sexta-feira, 28 de maio de 2010

Conchambranças



Balduíno , entrado nos anos, arranjou um quebra-galho. Fora casado, pusera no mundo uma récua de filhos que se espalharam pelo Brasil, tangidos pela necessidade. O casamento acabou por decurso de prazo. Ele e a mulher mantiveram-se debaixo do mesmo teto, por mera formalidade. Arrefecidos os ânimos mais exaltados e o fogo que um dia já havia incendiado as caldeiras das entranhas; resolveram, por economia de recursos e de solidão, dividir a mesma casa, a mesma mesa e multiplicar apenas as camas. Comunicavam-se através de uma gama básica de palavras, geralmente monossílabos e dissílabos. Evitavam as interrogativas. A esposa , mais lépida, juntava-se a umas outras tantas colegas da mesma geração: na igreja, no SESC, em atividades físicas no Corpo de Bombeiros. Balduíno, aposentado, carregava o fardo da melhor idade (?) nas rodinhas de praça, nos bares, num joguinho de gamão. Pois, sabe-se lá como, apareceu de chofre aquela novidade de todo inesperada. E bota inesperado nisso!
Os colegas caçoavam : Balduíno, na verdade era um kit de encostados no INSS. Carregava ele mesmo e mais um outro aposentado no meio das pernas. Parece que tudo começou por conta do sonho misterioso. Uma noite, ele sonhou dirigindo uma camionete carregada de jaca. Ele mesmo era o motorista e andava quilômetros e quilômetros de ré. Pela manhã, saiu com aquela imagem pregada como chiclete. Lembrou, então, de fazer uma fezinha no Jogo do Bicho. Procurou uma cambista: D. Imeuda. Explicou-lhe a revelação onírica e ela rápido matou a charada. Camionete carregada de jaca, andando de ré : Jaca-ré ! Balduíno fez a pule : lascou dez reais na milhar e deu jacaré na cabeça . Ficou tão feliz com o prêmio de R$ 20.000,00 que deu R$ 5000,00 para a mestra na dificílima arte de interpretação do sonho.
O acompanhamento do sorteio e os preparativos para recebimento do prêmio fizeram com que D. Imeuda e Balduíno se aproximassem. Sabe-se lá como, rolou um clima. E aí vem um outro fato inesperado. Ela era mais velha do que a esposa do aposentado. No entanto, ainda conservada e fogosa carregava aquele olhar de lince de outrora, escamurçava como veado à aproximação ainda que distante da onça. E mais: Imeuda estava totalmente desimpedida, separara-se do marido há alguns anos e não tinha filhos.
Balduíno começou pelas beiradas como quem come sopa. Aproximou-se ,devagarzinho, como se tomasse chegada pra atirar em passarinho. De repente, desembestou um namorico que percorreu, provando que o amor é cego, todo o alfabeto Braille. Em pouco, mergulharam na mesma cama e a experiência parece ter sido, de lado a lado, prazerosa. Só um pequeno contratempo. Imeuda , apesar dos anos, mostrava-se quentíssima na cama, tinha, no entanto, o hábito de gritar como uma louca na hora do orgasmo. Este costume trouxe para Balduíno enormes dificuldades. Se por um lado aquilo massageava seu machismo, por outro , toda a vizinhança dava notícia das intimidades do casal. Uma vez, no Motel, terminaram por chamar o Ronda do Quarteirão imaginando que se tratasse de um crime passível de enquadrar-se na Lei Maria da Penha. Mesmo quando buscavam lugares mais recônditos para o namoro, como a serra, um matagal distante, terminavam por causar celeuma. Pessoas que passavam, mesmo longe, punham-se a correr imaginando tratar-se de alguma alma penada. Aos poucos, Balduíno começou a ficar cabreiro com os comentários jocosos que iam tomando conta das rodinhas e se foi afastando discretamente de D. Imeuda. A propaganda em demasia, também, acabou por criar várias admiradoras à performance aparentemente imbatível do nosso D. Juan. E ele , na verdade, não estava com essa bola toda: a pelota do velho Balduíno já vazava pelo pito, tinha já uns quatro remendos e andava meio murcha.
Anos depois, Balduíno encontrou-se com o ex-marido de D. Imeuda e ele explicou que suas agruras tinham sido piores que a do amante. Todos o olhavam com olhos de chacota e sussurravam piadinhas pelo canto da boca. A gota d´água, no entanto, tinha sido o apelido que lhe haviam posto : “Tampa de Caixão”. Para um Balduíno incrédulo, ele decodificou a origem do epíteto que pegara como catarro em parede:
--- Você não já viu um velório? Antes do corpo chegar na casa do decujos , os familiares ficam ali pelos cantos chorando baixinho como se tivessem chupando cana : snif... snif... snif.. De repente, chega a funerária com o defunto na urna, aí o povo todo de se agita, num é? Então, tiram a tampa do caixão de repente... E a gritalheira toma de conta do mundo Ai, ai, ai! Oh! Oh!Oh! Ui! Ui!Ui ! . Pois eles diziam que era eu que tirava a tampa do caixão de Imeuda, nas horas das conchambranças...

28/05/10

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Temporão

Argemiro passara por todas as crises previsíveis no casamento. Contornara o cabo da tormenta nos dez anos, quebrara a porcelana nas bodas de vinte e já se engasgara com as pérolas nas de trinta . O fogo dos velhos tempos já se tinha arrefecido, restavam apenas algumas brasinhas embaixo de muita cinza. Atravessara a idade do lobo e do cachorro colérico e, finalmente, agora se dava um pouco por vencido. Os ciúmes da esposa, D. Guida, amainaram e o tesão se foi metamoforseando de amizade e companheirismo. Contemplava a companheira de tantos anos e já não conseguia deitar-lhe olhos de desejo. Parecia-lhe , agora, um verdadeiro desvio sexual querer bolinar a mãe dos seus próprios filhos, apalpar a avó dos seus netos. A mulher subira os píncaros nebulosos da menopausa e já não lhe cobrava tanto freqüência e performance. Ademais, nem podia: cada dia mais sexy-agenário ele usava um sem número de aditivos: para glicose, para artrite, para a próstata, para dormir, para acordar. E mais, vários medicamentos para uma hipertensão de difícil controle que por mais de uma vez o tinha rebocado para a UTI. Parecia um mutilado de guerra e foi aprendendo a viver com os espólios que lhe restaram.
Semana passada , no entanto, D. Guida notou uma mudança radical no comportamento de Argemiro. Depois de assistir ao Jornal na televisão, ficou meditativo como o pensador de Rodin. No dia seguinte desapareceu e não mais voltou para casa. A esposa valeu-se dos amigos e, antes de procurar a polícia, foi informada que o marido estava vivo, enfurnado na zona do Baixo Meretrício da cidade há mais de uma semana. Segundo seus companheiros mais chegados, vivia há mais de uma semana na esbórnia, com as meninas da “Boite de Maria Alice”. D. Guida imaginou que o marido tinha endoidado de vez, pois não tinha mais tesão nem saúde para tanto. Ele é uma laranja chupada, pensou a esposa, como é que as raparigas ainda estão conseguindo lhe arrancar algum sumo ? A esposa aumentou a preocupação quando recebeu a conta semanal da farmácia e notou um aumento considerável no valor da nota. Corrigindo os itens, cuidadosamentre, descobriu a razão : num só dia Argemiro comprara vinte e cinco comprimidos de Viagra. D. Guida , então, temeu definitivamente pela vida do marido turbinado : vai cair durinho – literalmente- numa overdose!
Na noite do décimo dia, um Argemiro de sorriso arregaçado retornou ao Lar, já não tão doce. D. Guida emaranhava-se num misto de raiva, ciúme e despreocupação. Partiu para cima do marido, como uma fera: safado, sem-vergonha, nojento, por que não ficou de uma vez com suas rapagigas da Boite de Maria Alice , seu farrista ? Argemiro, sem perder a pose, saltou de lá:
--- O quê ? Me respeite, mulher ! Você não ouviu as orientações do Ministro da Saúde na televisão? Sexo é o melhor remédio, minha filha! Como sua botica já faliu há muito tempo, eu procurei uma Clínica especializada em hipertensão: a da Dra. Maria Alice! Tava fazendo um tratamento intensivo!
A antiga laranja chupada havia se transformado num fruto temporão.

20/05/10

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Mercury 49

Chegara naquela idade do gelo em que algumas decisões de suma importância não mais podem ser adiadas : Pintar ou não o cabelo ? Usar o cinto acima ou abaixo da barriga? Turbinar ou não com Viagra? Lentes progressivas , bifocais ou vários óculos? Perereca ou implante? Quebrado o cabo da derradeira esperança, percebeu, claramente, que a contagem dos anos já não se fazia : mais um, mais um... agora, iniciada a contagem regressiva, chamava: menos um, menos um... Os netos já o tomavam a pagode e nas brincadeiras ele é que era o “café-com-leite”. Nas feiras escolhia os alimentos não mais pelo sabor, mas lendo os rótulos cuidadosamente para somar as calorias, ver o teor de açúcar e de sódio, tudo sob orientação médica, como se o rótulo fosse uma bula. Calculou meticulosamente e descobriu que já gastava mais na farmácia do que no supermercado.Por incrível que possa parecer, estas mudanças talvez por não chegarem de chofre, demoraram para fazer cair a ficha. No fundo ainda se sentia aquele garanhão dos quinze anos e não o pangaré grisalho que teimava em refletir-se no espelho. E ostentava a vã certeza de que seu Mercury / 1949 ainda era capaz de ganhar corridas, concorrendo com Ferraris de última geração. Aos poucos, no entanto, passou a perceber sinais de cupins na biblioteca. Uma bursite no ombro direito, a pressão alta, a dificuldade de ler, o tesão meio borocochô. O que estava acontecendo com o menino lépido de outrora?
Nem mesmo uma ameaça de enfarte o tirou do sério. Afinal estes problemas de coronárias podem aparecer em qualquer idade, não é mesmo? Deve ter sido o diabo do cigarro, pensou lá com suas cãs. Um dia, no entanto, um fato corriqueiro lhe fez acordar para a constatação da inexorável marcha do tempo. Perto de casa, viu alguns rapazes se preparando para um rachinha num campo de várzea. Do alto dos seus vinte e poucos anos assumidos, inscreveu-se para a partida, meio a contragosto dos meninos. Acreditou que eles temiam a qualidade reconhecida do craque que pensava que ainda era. Bola vai, bola vem, atacando de ponta direita, quase não recebia nenhum passe. É que havia um meio de campo do seu time que amarrava a pelota e não passava para ninguém, aquele fominha que não entende o futebol como um esporte coletivo. Lá para as tantas, recebendo um passe da defesa, Lírio correu pela lateral do campo e cruzou para o fominha, partindo célere para o ataque. De repente estava livre, sem marcação, diante do gol, esperando o impossível : que o fominha lhe devolvesse a bola! O unha-de-fome se enrolou com a defesa e terminou perdendo a jogada sem nem imaginar em cruzar de volta a redonda. Nisso, o centroavante, furioso gritou:
--- Filho da mãe, fominha de uma figa, passa essa bola, tu não tá vendo o Velho ali solto, solto ?
Lírio olhou para um lado e para o outro procurando o velho citado e não encontrou. Foi quando descobriu o impensável : Era ele ! A partir dali, com a dura verdade pesando-lhe aos pés, não mais rendeu. Terminada a partida, decidiu: jogo agora, só de tabuleiro!
O certo é que a ficha caiu súbito, mas não sem resistência. Lírio aposentara-se de um emprego burocrático na prefeitura. Voltara para casa, mas teve sérios problemas de adaptação. Por várias razões. Primeiro nada entendia de trabalho doméstico e, no intuito de ajudar, começou atrapalhar e muito. Depois , tinha uma relação meramente burocrática com D. Lindalva, a esposa: “Tetos iguais, corações separados”. A proximidade como que diminuiu ainda mais a temperatura da relação e os congelou. Tanto pesou a aposentadoria que o enfarte de Lírio brotou, possivelmente, da inadaptalidade às novas funções. Recuperado, resolveu, então, comprar um carrinho velho e trabalhar como taxista. Não ganhava lá essas coisas, passava a maior parte do dia no ponto, mas de conversa em conversa, de fofoca em fofoca, o restinho de vida ia passando à sua frente com a calma devida, com a anestesia calculada.
Trabalhando com uma velha Brasília 86, Lírio percebeu que aquilo não era um carro, mas quase um casamento civil. Vivia na oficina mais do que na praça. Quando lhe começaram a aparecer os achaques da idade teve a perfeita consciência de que não se diferenciava muito da velha fubica. Como ela, tinha folga na direção, rolamentos gripados, pneus carecas e estava saltando de marcha de quando em vez.
--- Qualquer dia desses, eu ou ela sobramos na curva, ou quem sabe os dois ?
Semana passada, arranjou uma namorada, numa das corridas. Tinha idade de ser filha do Lírio. Levou-a para um motel. Começou como quem come papa: pelas beiradas. Na hora do venha a ver, até que o motor velho reagiu acima do esperado. Estava todo serelepe. Demorou , demorou, mas nada de chegar ao ápice... nada! Suado, pensou com sua samba canção:
--- Meu Deus ! Ia tão bem ! O que terá sido dessa vez ? Será que agora foi o jiqlê do carburador que entupiu ?

13/05/10

domingo, 9 de maio de 2010

Casanova de casa nova


-- Aquilo não é uma mulher, é um cão perdigueiro !
Esta talvez tenha sido a mais perfeita definição da mulher de Salustiano, feita por um de seus amigos, numa mesa de bar. Salu( como era conhecido na patota) sempre fora chegado a uma gandaia. O bordel sempre tinha sido o templo maior de suas oferendas. Seu oratório era preenchido pelos deuses pagãos: Dionísio, Baco e Vênus. Parece que tinha sido castigo! Já entrado nos quarenta, terminara por casar com D. Guilhermina: mulher madurona, sistemática, cuja maior diversão era ir para quermesses e assistir às reuniões de casais com Cristo que Salu acompanhava, a contragosto. Não bastasse tudo isso, a patroa de Salu era extremamente ciumenta. Parecia um cão farejador. Ligava para a repartição do marido inúmeras vezes ao dia, como se estivesse fazendo chamada. Quando o pobre retornava para casa, procedia-se uma revista rigorosa, digna de Sherlock Holmes, em todos os seus pertences e vestes. D. Guilhermina olhava atentamente a Agenda, em busca de telefones suspeitos, ou bilhetes. Revistava ainda cuidadosamente todas as roupas externas e íntimas procurando fragrâncias estranhas, cabelos femininos ou marcas de Batom. Algumas vezes, chegou a examinar, com atenção quase urológica, o próprio corpo de Salu, fingindo-se de mulher envolvente e carinhosa.
Apesar de todo cerco impingido por D. Guilhermina, nosso D. Juan não havia perdido de todo o espírito aventureiro. Como, por mais de uma vez, tinha sido flagrado, com uma ou outra prova material, foi desenvolvendo um ritual digno da CIA ou do MOSSAD. Carregava no porta malas, escondida, uma maleta fechada com um sem número de utilitários : soluções para retirada de manchas, aromas vários para disfarçar perfumes, óleo e graxa para simular “pregos”no carro e justificar atrasos , bateria descarregada( sempre) para justificar celular fora de área e por aí vai...Não bastasse isso, tinha uma rede de auxiliares digna de nota, capaz de falsear vozes, inventar histórias/desculpas mirabolantes, forjar documentos e álibis. A mulher tinha, porém, pacto com o demo: devia ir para o Afeganistão procurar o Bin Laden, diziam os amigos. Um dia, suplicante, pediu que ele a contasse sobre qualquer aventura após o casamento, jurando calma e compreensão, pois, dizia, sua fobia não era de chifre, mas de ser enganada sem saber. Salu, para testar, começou a falar sobre alguns namoricos da infância e, mal tinha passado do segundo, já D. Guilhermina ia quebrando todos os pratos da cozinha no tubo de imagem da TV. Imagina se falo os do pós-matrimônio, pesou Salu, aliviado em meio aos destroços da III Guerra Mundial.
O período de maior aflição passado por Salu aconteceu depois do caso Diana Bobitt. Vocês lembram ! Sim, foi aquela que, numa crise de ciúmes, cortou o pinto do marido com uma faca de pão, como se fosse salaminho. D. Guilhermina, imediatamente, a tomou como ídolo e até andava com um retrato da emasculadora senhora na bolsinha de dinheiro. Salu entrou em pânico quando descobriu no guarda roupas da esposa ( imaginem o quê !): uma faca Gin Su ! Passou mal, terminou por internar-se em clínica para esgotados mentais. Voltando, inventou , prontamente, que o médico prescrevera comida chinesa típica , para toda a família e, a partir daí, deu fim às cortantes lâminas da casa e passaram a comer com pauzinhos ( para alívio derradeiro dos países baixos e melindrosos de Salu).
A vida assim ia se escoando em meio a esta Guerra Fria. Tamanha perseguição parecia ir dando um tempero todo especial às perigosas escapulidas de Salu. Dia desses, no entanto, o homem voltou a sobressaltar-se. Aparecera nova arma de contra-espionagem no mercado. Ele soube ,através de sua especial rede de informação. No Bar de Seu Louro, os amigos, aflitos, lhe mostraram o recorte de Jornal. Os japoneses inventaram um spray que borrifado na cueca da pessoa, em contato com qualquer resquício de sêmen, torna-se verde e aí, a patroa –perdigueira, ao examinar, poderá ter uma prova concreta da traição cometida. Não bastasse isso ainda desenvolveram um tipo de meia que muda de coloração ,se por acaso for retirada do pé, o que poderia dar evidência de visitas sorrateiras a motéis. Salu gelou! Aquilo nas mãos de Guilhermina seria uma arma perigosíssima. Na sua visão de Casanova, a atitude dos japonas só podia ser despeita com os ocidentais. Inventar uma porcaria destas, só pode ser complexo de inferioridade: por terem um pingolim do tamanho de um alfinete !
Por via das dúvidas, no entanto, desde aquele dia, Salu só anda de chinela, só compra cueca verde-camaleão e ,pra dormir, é com um olho só fechado : o outro “pastora” Guilermina!


Nov. / 2001