sexta-feira, 26 de março de 2010

Quim-Quim

Pouco tinha do estereótipo de um guru indiano. Baixinho, atarracado, cabeça de cearense com olheiras pronunciadas ; cabelo ralo com grandes entradas laterais. Parecia uma caricatura de si mesmo, uma espécie de amigo da onça. Visto ao longe , concluir-se-ia tratar-se de um chapeado, um carregador de encomendas. Tirante os olhos profundos e perscrutadores, nada havia de especial ou transcendental naquela figura. Morava num bairro pobre, a Vila Lobo, numa casinha humilde e sem muito conforto. Descendia , porém, de uma ala muito mística dos Bezerra de Menezes que teve em suas hostes meus tios João e Estácio provindos todos de uma ascendência nobre : o cultuado kardecista, do Riacho do Sangue, Dr. Adolfo Bezerra de Menezes.
Chamava-se Joaquim, mas ninguém o conhecia por este nome, mas por um outro bem mais doce e artístico: Quim-Quim. A cidade , nos anos 40-60, antes do advento da TV, do Computador, do DVD, ainda vivia imersa num Big-Brother particular. O mundo , ainda sem energia elétrica, povoava-se de caiporas, duendes, pais-da-mata, sacis-peperês. As doenças deste mundo eram causadas, o mais das vezes, pela influência misteriosa de muitas forças malignas: o zodíaco, a inveja, a coisa-feita, o mau-olhado,as pragas, as maldições, o feitiço, a ziquizira, o caboje, o olho-gordo. Nossos livros populares de patologia estavam repletos de muitas moléstias perfeitamente preveníveis: o quebranto, a espinhela-caída, a apoplexia, o defluxo, o ventre-caído. Os médicos ainda se mostravam raros pelo interior do Nordeste e os rezadores, assim, num misto de pajés, encantadores de serpente, milagreiros, utilizando um ritual profundamente sincrético, atendiam à população nos seus anseios mais prementes. Quim-Quim desdobrava-se no atendimento às mordeduras de cobras de homens e animais, às infecções intestinais e respiratórias das crianças, às moléstias as mais variadas da terceira idade. Tinha orações fortíssimas para os entalados com espinhas de peixe. Nas doenças de fundo emocional, então, a força do ritual de suas preces possuía um efeito invejável na cura das neuroses mais comuns. Era de arrepiar vê-lo em transe, sussurrando as palavras milagrosas: “Gloriosos São Sebastião e São Jorge, São Lázaro e São Roque, São Benedito, São Cosme e São Damião. Todos Vós, Bem-aventurados Santos do céu, que curais e aliviais os enfermos, intercedei junto ao Senhor Deus pelo seu servo .Vinde, Gloriosos Santos, em seu auxílio. Fechem-se os olhos malignos, emudeçam as bocas maldosas, fujam os maus pensamentos e desejos.”
Um dia a luz elétrica invadiu o mundo, espantou a lua e tangeu para longe nossos mitos ancestrais. Aparentemente se desvendaram os mistérios do mundo com o telescópio, o microscópio, o computador. A Medicina utiliza-se de um sem números de modernos instrumentos para tratar moléstias antigas e fabricar a cada dia novas patologias e novos medicamentos. A morte a vista se substituiu por um longo velório em caras prestações diárias. Hoje nossos temores são bem mais objetivos e reais : a violência urbana, o stress de todos os dias, o trabalho de todas as horas. A plástica e o Viagra nos remetem ao mito da fonte da juventude. A humanidade aumentou em muito sua esperança de vida, mas consegue ser mais feliz nestes anos que lhe foram acrescentados? Quim-Quim hoje está bem presente nos livros de auto-ajuda e nos divãs dos analistas , mas já sem a mesma eficácia de outrora.

JF - 26/03/10

quinta-feira, 18 de março de 2010

Chicote Queimado


Esta semana, em Fortaleza, a jovem empresária Marcela Montenegro foi morta numa tentativa de assalto. Uma família abalada autorizou a doação de órgãos terminando por beneficiar seis pacientes que, desesperadamente, aguardavam na fila de transplantes. Há que se louvar a força de familiares que, em meio a uma tragédia desse vulto, conseguem, mesmo assim, dar a volta por cima e transformar a dor e a revolta num ato de profunda solidariedade humana. Em meio à violência cotidiana, ficamos atônitos, na certeza de que é tênue a linha divisória entre o meu bem-estar e minha infelicidade . Eles dependem de meros fatos aleatórios e imprevisíveis. Parodiando Kipling , percebemos : quando se imola uma vida , de alguma maneira, se destrói o mundo. Postamo-nos todos, no meio da rua, buscando soluções para a guerrilha urbana que se vem instalando nos grandes centros populacionais. O mais das vezes, as propostas , emanadas no calor da paixão, trazem consigo um ranço vingativo que faria enrubescer o Código de Hamurabi. No caso da Marcela, há um perigoso agravante: a participação de um menor de 11 anos no assalto. Imediatamente nestes casos, salta em todos os noticiários a discussão interminável sobre a maioridade penal.
As justificativas para a diminuição da maioridade são amplas e repetitivas. Crianças com 15, 16 anos sabem perfeitamente o que estão fazendo, já podem inclusive votar e saem por aí dirigindo veículos. Por que , em caso de crimes cometidos, devem ser tratados como guris de berço, amparados e liberados rapidamente como se nada tivesse acontecido? Um tio da Marcela lembrou inclusive a condenação nos EUA à pena de morte, recentemente, de um menor homicida. Na Inglaterra, também, sabe-se de vários julgamentos à prisão perpétua para infratores juvenis. Por que só no Brasil isso não é permitido ? -- bradam os programas policiais. Cientes dessa aparente impunidade, bandidos aliciam menores para participarem de suas paradas e , em caso de morte de vítimas, colocam a culpa do homicídio neles , já que praticamente não respondem processo e , no máximo com dois anos, independentemente da gravidade do delito, estarão de volta às ruas. Reconheço que muitos desses argumentos são fortes e irrefutáveis e impossíveis de serem destruídos, máxime em momento de revolta e ânimos exaltados. Sei, também, que é bem mais fácil encontrar caminhos mais pacíficos quando o holocausto ainda não bateu à nossa porta.
Pois bem, vou meter minha passadeira nessa gamela. Vou desfiar algumas reflexões pessoais sobre o assunto. Sei perfeitamente que há menores violentos em todas as classes sociais, mas no Brasil ao menos, os infratores juvenis são quase sempre aqueles das classes mais desfavorecidas. São órfãos de escola, de saúde, de moradia, de cidadania e dignidade, de pais e de país. Criaram-se numa selva terrível onde tiveram que adquirir meneios de chacais para poder sobreviver. Talvez, por isso mesmo, tenham amadurecido tão rápido e já pareçam velhos e truculentos ainda na adolescência. Vêm armados para cobrar uma conta que sabem perfeitamente que a nação lhes deve. Como levá-los a julgamento , se a sociedade que os vai julgar não lhes concedeu as oportunidades necessárias para viverem condignamente? Como compará-los aos adolescentes dos países desenvolvidos a quem a maior parte das vezes foram fornecidos todos os ingredientes para um desenvolvimento humano saudável? E se fôssemos reduzir a maioridade penal, de que adiantaria? Em que idade a fixaríamos? Vejam que um dos assassinos da Marcelo tinha apenas 11 anos. Os bandidos imediatamente passariam a aliciar menores agora já na nova menoridade penal. Reduzir a maioridade penal é tão inócuo como vender a cama para evitar o adultério ou derrubar a casa para solucionar o problema da violência doméstica. E mais, se pena de morte resolvesse o problema, ele já estaria sanado, pois ela já existe extra-oficialmente. Todo dia o noticiário policial está prenhe de execuções de jovens por policiais, justiceiros e traficantes. E o pior é que essas mortes são veiculadas pela mídia com uma naturalidade impressionante, como se fosse uma coisa normal e previsível, quase pedagógica. No Brasil não há socialismo nem na morte. Até 2012 calcula-se que 34.000 jovens serão assassinados, nas 267 cidades brasileiras com mais de 100.000 habitantes, uma média de 13 adolescentes imolados a cada dia.
Soluções simplistas e milagrosas não existem e não surtirão efeito maior. A repressão apenas é inócua. Há que se revolver as raízes do problema que se encontra encravado nas nossas imensas desigualdades sociais. A resposta não está na razão da criança ter amadurecido já aos quinze anos sendo assim imputável, mas no porque lhe terem arrancado a infância a fórceps e forçado a se tornar um adulta antes do tempo. Ele procura na rua aquele menino que esconderam dele como a um chicote queimado . E a única ajuda que a sociedade parece lhe dar é gritar sem nenhuma convicção um tá-quente-tá-frio .


17/03/10

quinta-feira, 11 de março de 2010

A Patota

Sei que a gíria é meio obsoleta , meio bandeirosa, mas que jeito? Eles vinham juntos desde os bancos de escola e era assim mesmo que denominavam a turminha : A Patota! Vararam, durante a juventude, os cursos primário e secundário sempre unidos . Foram companheiros inseparáveis no futebol, nas tertúlias , nas bebedeiras de fins de semana. Com o passar dos anos, alguns tiveram que procurar a extensão dos estudos na capital, outros terminaram ficando ali, ganhando a vida no comércio ou como barnabés. Mantiveram, no entanto, o pessoal unido, sempre se juntando em fins de tarde e de semana. Aos poucos, quando os que tinham ido estudar fora começaram a voltar, com o canudo embaixo do braço, o grupo rapidamente se refez. Testemunhas de uma mesma gloriosa geração, nada os conseguiu separar: tempo, nível escolar, condição econômica. Inconscientemente, percebiam que o quebra-cabeças da história da vida de todos dependia de cada pecinha que os membros da patota guardavam cuidadosamente, como uma espécie de Santo Grall. O torvelinho da vida tentou em vão dispersá-los. Paulatinamente foram casando, constituindo família. Esperava-se um afastamento maior da turma, até porque lhes manchava o currículo uma longa folha corrida de bebedeiras , de boêmia desenfreada, de raparigagem reiterada. E a cidade era pequena e conhecia muito bem toda a trupe e suas peripécias. Ao que parece, no entanto, havia uma acordo tácito entre todos. Ainda no noivado, as coisas eram deixadas às claras com a futura esposa: exigia-se um aditivo ao contrato nupcial rezando a total impossibilidade de se dissolver a Patota. Algumas mais ciumentas que acataram as exigências no início e, com o passar dos dias, tentaram arrancar os maridos dos encontros, o que mais conseguiram foi destruir o casamento.
Havia algumas esposas mais inteligentes e que ao invés de lutar contra a maré, procuravam se aliar ao inimigo. Tentavam se integrar às reuniões da patota, coisa bastante complicada, pois aquilo sempre fora uma espécie de Clube do Bolinha. A Patota desenvolvera vacinas contra estas possíveis investidas. Estabeleceram atividades lúdicas variadas, insuportáveis para o sexo feminino: carteado que varava noite adentro, rachas futebolísticos, alpinismo em morros próximos, encontros em botequins de periferia. Até uma adesão em massa à ‘Loja Maçônica Gurreiros Espartanos” se projetou, com a certeza que ali mulher, definitivamente não tem acesso e, mais, o segredo não pode, em nenhuma circunstância, ser quebrado. Estas atividades iam, periodicamente, se revezando. A última invenção havia sido a da maçonaria que acabou por terra quando Dona Diva , a esposa de Argemiro, um dos principais dirigentes da Patota, acabou tendo uma surpresa. O marido estava promovendo festas brancas em uma outra casa e já tinha um exército com três bravinhos guerreiros espartanos.
No sábado, na reunião no botequim de Godô, a Patota viu-se na necessidade de mudar a tática. Estabeleceu, então, a pescaria de fim de semana. A idéia não podia ter sido melhor. Deslocando-se sempre para lugares inóspitos, em beira de açudes distantes da cidade, mulher nenhuma queria acompanhar um esporte radical daqueles. Algumas até que tentaram segui-los por ciúme e curiosidade, mas não passavam da primeira tentativa. O frio, o cansaço, os mosquitos, o despescar das redes que varava a noite, a dormida incômoda, a bebedeira da turma, quem diabos lá agüentava uma coisa daquelas? Quando alguma patroa mais renitente resolvia ir, a coisa andava conforme o figurino. O mais das vezes, no entanto, a pescaria rapidamente se desviava para as orgias de sempre : cachaça e mulheres. Aquela , certamente terá sido uma das desculpas mais duradouras da Patota e durou muitos anos. Tanto e tanto que seus membros, aos poucos, passaram a descuidar dos álibis necessários.
Semana passada, Quintiliano já ia chegando em casa, quando lembrou que não levava uma piaba sequer como produto da sua pescaria de todo final de semana. Correu rápido ao mercado e comprou uns três quilos de pescado. Chegando a casa, uma Dalva desconfiada o esperava à porta. Nosso Martim-Pescador, com cara de cansado, a entregou-lhe o saco, não sem antes explicar que o lugar da pescaria, lá em Lavras da Mangabeira, quase não tinha peixe, estava quase batendo piaba. Dalva, com olhos de Sherlock Holmes, revolveu o saco e , com uma purga atrás da orelha, começou o interrogatório:
--- Que diabos é isso, Quincas? Peixe congelado? Em Lavras, aquele departamento do inferno?
Quintiliano, rápido no gatilho, emendou:
--- Tá doida, mulher ? A gente leva uns isopores grandes cheios de barra de gelo. Lá dentro do mato, não tem geladeira não. Se deixar sem gelo, o peixe apodrece...
Dalva, no entanto, seguiu o interrogatório :
--- Quincas, mas é estranho! E esse carimbo de S.I.F. aqui no peixe ? Que diabos é isso, homem de Deus ?
Quintiliano, agora já mais apreensivo, vendo-se perdido, buscou rápido, uma explicação:
--- Mulher, deixa de ser desconfiada! Não viu na TV, não? O Ministério da Agricultura ta fazendo um recenseamento de todos os peixes dos açudes do Brasil e ta carimbando um por um. É no que dá só assistir novela !
Dalva, no entanto, tinha técnicas de delegado na investigação. Mexeu os peixes no saco, para um lado e para outro e mandou a cartada final:
--- Certo, Quincas, mas o peixe que você pescou, meu filho foi cavala... que coisa mais esquisita... peixe de água salgada... onde é que existe este mar aqui por perto ? Tou doida para pegar uma praiazinha e não sabia desse braço de mar neste fim de mundo !
Nosso pescador tremeu nas bases e, quando parecia já como menino pego roubando a mariola, lascou o único álibi que lhe pareceu possível:
--- Lá vem você com suas ironiazinhas de novo ... Mais desconfiada do que cachorro em noite de São João ! Eu tava era em Lavras da Mangabeira, sua doida! E pescando sabe onde ? No Rio Salgado !
Armou uma cara de revolta e saiu sem conseguir suportar o peso das injustiças desse mundo. Desde então, veja como são as coisas, Dalva anda trombuda, com cara de elefante. E , pelo sim, pelo não, a Patota resolveu , por unanimidade, alterar a pauta das próximas reuniões da turma. A partir da próxima semana estão enveredando pelo ramo das caçadas. Chegaram à conclusão que o IBAMA é menos perigoso que as rodilhas de jaracuçu que eles andam criando em casa.


11/02/10

quinta-feira, 4 de março de 2010

Mibsan


"Não é o diploma médico, mas
a qualidade humana, o decisivo."
(Carl Gustav Jung)

Para quem acredita em numerologia, em determinismo nominal , fatalismo e outras centopéias esotéricas, o noticiário da semana passada encheu-nos a mesa com um cardápio variado. Vejam só os nomes : Orozimbo Ruela de Oliveira Neto e Sinomar Ricardo, de uma cidade chamada de Ivinhema ! O encontro de tantas consoantes e vogais dissonantes, previa-se sem necessidade de oráculos, terminaria em descompasso e desafino. Não deu outra! Estes dois, médicos em Mato Grosso do Sul, protagonizaram uma cena de que nunca tive notícia nos meus trinta e três anos de exercício da Medicina. Sinomar, plantonista do dia, partejava a costureira Gislaine de Matos, quando um Orozimbo enfurecido invadiu o Centro Cirúrgico, sob pretexto de que a parturiente lhe pertencia e, após uma discussão reles e violenta, terminaram por se engalfinhar num embate físico digno de filmes de faroeste. Enquanto isso, Gislaine permanecia sem nenhuma assistência ao parto, culminando com a morte do bebê que se chamaria Mibsan ,numa tragédia que poderia ter saltado do teatro grego. Toda a briga envolvia a importância de pouco mais de cem reais que é o valor astronômico que o SUS paga ao profissional por um parto. Sinal dos tempos?
Esta cena parece ficção científica para toda uma trupe de médicos da minha geração e anteriores a ela. Formamo-nos com a idéia fixa da Medicina como um sacerdócio, o paciente posto nos altares e andores. O cliente , nos foi ensinado, não tem condição social, cor, raça, geografia, história, cidadania, bondade ou maldade no coração. Ele é apenas o paciente, a quem devemos tratar e buscar a cura com todos os instrumentos e conhecimentos científicos que tenhamos às mãos. Devemos ter o mesmo desvelo para com aquele que tem condições de pagar pelo tratamento quanto por aquele que nos agraciará apenas com o sorriso e o agradecimento. Operaremos com o mesmo cuidado o criminoso de alta periculosidade e sua vítima inocente, deixaremos para Deus e os juízes o ato de julgar. Sequer receberemos diretamente dos doentes o pagamento pelos serviços prestados, secretários ficam encarregados deste mister, afinal um consultório não é uma loja comercial ou um balcão de banco. Sempre existiram, ainda, fortes preceitos éticos que norteavam a convivência dos colegas, delimitando-se espaços e funções. Se não conseguimos uma relação humanística entre nós próprios, como o humanismo fluirá até o objeto maior da nossa profissão que é o paciente? Como se explicar, pois, a loucura estampada nos noticiários, na semana passada?
Permitam-me meter minha colher de pau neste alguidar. Infelizmente, o quadro que temos hoje no país, é bem diferente do exposto acima. O avanço científico dos últimos cem anos impulsionou a Medicina para horizontes jamais imaginados: transplantes, clonagem, fertilização in vitro, cirurgia robótica, diagnósticos sofisticados por imagem, medicamentos moderníssimos aumentaram a expectativa de vida de forma vertiginosa. Aos poucos, no entanto, o tecnocracismo invadiu nossa atividade e nos fomos afastando do humanismo. É como se fôssemos uma espécie de técnico em eletrônica. Esquecemos que o homem, objetivo da nossa arte, é uma máquina muito mais complexa do que um PC ou uma TV. Hoje , rimos ao ver o tratamento primário feito pelos médicos do início do Século XX, com suas ventosas, sangrias e cataplasmas. Eles, no entanto, estavam próximo ao coração dos seus clientes, conheciam suas ansiedades, angústias e apreensões, sabiam que por trás da gastrite existia o conflito, além do câncer sobrenadava uma alma. Percebo, claramente, que geração após geração, fomos perdendo o elo com o humanismo. E a ética, amigos, é uma ilha no mar do humanismo. Escolas médicas pululam por todos os recantos do país.Muitas sem qualquer qualidade. Formamos técnicos ótimos em muitos casos, mas não formamos médicos. A ética, hoje, é uma disciplina longínqua, distante e parece não ter nada a ver com nossa profissão. Ela, no entanto, é o cerne não só de nossa atividade, mas da sobrevivência do planeta.
Desde o ensino fundamental é moldada no seio da juventude uma concorrência terrível, uma competitividade sem freios. Parece até que treinamos Pit-Bulls. O companheiro do lado é apresentado como o inimigo, aquele que vai tomar o seu lugar ao sol e à sombra. Formamos soldados e não cidadãos. Um colega não ajuda ao outro, não lhe passa as lições, não lhe empresta mais o caderno. Ninguém avisa que vai haver um concurso, rasga sorrateiramente o edital colado no flanelógrafo para que o amigo não tome ciência e concorra. As turmas de faculdade dividem-se em grupinhos e cada um luta por si. Sequer as festas de final de curso contemplam todos os colegas. Preferem superproduções caríssimas com um pequeno número de ricos participantes, em detrimento de uma festa mais simples que pudesse contemplar a todos os formandos e seus familiares. Esta é a corrida de poucos vencedores e inúmeros perdedores. Ao vencedor o enfarte !
Orozimbo e Sinomar devem pois estar se sentindo injustiçados. A briga foi apenas mais uma batalha em busca do Shangri-lá e para isso foram formados. E nas batalhas sempre há baixas, neste caso foi apenas o Mibsan que tombou e a Gislaine que saiu ferida. Por que a sociedade os condena, se aprenderam todos os avanços da sua especialidade nos últimos congressos? Mibsan terá sido sacrificado para aplacar a fúria do Deus mais poderoso da atualidade: o consumo. Orozimbo e Sinomar nem sequer percebem que não apenas sacrificaram o bebê, mas feriram de morte a profissão para a qual deveriam ter sido formados. Nestes dias uma cadeira de Artes Marciais fará parte da grade curricular. Percebo, também, que estou ficando velho, pois sou ainda daqueles que acreditam que apesar de todo o desenvolvimento dos meios de diagnóstico e tratamento dos últimos tempos, a Medicina continua sendo não uma Ciência, mas uma Arte.


J. Flávio Vieira