quinta-feira, 29 de julho de 2010

Luz

Desde tempos imemoriais já se apregoava : a sala de visitas é o coração de uma casa. Receber bem, recepcionar, sempre se mostrou muito mais arte que técnica. Com a explosão da atividade comercial , hoje já englobando campos virtuais, impensáveis em tempos passados, a sutileza no receber, no acolher, percebeu-se ter uma íntima relação, não só com o fazer amigos , mas também fidelizar clientes. A arte do acolhimento bebe no riacho da sedução. Quem recepciona, assim, deve carregar consigo segredos de diplomata, técnica de dança do ventre, sutileza de gueixa, paciência de monge. Imaginem, então, caros leitores, quando o recepcionista encontra-se ao largo do portão da vida e tem a grata função de fazer adentrar todos numa imensa morada chamada terra ? Pois , esta é a nobre função dos obstetras, dos parteiros : entreabrirem um mundo prenhe de possibilidades e desafios para a vida que explode no vagido de tantos bebês atônitos com a luz incandescente e ofuscante do novo, do belo, do misterioso. Poucas especialidades médicas são tão gratificantes, poucas carregam consigo tanto poder de refazer o gênesis e repovoar o planeta.
Pois este texto de sábado, amigos, é sobre um desses recepcionistas exímios e que, nesses dias, cumprida a missão, abriu a porta do quintal deste mundo para ser acolhido no grande pomar ao lado. Chamava-se Tarcísio Pinheiro e toda a cidade o conhecia, até porque muitos e muitos das atuais gerações foram por suas mãos conduzidos ao milagre da vida. Mais de quarenta e cinco anos de trabalhos dedicados, sem interrupção, num entreabrir incessante das fronteiras do ser, para um sem número de caririenses. Não bastasse isso, fez-se ainda cirurgião do mais fino jaez, um clínico de faro aguçado, qualidades desenvolvidas em tempos em que a medicina ainda carecia de especialistas nas mais diversas áreas. Advindo da seminal Faculdade da Bahia, a primeira do Brasil, Dr. Tarcísio trazia consigo uma sólida formação humanística e ética. E, mais que tudo, trouxe todo o seu conhecimento, adquirido com árduas penas, para junto do seu povo, da sua gente. Profissional do mais fino trato, atendia a todos com uma presteza exemplar. Assumindo inúmeros cargos : diretor de Hospital, Chefe de Perícia, Médico de Saúde Pública; nunca se soube de reclamações dos seus fiéis pacientes ao seu trabalho. Não bastasse isso, desempenhou ainda uma profunda atividade social na cidade, inserindo-se na atividade agro-pecuária e desenvolvendo ainda uma ativa participação na vida política do Crato. Fez parte de uma heróica geração de médicos que, a partir dos anos 60, revolveram os horizontes de uma Medicina ainda de fortes tons empíricos, para os largos caminhos do cientificismo : Dr. Humberto Macário, Dr. José Ulisses Peixoto, Dr. Ebert Fernandes Teles, Dr. Maurício Teles, Dr. Fábio Esmeraldo, Dr. Tarcísio Pierre, Dr. Eldon Cariri, Dr. Luciano Brito, Dr. Mozart Magalhães, Dr. Elígio Abath, Dr. Valdir Oliveira, Dr. Hugo Barreto e muitos outros.
Estupefatos, diante da fragilidade da vida, parecemos todos tristes e cabisbaixos, sem perceber que são tênues e quase imperceptíveis os limites entre a corda bamba e o abismo; entre a luz e o breu; entre o ser e o não ser. O fogo que nos faz brilhar é o mesmo que nos queima, lentamente, a cera da vela da existência. Quanto mais brilho emitimos, mais vida consumimos. O que fica ? A persistente lembrança do brilho que iluminou tantos caminhos e veredas . Ela nos consola em pensar que quem ofereceu tanta luz aos que chegavam ao vestíbulo deste mundo; deve ser recebido, com fogos de artifício, do outro lado da porta do quintal que dá para o pomar.

29/07/10

quinta-feira, 8 de julho de 2010

I Copa do Mundo da Macusebe

Não se sabe bem quem teve a idéia de iniciar a terceira guerra mundial a partir de Matozinho. Aquilo parecia iniciativa do Hamas ou da Al- Qaeda , numa tentativa de desestabilizar de vez o Ocidente. Ao menos , debitou-se na conta Suetônio aquela que soava como a nova Jihad. O homem, dado ao carteado e ao lançamento de dominó no Bar do Giba, foi convocado pelo prefeito Salu Bandalheira como Secretário de Esportes de Matozinho. De início, Suetônio até que mostrou serviço, organizou o campeonato de Bila ao Burias, de empinamento de pipa e o de peteca que foram um verdadeiro sucesso. Elogiado por todos, nosso esportista pegou ar na bomba. Aspirando ventos soprados da África do Sul, resolveu promover a I Copa do Mundo de Futebol da Macusebe . O certame envolvia as seleções das cidades da grande Matozinho: Currais, Serrinha e Bertioga.
À primeira vista, Suetônio organizara um evento de suprema importância, integrando as cidades da região através do futebol. Eram tantas as fronteiras que separavam estas vilas, embebidas todas num profundo bairrismo, que a iniciativa parecia louvável. O grande problema só se percebeu às vésperas da abertura da Copa: o risco das partidas se transformarem, definitivamente, numa batalha de campo com muitos mortos e feridos. Os antecedentes não eram muito animadores. Jogadores da defesa gostavam de jogar de foice na mão e a torcida ao invés de bandeiras e faixas, normalmente, empunhava facões e bordunas. O pau ia comer no centro, fosse qual fosse o resultado. Como proporcionar segurança num evento de tamanha magnitude ? Matozinho , escolhida como primeira sede do evento, só tinha dois samangos: mais acostumados a cochilo de preguiçosa do que a investigação e campana. Só às vésperas do primeiro jogo de abertura da Macusebe Copa é que , num sonho, Suetônio despertou para a sinuca de bico em que estava metido.
Atônito, nosso Secretário fez uma reunião de emergência com os funcionários da sua pasta. Resolveram, então, tomar algumas medidas para amenizar o problema. Convenceram o Padre Nó Cego a ser juiz das partidas. Alemãozão de quase dois metros de altura, o homem de voz cavernosa, metia medo em qualquer cristão e era famoso por suas penitências pesadíssimas, que mais pareciam tarefas de gincana. O sacerdote rifugou , mas sob promessa de uma roça verdejante, para seu gado que, em pleno outubro, andava mais magro que o ferrolho da igreja, aceitou. O segundo passo foi convocar Severo e Moraes, os dois soldados municipais, como bandeirinhas. Depois, em carta oficial do prefeito, apelou-se ao espírito patriótico do Coronel Sinfrônio Arnaud, para organizar um exército que desse segurança suficiente às partidas, o que não lhe seria difícil, uma vez que só na fazenda possuía mais de cento e cinqüenta jagunços.
O certo é que na abertura da Copa já se tinha um mínimo esquema de segurança montado. As preocupações de Suetônio não foram de nenhuma maneira excessivas. A rivalidade entre as equipes, se já se mostrava grande nas prévias, se foi acentuando com o passar dos dias. E o pior é que a seleção de Matozinho começou perdendo a primeira partida, o que reacendeu antigas desavenças. A coisa pegou fogo. Alguns colocaram logo a culpa em Geracino, o maior sanfoneiro da região, que, coincidentemente, por uma três vezes, botou-se para torcer um time e ele sempre perdeu. No fim do primeiro turno, a seleção de Bertioga estava em primeiro lugar, para desespero de Matozinho e dos outros concorrentes. O técnico da seleção de Bertioga, Pedro Bãin de Cuia , começou, então a cagar-goma: O campeonato tava no papo, a região não tinha parelha para a sua seleção e por aí vai. Aposta vai, aposta vem, e Pedro jurou de pés juntos que ,se seu time não fosse campeão, ele tirava a roupa e dava uma volta, em pelo, na praça da matriz. Boca falou, cu pagou.
Iniciado o segundo turno, os ventos mudaram para Matozinho. Primeiro, porque já não havia um jogador titular em atividade. Jogavam apenas os reservas. Um pouco por conta da rigidez de Nó Cego que mandou prender uns dez infratores durante os jogos. Depois, em razão das medidas severas de Sinfrônio que já metera peia em mais de dez jogadores e cobrira no relho mais de cinqüenta torcedorezinhos mais rebeldes. Alguns dizem, também, que a recuperação da seleção Matozense deveu-se à reclusão no calabouço do pé-frio Geracino, até o fim do campeonato.
O certo é que a partida final foi emocionante. Naquele domingo , Matozinho e Bertioga se enfrentaram num jogo decisivo de vida ou morte. Zero a Zero até o último minuto quando Nó Cego apitou um pênalti contra Bertioga. O tempo fechou. Bate! Não Bate ! Se bater morre! O certo é que para resolver a questão, o Croronel Sinfrõnio Arnaud adentrou o campo e, arrodedo de jagunços, bateu a penalidade. O goleiro até que tentou pegar o tirozinho mincho do militar, mas foi impedido prontamente por dois cabras do coronel. Gol de Matozinho ! Campeão da Primeira Copa do Mundo do Macusebe.
No dia seguinte, “Bãin de Cuia” teve que cumprir a promessa. Magro que só um sibito com dengue, tirou as ceroulas e saiu correndo em volta da praça, sob os apupos gerais. Ao passar defronte a Igreja da venerada Santa Genoveva, levou um sabacu vindo do ventilador do braço de Nó Cego e desapareceu. Dizem as más línguas que o bicho foi desferido com tamanha peçonha que “Bãin de Cuia”, como um balão, não mais voltou : morreu de sede nos ares.

08/07/10

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Una

Bem que o Conselheiro já nos havia antecipado: o Sertão vai virá mar ! Quem se deteve nas imagens dos noticiários televisivos da semana passada, descobriu que o visionário barbudo de Canudos tinha lá suas razões. Uma chuva inusitada banhou as cabeceiras do Rio Una, no Agreste pernambucano, e o fez inundar as cidades de Barreiros, Palmares, Cortês. Cortando como uma artéria pulsante o Agreste, de Oeste a Leste, deitando suas águas em São José da Coroa Grande, já na fronteira com Alagoas, o Una destruiu praticamente as cidades por onde passou. As imagens que se viram, pareciam arrancadas do Haiti, após o terremoto devastador. Quase uma centena de mortos e desaparecidos. Pessoas desesperadas, que já tinham tão pouco na vida, se punham a observar, sem planos, a terra dizimada, como Noé diante do dilúvio.
Este texto sai em meio à calamidade, arrancado da lama como um caranguejo. Talvez porque, como caririenses, sentimo-nos também pernambucanos e, depois, porque o Una, na sua fúria, atingiu uma cidadezinha que tem uma ligação umbilical com o Cariri : Água Preta, cujo nome talvez tenha sido profeticamente depreendido das barrentas águas do Rio Una. A cidadezinha ,hoje de pouco mais de trinta mil habitantes, até o final do Século XIX ,era mero distrito de Rio Formoso. A vila tem lá seu lado épico, foi o último reduto da Revolução Praeira e lá o Capitão Pedro Ivo se refugiou, após a derrota no Recife, e manteve uma guerrilha, até ser vencido definitivamente em 1848.
O que nos liga diretamente à Água Preta, no entanto, é um outro fato. Ali, na zona rural, nasceu em 1877, uma figura exponencial da história caririense : Manuel Soriano de Albuquerque. Brotou naquele oco de mundo, aquele que viria ser uma das figuras mais notáveis da intelectualidade nordestina. Soriano fez seus estudos preliminares em Olinda e Recife e ,em 1899, ali terminou o curso de direito. Fizera-se., então, tribuno respeitado e assíduo colaborador na imprensa pernambucana. Foi nesta época que os ágeis dedos do destino teceram os fios que atariam Soriano ao Crato. Ele se tornou amigo de um outro Manuel: o Belém de Figueiredo, filho do famoso Coronel Belém. Este precisava, justamente, de um substituto para o juiz Holanda Cavalcante. Sob a influência do amigo, Soriano foi nomeado, pelo Presidente Nogueira Acioly , juiz substituto desta cidade, aqui aportando, significativamente em janeiro de 1900, na aurora do novo Século.
O Crato nunca mais seria o mesmo. Soriano de Albuquerque , acostumado às noites recifenses, revolveu o município de seu mofo. Criou ,aqui , um dos Grupos seminais do Teatro Cearense ; “ Os Romeiros do Porvir”, onde foi dramaturgo, cenógrafo, diretor e ator. Nele estava inserida toda a intelectualidade cratense: Luiz Gonzaga, nosso primeiro fotógrafo e o introdutor dos primeiros rudimentos de cinema na região; Fantina Aires a primeira dama do teatro caririense; Miguel Lima Verde, um dos primeiros médicos do estado. Soriano fundou ainda o Colégio Leão XIII e os jornais : A Semana, A Cidade do Crato , Jornal do Cariri, Correio do Cariri, O Sul do Ceará e ainda a revista : Coração do Ceará, Em setembro de 1902, transferiu-se para Barbalha por conta das brigas políticas envolvendo os Coronéis Belém e Antonio Luiz. Para lá levou o Colégio Leão XIII e ali fundou a Sociedade Instrutiva José Marrocos e continuou seus trabalhos de dramaturgia. Em 1905 transferiu-se, definitivamente para Fortaleza, onde dirigiu uma das Seções da Revista do Ceará . Reiniciou, então, seus afazeres na área jurídica, tornando-se professor e fundador da Faculdade de Letras( 1913). Atuou prolificamente como crítico literário, ensaísta, jornalista, poeta, jurisconsulto, com um prestígio enorme em todo Nordeste. Não bastasse isso, Soriano mergulhou pioneiramente, numa nova área do conhecimento: A Sociologia, sendo o fundador da Revista Brasileira de Sociologia e um dos primeiros cientistas brasileiros a se dedicar à nova Ciência. Em 1912 foi eleito membro do Instituto do Ceará. Numa manhã de setembro de 1941, Soriano alçou vôo, placidamente, da sua cadeira de balanço. Tinha sessenta e quatro anos e vivia humildemente, plantara o seu tesouro à distância das traças e dos cupins: mais de 92 obras dos mais variados tons.
Soriano de Albuquerque era filho adotivo do Cariri. Casara com uma cratense, D. Júlia Milfont de Amorim, quando ela tinha apenas treze anos. Quem sabe terá sido a Chapada do Araripe a sua última visão no seu vôo de Ícaro? Se o Rio Una revolveu toda Água Preta nos dias atuais, nosso teatrólogo sacudiu, com força igual, todos os alicerces da nossa terra, num movimento sísmico diverso. Ao contrário do Una, empreendeu um hercúleo processo de construção e ergueu as sólidas paredes da nossa identidade cultural . Numa estranha geografia, o manso Rio Grangeiro tornou-se afluente do turbulento Rio Una.

01/07/10