologia e do treinamento do seu povo para as situações de calamidade. Esta parece ser uma das maiores lições que depreendemos do desastre japonês: é possível sim, com medidas preventivas, não evitar os fenômenos naturais,mas prevê-los com alguma antecedência e diminuir de forma significativa as perdas humanas.
O maior exemplo, no entanto, que arrancamos da gigantesca tragédia que já se abateu sobre o Japão é a maneira destemida, contida e resignada com que os japoneses enfrentaram a devastação. Sem choros convulsivos, sem atropelos, sem apelos dramáticos. Mesmo diante da fome , da perda e da morte o povo manteve-se controlado: nada de saques, de correrias, de salve-se-quem-puder. Entre nós latinos, afeitos às grandes manifestações sentimentais, á solidariedade de superfície, às lágrimas fáceis e aos apelos dramáticos, a reação japonesa parece-nos estranha e fria. Mas a sua resignação passa-nos a certeza absoluta que, tendo suportado tantas guerras, tantos desastres naturais e duas bombas atômicas; os japoneses forjaram sua alma no fogo e estão prontos a resistir a todas as intempéries. Calmamente se debruçam sobre os escombros e remontam , peça por peça, o quebra-cabeças da sua vida e da sua história. Como se nada houvesse acontecido, como se o tsunami tivesse vindo apenas fechar um ciclo e trouxesse consigo a anunciação de tempos menos turbulentos e mais felizes.


18/03/11

quinta-feira, 3 de março de 2011

Mundos virtuais


A freira dominicana Maria Jesús Galán foi afastada , recentemente, de sua ordem religiosa, após 35 anos de reclusão. A religiosa é espanhola e carrega nos lábios um sorriso solto de quem anda de bem com a vida. A expulsão , em si, não seria notícia, não fosse pela causa que levou de volta a irmã Maria a este mundo ríspido e cruel. Galán é uma usuária assídua da internet, usa o computador para ler, ouvir músicas e fazer amigos. Sua página no Facebook arrolava quase seiscentos seguidores. A ordem dominicana possivelmente interpretou isto como uma perigosa quebra de reclusão, a freirinha estava periodicamente fugindo para o cyberspace.
Claro que os dominicanos têm lá suas regras, próprias do fechado clube que criaram e , como tal, têm o sagrado direito de escolher quem pode ou não freqüentar as suas hostes. A atitude, no entanto, me traz um mote para refletir sobre a terrível dificuldade que têm as religiões de acompanhar o dinamismo inexorável do tempo e da vida. Os templos todos terminam por ter um cheiro mal disfarçado de fuligem, de mofo, de teia de aranha.
As grandes religiões alicerçam-se em livros sagrados que foram escritos pretensamente sob inspiração divina há muitos séculos atrás: O Talmud, o Alcorão, a Bíblia, o Tipitaka, o Rig Veda, o Zend Avesta . Respeitemos todos os religiosos e acatemos a sacralidade destes livros. Mesmo assim, vem uma grande pergunta: mesmo sagrados e inspirados, quem os interpreta , quem os traduz, quem os ensina ? Ora, várias gerações de sacerdotes,místicos, beatos todos eles humanos, falíveis, eivados de paixões e defeitos. Mesmo assim, se outorgam poderes especiais e se apresentam como representantes legais do Homem, sem apresentarem, nunca, uma procuração assinada pelo Ser Supremo. Pois são justamente esses inúmeros sacerdotes falíveis que interpretam os desejos mais insondáveis de Deus. Montados neste poder supremo: criam regras, cospem sentenças, ditam códigos de ética, loteiam os céus e cobram pedágio, a todo momento ,neste caminho que pretensamente levará ao Shangri-lá da eternidade. A interpretação apaixonada e tantas vezes tendenciosa dos livros sagrados levou a tragédias históricas inimagináveis: a Inquisição, as Cruzadas, as Guerras “Santas”, as Jihads, os “Homens Bomba”, o genocídio indígena no Novo Mundo. Seria possível sair de um Ser Onisciente regras absurdas como : a proibição de transfusão de sangue; das crianças brincarem em parque de diversão; do uso da camisinha na prevenção da AIDS; a demonização do sexo e do prazer; o preconceito terrível com a diversidade sexual; o apedrejamento público de mulheres em caso de adultério ?
Além de tudo, esses livros escritos, alguns há milhares de anos, teriam condição de contemplar o mundo atual, com sua vertiginosa evolução ? Barriga de aluguel, Clonagem, Células Tronco,Fertilização in vitro, Internet, Globalização ? Claro parece que todos esses livros necessitariam de um upgrade providenciado pelo próprio Autor e não por seus pretensos procuradores.
A expulsão da madre Maria Galán é um nítido sinal de como as religiões estão presas ao passado . Emboloradas, não conseguem interpretar os novos tempos e suas complexidades. Fecham-se em guetos e vomitam ordens e leis ultrapassadas. Em tempos de cirurgia robótica ainda teimam em curar as chagas do corpo e do espírito com cataplasmas e sanguessugas. Madre Galán há de facilmente perceber que o mundo real é esse que ela vê agora fora dos muros do claustro, lá dentro o que existe é um universo virtual, fictício igualzinho ao que ela navegava quando acessava as páginas do Facebook.


03/03/11