quinta-feira, 29 de abril de 2010

O Político & O Correto


É fácil perceber, em nós brasileiros, a tendência inequívoca à catalogação. Parecemos um funcionário de supermercado com sua maquineta, pronto a etiquetar todos que nos cercam. Tendemos a não observar a individualidade das pessoas e as separamos por grupos de forma segregatória e preconceituosa. Os judeus são pães-duros, os portugueses burros, as louras debilóides, os árabes desonestos, os homossexuais safados, os africanos pobres, os índios preguiçosos, os paulistas trabalhadores, os cariocas malandros... e por aí vai. Estes critérios são reiteradamente explorados em piadas de toda espécie e amplificados, de língua em língua, nas rodinhas de praça, nas mesas de bar, nas barracas da praia. Superficialmente até parece engraçado e, apreciado por indivíduos fora dos grupos atacados, a coisa é tida como uma brincadeira carinhosa. Para todos efeitos, não existe nenhum preconceito no Brasil. O caldeirão étnico que fundiu a terra brasilis traz no seu bojo a franca idéia de que aqui todos convivem harmoniosamente, que todos respeitam galhardamente as diferenças várias : de cor, de raça, de gênero, de religião, de condição financeira, de opção sexual. No dia a dia, no entanto, virada a primeira página do nosso livro de história,a beleza da capa se esfuma : o Brasil tem uma cultura profundamente discriminatória. Rico nunca vai preso; a mulher tem um salário bem menor que o do homem; a homofobia é uma realidade do nosso cotidiano; o tráfico de influência é uma moeda fortíssima; a cor da pele influencia em muito na seleção de Recursos Humanos.
Gilberto Freyre foi visionário quando vislumbrou que a fortaleza da cultura brasileira se encontrava justamente nessa diversidade . As arestas existentes vão se aplainando, caminhamos para uma lindíssima confluência cultural e étnica. Só que o Brasil ainda é uma criança, brincando de esconde-esconde nos seus tenros quinhentos anos. Muitos grilhões ainda precisam ser quebrados. Há menos de duzentos anos deixamos de ser colônia portuguesa; há somente cento e vinte anos enxotamos a monarquia e a escravidão. Há pouco mais de cem anos, também, abrandamos a Inquisição. Tantas chagas não cicatrizam rapidamente e, mesmo quando fecham, permanecem cicatrizes que só o tempo ajuda a amenizar.
Certamente terá sido pensando nisso tudo que a Secretaria Especial de Direitos Humanos criou, em 2004, uma “Cartilha Politicamente Correto & Direitos Humanos”. Num governo popular, cujo presidente vindo das classes mais desfavorecidas certamente terá sentido na pele uma enxurrada de preconceitos os mais variados, a cartilha pretendia, ao menos oficialmente, cortar do uso cotidiano palavras tidas e sabidas como preconceituosas. Já tínhamos leis anteriores que combatiam a prática do preconceito: a 3688 ainda de 1941 e 7716, mais recente, de 1989. Acreditamos que é indiscutível o poder que estas leis tiveram em balizar as relações dos brasileiros na convivência com suas diferenças. A possibilidade de abertura de processos educa de maneira drástica os indivíduos. As mudanças, no entanto, se importantes , são quase sempre de superfície. As transformações culturais demandam tempo. No fundo, o preconceito apenas se mimetiza e muda suas formas. O empresário já não chama o funcionário de negro, pois isso pode dar cadeia, mas o boicota de todas as formas possíveis pois ainda o considera inferior , apesar do discurso. Ele já o havia etiquetado previamente, às vezes até inconscientemente, e o colocado na prateleira dos inferiores, por conta da coloração da pele.
Pois bem, a Cartilha carrega consigo dificuldades parecidas. A intenção parece ótima , mas de bem intencionados até o Democratas está cheio. Reflitamos sobre algumas dessas incongruências. O primeiro ponto é que a palavra ou a expressão não existem isoladas do discurso. Se eu digo, por exemplo: -- Caboclo velho, o emprego é seu, você sempre foi um grande amigo da família! O “Caboclo velho” parece ser uma forma carinhosa de tratar uma pessoa, e pode não ter qualquer viés de preconceito. Por outro lado, se se diz : --- Isso só podia ter sido feito mesmo por um afro-descendente! Temos uma discriminação visível, independente da palavra politicamente correta.
O segundo ponto é que , em algumas situações, o uso da cartilha ajuda afastar as pessoas. A indicação , por exemplo, de sempre tratar as pessoas como “eles e elas”, “senhores e senhoras”, evitando o plural no masculino que, historicamente, incluía todos, parece criar barreiras entre as pessoas. Seria melhor, por exemplo, que para compensar, nos próximos mil anos se utilizasse a forma feminina no plural para se referir a todos. Uma outra questão importante é que as palavras são muito parecidas com as pessoas. Elas envelhecem e, frequentemente, saem de moda. Vejam, por exemplo tertúlia , baile, flerte, película... hoje são termos totalmente obsoletos. Não bastasse isso, no seu dinamismo, a língua muda com o tempo, os costumes, as gerações. O termo politicamente correto nesse momento pode já não ser amanhã. “Bárbaro”, por exemplo, nos últimos tempos pode denominar uma coisa bem legal, já não é o adjetivo repugnante que aparece em “crime bárbaro”. Muitos verbetes, inclusive , tomam outros significados e dimensões. O verbo “denegrir”, lembrem, advém etimologicamente de negro e, na sua origem, é preconceituoso, mas hoje, já não tem nenhum resquício dessa conotação. Chamar um motorista de “barbeiro”, hoje, já não tem ligação direta com o cabeleireiro. Chamar uma moça de mulata é bem diferente o significado que se depreendia disso no Século XIX; mais frequentemente se trata de um elogio. Comunista hoje já não come criancinhas. Há que se falar ainda das sérias dificuldades que teremos em tornar de uso corriqueiro algumas definições politicamente corretas. Trocaremos : surdo, cego, mudo por “portadores de necessidades especiais”. A língua no seu dia a dia busca rapidamente a Lei do Menor Esforço. Vai ser complicado a fixação do termo fora da língua culta, em pouco eles poderão ser chamados de “pornes”.
A intenção da Cartilha é ótima mas é bom lembrar que não será por conta dela que os apenados terão celas mais dignas; os afro-descendentes conseguirão iguais condições de trabalho; os homossexuais e as mulheres sofrerão menos violência; os portadores de necessidades especiais conseguirão melhor acessibilidade. A luta está apenas começando. Só caminharemos quando o país deixar de se engalfinhar tentando descobrir qual é a cor mais bonita da aquarela e chegar à conclusão que o multicolorido do arco-iris pátrio é que nos dá a individualidade e a beleza inigualáveis. O politicamente correto tem sérias limitações até nome: no Brasil o político e o correto, historicamente, não se homogeneízam muito bem.


29/04/10

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Golf X Yacht

Matozinho estava em festa. Envergara roupa de gala para a solenidade. Cordas de bandeirolas cortavam diagonalmente as ruas , amarradas em palmas de coqueiros, fincadas espaçadamente ao chão, bordeando a rua em toda sua extensão. . A banda cabaçal do maestro Bizarria , periodicamente, cruzava as calçadas, acompanhada de um bando de meninos, entoando cocos e marchas. Fogos ribombavam nos céus, como em noite de São João. A praça da matriz estava atapetada de barracas que vendiam passa-raivas, filhoses , roletes de cana, bolo de puba e outras iguarias em meio ao exército de garrafas de aguardente nas prateleiras. O esboço de um parque de diversões se estendia para as ruas laterais com canoas, carrossel, roda gigante, gangorra. Era o início das comemorações dos vinte e cinco anos da emancipação política da cidade. A programação preparada pela prefeitura era diversificada e caótica. O sacro e o profano faziam-se o verso e o anverso da mesma medalha. Missas, bingos, novenas, sambas, água benta, corrida de bicicleta, pau de sebo, discursos oficiais.
Fechando as festividades que se iniciaram na quinta feira, o domingo prometia : um jogo de futebol sensacional, uma espécie de FLa-FLu da região que envolvia as equipes do Milionários Golf Clube de Bertioga e o valoroso e querido Juventus Yacht Ckub de Matozinho. O clássico que ficou conhecido popularmente como MI-JU . Um embate histórico de antecedentes trágicos preocupantes. Nos últimos vinte anos, sempre que as duas equipes se encontravam, o saldo de feridos , mortos e desaparecidos terminaram por tornar o evento quase que inviável. Fato furado, tripa arrastando pelo chão, canela trincada, pescoção, unha arrancada, de um tudo já se tinha visto nos jogos entre os dois times. A coisa ficou tão feia que até se pensou em mudar a modalidade para vale-tudo, ao invés de futebol. Coisa de deixar um Hooligan indignado.
Pois bem, mas Matozinho é no Brasil e aqui o esporte preferido é o futebol. Até porque a infra-estrutura é simples: uma bola que pode ser confeccionada até com meia, umas traves improvisadas, um terreno baldio... A organização do evento cuidou para que os riscos pudessem ser minimizados. Mandou que se limpasse o campo cuidadosamente, roçando e arrancando as pedras mais pontudas; remodelou as traves com madeira nova e gastou mais de três quilos de cal para demarcar os pontos básicos: grande e pequena áreas, meio do campo, marcas dos pênaltis, perímetro total do campo. Cuidou ainda para que os atletas do Juventus tivessem a melhor alimentação, se concentrando na fazenda do Coronel Serapião Garrido, chefe político local. Simplesmente porque o time não poderia perder, já que se comemorava uma data festiva de Matozinho e um resultado desfavorável seria uma desonra irreparável para a história gloriosa da vila. A primeira grande enrascada veio rápido. Quem seria o juiz de uma partida tão disputada e de tantos e previsíveis riscos? Foram aventados vários nomes, Serapião, no entanto, deu a palavra final. O melhor seria convocar Dr. Irineu Carrera. Não era só por causa do sobrenome do homem , não! Dr. Irineu era o primeiro médico daquelas brenhas, atendia toda a região -- pobres, remediados e ricos -- , além de tudo todos o admiravam pela simplicidade. O esculápio contava incontáveis compadres e comadres nas cidades vizinhas. E mais, frisou Serapião, tem autoridade! Quem diabos vai querer brigar com ele ? E se adoecer no outro dia, meus amigos, de quem vai se valer?
Procuraram um Carrera ocupadíssimo nos seus afazeres e que relutou na missão. Não entendia muito de futebol, não tinha preparo físico para agüentar, apesar do sobrenome, correr campo acima, campo abaixo por noventa minutos. Serapião, no entanto, fincou pé, não era homem de levar um não para casa e o doutor não teve outro jeito a não ser enfronhar-se no campo minado. Quando a comissão deixou o consultório ele ainda pensou com sua bata: era mais fácil tentar resolver aquela pendenga lá na Faixa de Gaza!
O nome do juiz foi aceito com entusiasmo lado a lado. Sabia-se da sua autoridade indiscutível, além de tudo, teriam o médico ali perto, em pleno campo de batalha, pronto a encanar os braços quebrados, pontear as cabeças lascadas, atender os traumas múltiplos e esperados.
No domingo, o estádio improvisado fervilhava de gente. Todas as árvores ao redor curvavam-se ao peso dos torcedores, como se fora uma espécie de cadeiras numeradas. Convencionou-se que o time da casa jogaria de camisa e o Milionários, apesar do nome, nu de cintura para cima, para facilitar a identificação dos jogadores. Às três da tarde as equipes já estavam em campo, prontas a começar o embate. Um estrado mais alto foi posto de um dos lados para acomodar as autoridades locais : o delegado, o juiz, o padre; Sindé Bandeira, o prefeito e o velho Serapião Garrido. Após a execução do hino Nacional pela bandinha, Juvenal fogueteiro atiçou o estopim de umas dez dúzias de fogos. De repente, percebeu-se uma falha: Cadê o Dr. Irineu? Nada do juiz adentrar em campo. A organização , rápido, soltou meia cento de vaqueiros atrás do homem. Corre prá lá, pergunta de cá, terminaram encontrando o cabra, meio capotado, da farra do dia anterior. Estava com uma ressaca de matar, na casa de uma teúda e manteúda sua ali na rua do Caneco Amassado. Avisaram da urgência : só estava faltando ele, todas as autoridades esperavam impacientes. Carrera informou que estava impossibilitado de apitar por conta da ressaca, não tinha nem condições de se mexer na rede, como diabos é que ia correr noventa minutos no sol e ainda soprar apito? No campo, a galera já se agitava e as autoridades num calor digno de Terezina, já se coçavam. Convocaram, então, Serapião que teve que usar técnicas dignas da NASA. Botou um chapéu grande na cabeça do doutor , montou-o num burro e levou-o ao campo. Convocou um menino para puxar a alimária . Carrera, então , montado no burro, puxado pelo menino, de chapéu na cabeça e apito no beiço, passou a cumprir suas funções legais. O time atacava , o menino puxava o burro no sentido da trave adversária; a defesa desarmava, o menino dava meia volta e puxava o burro, com o juiz, no sentido contrário. Um sobe e desce infernal.
O pau comeu solto. No começo do segundo tempo, já haviam sido expulsos nove jogadores da Juventus e oito do Milionários, isso sem falar nos outros sete que saíram contundidos. O resultado, para desespero de Matozinho, continuava 0 X 0. Os matozenses ansiosos percebiam que aquele placar terminaria por anuviar a beleza da Festa de Bodas de Prata da cidade. O que se esperava terminar com Chave de Ouro, corria o risco de escorregar para flandres ou latão. De repente, a tragédia. O Center-ralf, “Zé Bigorna” da Juventus, derrubou, na pequena área, o Center-forward do Milionários: “Tiziu”. Faltavam exatamente dois minutos para o fim da partida. Irineu , o menino e o burro, estavam em cima do lance e o juiz não teve dúvida: apitou a penalidade máxima contra o time de Matozinho. O estádio manteve um silêncio sepulcral, parecia o Maracanã em 50, após o gol de Giglia.
Num átimo a população percebeu o tamanho do holocausto: a festa se acabava, a honra da cidade maculava-se definitivamente e, perdendo dentro do terreiro, serviriam de magofa para todo o sempre na região. Ninguém nunca imaginou que o MI-JU terminasse numa hecatombe daquelas.
No camarote, o Coronel Serapião demorou a entender o que se estava passando. Percebeu, no entanto, que existia alguma coisa errada. Não entendia nada de futebol, mas pela cara da torcida, pressentiu tudo. Chamou “Marreco”, seu assessor direto, e perguntou o que estava acontecendo. “Marreco” com voz entrecortada tentou explicar, inconformado:
--- Tamo lascado, Coronel, o juiz marcou um pênalti contra a gente e o jogo já tá quase acabando...
Garrido, pediu mais detalhes:
--- E que diabo é que é pênalti, homem de Deus ?
“Marreco” sussurrou aclarando a questão:
--- É uma falta contra nós. Eles vão botar a bola naquela marquinha ali perto do gol e vão chutar contra nossa trave !
O Coronel insistiu em mais detalhes:
--- E nós vamos botar quantos cabras na barreira pra ataiar a bola, seu “Marreco” ?
“Marreco” , então, o pôs a par do tamanho da bronca:
--- Num tem barreira não, Coronel, bate é direto... É difícil não ser gol... Vamos perder dos Milionários, será possível ? o Senhor vai deixar bater esse pênalti, coronel ?
Serapião respirou fundo, meio capiongo e falou:
--- Direto... pois a coisa é feia, seu “Marreco” ! Mas juiz é juiz, autoridade é autoridade, nós temos que respeitar, num tem jeito... Vai ter que bater o tal do pênalti sim !
“Marreco” aflito, perdeu as esperanças:
--- Tamo fudido então! Vamos perder! Mas como é que pode, coronel? Um desaforo desses dentro da casa da gente !
Neste momento, Garrido levantou-se de garrucha na mão e fechou questão:
--- Não! O juiz apitou vai ter que bater! Não desfaço autoridade de ninguém. Agora vai bater o pênalti do outro lado, contra o “Milionários”! Do lado de cá não tem fila da puta nesse mundo que bata pênalti, ou eu não me chamo Serapião Garrido! Joviu, seu Marreco ?


22/04/10

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Pipa


O menino brincava com os dois irmãos menores numa casa humilde de uma cidadizinha mais simples ainda. Tempos em que a rua pertencia à infância e não aos carros. A rua era o simples playground das casas, um estádio livre para o exercício da “bicheira”, da peteca, da “bandeira” , do chicote –queimado, do esconde-esconde. A lua ainda não havia fugido dos céus, ofuscada pelo néon. Jogava, a molecada, uma espécie de bocha nordestina, com pedras. A moeda de troca eram cédulas confeccionadas com o papel de carteiras de cigarro. Quem o visse assim, de bermuda, sem camisa, tangido pelo vento, empenhado nos mistérios lúdicos do jogo das pedras, jamais imaginaria o homem que se gestava na infância prenhe do menino da rua. Mas o tempo que engoliu a rua e triturou, pouco a pouco, a infância, não conseguiu destruir o moleque. Semana passada, muitos anos depois, ele subiu as escadas de um luxuoso hotel na paradisíaca Campos do Jordão, para receber um dos prêmios mais almejados na sua arte : o XI Prêmio Brasil de Medicina. Não parecia o médico querido e renomado que tantos cearenses aprenderam a admirar, carregava o sorriso maroto do guri redivivo, como se acabasse de ganhar algumas cédulas de papel de cigarro, após a colisão certeira no jogo das pedras.É que não foram poucos os percalços na caminhada do menino. Crescera sem a presença marcante do pai, numa família tradicional, mas humilde de três filhos.Cedo entendeu que as notas reais eram bem mais difíceis de encontrar do que as das partidas de rua. As intempéries forjaram seu espírito e rápido aprendeu: as desigualdades do mundo, a felicidade de alguns e a desgraça de muitos não aconteciam por mero acaso, iam bem além do fortuito fatalismo. Existia uma histórica e bem arquitetada trama para que o paraíso fosse de alguns eleitos e o inferno o latifúndio de uma maioria. Em plena ditadura militar dos anos 60-70, estas disparidades ficaram bem mais perceptíveis nos seus deslumbrados olhos de estudante. Embrenhou-se na política , foi perseguido e dedurado. Terminou expulso do colégio junto com os irmãos. Para recuperar os anos em atraso, fez o Curso Científico de uma só vez no supletivo e enfrentou o vestibular de Medicina em Recife. Foi o orador da turma, assim como o fora na quarta série ginasial, quando proferiu o discurso que o levou à expulsão . Partiu para o Rio de Janeiro, onde fez a residência médica na especialidade de Neurologia e para aqui voltou, nos anos 80, onde se dedicou de corpo e alma ao seu ofício. Percebeu, rapidamente, que o Cariri carregava uma chaga: a Hanseníase atacava as classes mais desfavorecidas, com índices mundiais que só se comparavam aos da Índia. Mergulhou no meio dessa multidão de mutilados, combatendo com afinco nossa praga centenária, se tornando um dos maiores especialistas brasileiros nesta área. Este profícuo trabalho o levou a teses de Mestrado e Doutorado pela Universidade Federal do Paraná. Desde a escola primária , nunca se afastou da política, foi um dos fundadores do PT em nossa cidade, sendo candidato por duas vezes a prefeito de Crato, nos anos 80. Não satisfeito com toda trajetória vitoriosa, entendeu que a permanência do seu conhecimento só se exerceria se estendido a novas gerações e fez-se professor universitário. Em fins de 2009, o orador versátil voltou ao palanque proferindo brilhante discurso como paraninfo da turma de doutorandos daquele ano.Enquanto subia as escadas para receber o prêmio Brasil, essas lembranças certamente afloraram na mente do menino Marcos Cunha. Até porque , a seu lado, braço dado, seguia-lhe o anjo da guarda de todo este percurso: D. Sônia. O menino tinha a plena convicção que sem ela , sem a sua firmeza e determinação, os sonhos teriam se estilhaçado no calçamento da rua. D. Sônia consubstancia em si todos os ingredientes das mães espartanas: pronta para corrigir quaisquer distorções na conduta dos filhos e, por outro lado, armada até os dentes a defendê-los em quaisquer situações e circunstâncias. A sua vida se compara a outras tantas heroínas da nossa história como Olga Benário e D. Bárbara; só que seu heroísmo é bem menos visível, está enfeixado entre quatro paredes, entre lágrimas , soluços, com batalhas ganhas a cada instante, a cada minuto, contra as adversidades da vida. Ela nem precisa de prêmios, observa seus troféus a cada dia: um médico e dois odontólogos , homens dignos, retos e probos.
Marcos Cunha é o médico mais completo que conheço. Carrega em si ingredientes dificílimos de se enfeixar numa única pessoa. Estudioso, profundo conhecedor da sua arte, despojado, ético e dedicado ao paciente como um monge tibetano. Não bastasse tudo isso , profundamente politizado, sabe perfeitamente que a doença, a maior parte das vezes, tem bem pouco a ver com o estetoscópio: só se cura com atitude política. E mais que tudo, humilde e simples. Talvez ninguém tenha percebido, mas não foi o médico de cabeça branca que recebeu o troféu consagrador em Campos de Jordão, mas o menino inquieto da Padre Sucupira, que jogava pião e empinava pipa, firmando os pés na terra mas lançando, premonitoriamente, as asas para o céu...

15/04/10

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Chumbrega

Chumbrega vendia uma cachacinha a granel em Matozinho. Comprava em alguns alambiques da redondeza, engarrafava, após hidratá-la um pouco para aumentar o volume e o lucro, e distribuía bodega a bodega, meio às escondidas. Comerciante de parcos recursos, não tinha nenhuma condição de selar os vasilhames, já que isso significava recolhimento de imposto. O negócio funcionava como uma espécie de contravenção. Algumas vezes fora pego de calças curtas, multado e tivera a carga apreendida. Continuava , porém na luta, já que não tinha outro meio de vida às mãos e, também, com o tempo, viciou-se a driblar os fiscais, a dobrar a esquina, a esconder-se à aproximação do fisco. Aquilo se tornara uma espécie de esporte e punha um pouco de adrenalina no dia-a-dia repetitivo de Chumbrega. Vidinha de esforços desde a pobre infância, cujo fardo se foi tornando mais pesado com o passar dos anos. Casara por volta dos vinte e os filhos se foram enfileirando casa a dentro: oito. D. Ritinha, a sua companheira, viera ,como ele, da manjedoura. E sem o incenso a mirra ... e o ouro? Nem pensar! Afeita aos trabalhos domésticos, a esposa tinha uma enorme empresa para administrar, com muitos funcionários: parca em recursos e rica em problemas. O casal tocava com maestria aquela vida de pobre... e administrar miséria não é obra para principiantes. Carece de técnicas de mágico e artes de contorcionista.
Ritinha se lhe fizera a esposa ideal. Trabalhadora, controlada, sistemática, fazia render cada centavo do pouco dinheiro arrecadado por Chumbrega. Os filhos, como um general para o batalhão, mantinham-os debaixo de ordens. Havia apenas um entrave no relacionamento dos dois. Ritinha , por trás da carapaça de durona, sempre fora muito nervosa. Queixava-se de muitas doenças e dores as mais variadas. E mais, absorvia, como uma esponja, as moléstias de todos : vizinhos, amigos, atores da televisão. Bastava a notícia que alguém morrera tuberculoso em São Paulo que, na mesma hora, Ritinha já começava a tossir e a definhar. E esta mania, com a sucessão dos anos, se foi acentuando. Tanto e tanto que aquilo terminou por somar quilos no fardo já quase insuportável do nosso varejista de aguardente. Chumbrega passou a ter uma vida mais reclusa e já não transparecia a alegria , mesmo contida, de outros tempos.
Já sessentão, um dia, a mola pareceu ter esticado até o limite. Chumbrega caiu doente , queixava-se de uma infinidade de infortúnios e quase já não saía com sua carrocinha para a distribuição das garrafas. Os vizinhos entenderam que nosso comerciante entrara na curva descendente da vida e, como um estrela cadente, parecia já ter se consumido no último brilho. Aguardavam, a qualquer momento, uma notícia catastrófica sobre ele. O tempo, no entanto, é mestre em armar emboscadas nas esquinas da existência. Pois a velha da foiçona lançou sua lâmina onde não se esperava. As queixas mil de Ritinha, durante toda a vida, vai ver que tinham lá suas razões. Um dia ela dormiu na terra e acordou no céu. Tivera apenas um pequeno mal estar na noite anterior. Chumbrega lhe preparara um chazinho de jalapa e imaginou que tudo estaria resolvido no dia seguinte. Que nada! O mundo de Chumbrega veio abaixo. Perdera a companheira de tantos e tantos anos e lá ficava ele com uma récua de filhos já graúdos, é certo, mas que, como sempre, nunca param de dar trabalho. Além do mais, com saúde abalada já há vários anos, como enfrentaria os novos desafios?
Imaginou-se que em poucos meses Ritinha não estaria só na cova. Ao contrário do que toda Matozinho esperava, passado o luto oficial de trinta dias, aconteceu com Chumbrega uma ressurreição. Criou alma nova, deixou as queixas de lado, empenhou-se no trabalho com o vigor dos primeiros anos. Passou a cuidar mais do visual, embebeu-se de extratos novos e começou a freqüentar algumas festinhas. Percebia-se, claramente, que Ritinha, nos últimos anos , funcionara como um parasito, sugando-lhe a seiva vital . Agora, já sem o parasitismo, ele florescera como um marmeleiro seco com as primeiras chuvas.
Mal completara seis meses de viuvez, o coração de Chumbrega, que antes dera sinais de entupição no carburador e folga no virabrequim, engatou, novamente, a primeira. Começou a namorar uma vendedora de feira, vinte anos mais nova. Doninha , como era conhecida, era voluntariosa, despachada e não tinha as prendas domésticas de Ritinha. As más línguas diziam que seu taxímetro já tinha virado a bandeirada umas duas ou três vezes. Juntaram os panos de bunda, antes do natal.
A princípio, o relacionamento parece ter andado bem, tangido pelo cheiro de carne nova e pelo mel da lua que, percebeu Chumbrega, já estava mais para quarto minguante que para cheia. Ardido o primeiro fogo, começaram a aparecer , como sempre, os primeiros defeitos de lado a lado. Doninha não se adaptara bem no comando da tropa taluda deixada por Ritinha. Era mais independente do que o marido esperava. Viajava para feiras nas cidades vizinhas e nem todo dia dormia em casa. O esposo teve que, assim, compartilhar com ela afazeres totalmente estranhos: cozinhar, passar, lavar prato. Doninha, por outro lado, acostumara-se a uma variedade maior de parceiros, mais novos e fogosos e , rápido, enfastiou-se daquele repetitivo prato de todo dia.
Passados uns dois anos, Chumbrega começou novamente a ficar capiongo, meio borocoxô. Alguns diziam que talvez fosse o peso de umas antenas novas da Sky que Doninha parecia estar comprando para ele. Caiu adoentado, voltou à reclusão e não queria conversa com ninguém. Os que já o conheciam de longa data imaginaram que aquilo era uma fase, pois a vida é tecida assim mesmo entre vales e depressões. Matozinho se surpreendeu, pois, quando recebeu a notícia : Chumbrega dormira no domingo com as queixas de sempre e, na segunda feira, quando Doninha foi chamá-lo descobriu que já não morava nesta dimensão .
À noite, no velório, uma Doninha chorosa, entre um e outro soluço, explicava o inexplicável. Antes de dormir, Chumbrega lhe pedira um copo de leite quente. Queixou-se de azia e acreditava que tinha sido uma tapioca que comera no jantar. Ela, cuidadosamente lhe preparou e ele tomou tudo: glute-glute-glute. Quando uma vizinha lhe perguntou se depois disso ele não se tinha queixado de mais nada, Doninha , entre lágrimas concluiu;
--- Não, ele não se lamentou de mais nada. Acho que a azia passou! Até porque eu coloquei no leite um pouco de um chá de jalapa que ele tinha preparado prá mim ontem e que eu , morrendo de sono, terminei me esquecendo de tomar...

09/04/10

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Espelhos

Eric Arthur Blair... Este nome , caros leitores, não parece nos significar muito. Ele está estampado numa lápide simples - sem quaisquer outras maiores indicações- em um cemitério em Oxfordshire, ali aposta desde janeiro de 1950. Este senhor nasceu na Índia há exatos 107 anos e morreu de tuberculose, prematuramente aos 47 . Desvendado, porém, o pseudônimo atrás do qual se mascarava, George Orwell, facilmente nos orientamos. Trata-se de um dos mais visionários escritores do Século XX. A sua importância literária , certamente, não suplanta outros monstros sagrados do século como : James Joyce, Albert Camus, João Guimarães Rosa, Italo Calvino, Marcel Proust, Julio Cortazar, Jorge Luiz Borges. Existem, no entanto, alguns vieses que explicam não só a popularidade de Orwell, como a excelência de sua arte. Primeiro ,há que se exaltar o vigor dos seus ensaios e, antes que tudo, a profunda capacidade profética da sua visão política. Nascido na Índia, em pleno regime colonial britânico, George, inclusive, fez-se agente da polícia na Birmânia, experiência que o pôs em contato com as mais terríveis formas de autoritarismo. Vivenciou, depois, a inescrupulosa experiência do nazifascismo, o que o levou a pular,rapidamente, para a extremidade oposta do totalitarismo, enveredando por uma experiência marxista-lenista. Lutou ainda numa milícia trotkista e anti-franquista, na Guerra da Espanha. Tantas experiências desastrosas, certamente, terminaram por forjar na sua alma uma aversão ao imperialismo e ao autoritarismo nas suas mais diversas manifestações. Orwell levou à sua arte esta desilusão ao escrever a fábula “Revolução dos Bichos”(1945) e, depois, um dos livros mais visionários do Século XX : “1984”, publicado , não por mera coincidência, em 1948 e traduzido já para 65 países.
Nele , George narra o sonho de uma humanidade futura, pós apocalipse nuclear. Um novo país, a Oceânia, engloba a Inglaterra, as ex-américas, as ex-Austrália e Nova Zelândia e parte da África. O líder máximo da nova Nação é o Grande Irmão, o Big-Brother, uma figura misteriosa, que ninguém vê, mas que controla a todos através das teletelas que estão espalhadas por todo canto e vigiam a todos os habitantes. A comunidade era controlada física e mentalmente através da Polícia das Idéias e não havia leis, mas regras que eram jogadas goela abaixo. O romance de Orwell é quase premonitório no que tange à quebra de toda a privacidade. O futuro mostrou que uma rede tecnológica imensa tem cindido todas as barreiras individuais : comunicações por satélite, Internet, filmadoras minúsculas, GPS, satélites espiões, há até a possibilidade de leitura do pensamento através de exames de ressonância magnética. Há um aspecto dessa profecia orwelliana, no entanto, que George não conseguiu ler no seu oráculo. Ele jamais imaginou que esta perda de privacidade poderia vir a ser interessante para muitas pessoas e, inclusive, passar a ser perseguida. Artistas se mancomunam com paparazzi ; pessoas comuns filmam-se em momentos íntimos e põem as fotos na Internet; mulheres instalam câmeras em casa e transmitem as imagens em tempo real para toda a rede mundial de computadores. Hoje, o mundo busca , a todo custo, alguns momentos mínimos de fama, a qualquer preço.
Recentemente desenrolou-se, por mais de dois meses, o Big Brother na sua décima versão. O chamado Reality Show foi criado por John de Mol , um milionário magnata da mídia holandesa. O nome BB, certamente, não é mera coincidência, sorveram-no do 1984 de Orwell. O programa , de audiência expressiva, mostra um grupo de homens e mulheres, previamente escolhidos, vivendo reclusos e filmados e gravados continuamente. Em tempos em que se escancarou completamente o buraco da fechadura, entendem-se os altos números do IBOPE. Este ano, muitas polêmicas se abriram. Toda uma trupe de coloridos assumidos teve acesso à casa. Inúmeros preconceitos foram abertamente expressos: homofobia, machismo, preconceito racial, informações deturpadas quanto o contágio da AIDS. Além de barracos eventuais , erros imperdoáveis emitidos em inúmeras informações e uma mal-educação reiterada por parte de alguns membros do BBB. Houve protestos, a Globo teve que , por ordem judicial, se retratar algumas vezes, reafirmando que as opiniões dos membros da Casa não eram, necessariamente, a opinião da emissora, embora ela servisse ali de amplificadora para muitas sandices.
Vamos refletir um pouco sobre a questão. Primeiro, no que se refere à responsabilidade da promotora do BBB. Acredito que a cúpula da emissora não tem opiniões tão retrógradas sobre muitas questões levantadas pelos participantes do Reality Show. Só que, no momento em que se promove um programa deste quilate, com regras claras e bem estruturadas, sabe-se que este risco existe, logo à emissora se deve imputar a responsabilidade de servir de um disseminador de verdades questionáveis e opiniões deformadoras e deturpadas.Em segundo lugar, há de se concluir que tudo que ali foi dito, em tempo real, não é muito diferente do pensamento médio do brasileiro comum. Basta ouvir papos em rodinhas de praia e mesa de bar. A homofobia ainda está bem sedimentada entre os brasileiros, o analfabetismo funcional é evidente, o machismo é arraigado, o preconceito étnico ainda é uma realidade. Como do outro lado da telinha, existe uma concorrência desleal em busca do trono; os homens usam muitas máscaras e as amizades ,a maior parte das vezes, se alimenta de conveniências.
O mais preocupante, no entanto, é que , no caso do BBB, a população é quem escolhe os vencedores. E quem ela manda para o trono ? Os carreiristas, os desonestos, os brutamontes, os mal-educados, os trapaceiros. Narciso encanta-se com a própria imagem no espelho. O problema maior é que quando a casa do BBB se estende por todo país, a votação se repete. Basta vir a eleição e elegemos um sem número de corruptos para assumir o cargo do Grande Irmão e do seu Ministério. Depois, nós mesmos nos pomos a reclamar dos desvios, das falcatruas, dos combinemos por baixo dos panos. Se a imagem refletida no cristal é feia, deve-se providenciar a plástica, não adianta apenas quebrar o espelho para resolver o problema.



01/04/10