quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Teias

Ludmilla, mal havia pulado dos bancos da faculdade de psicologia, arranjara aquele emprego. Lá se encontrava por mais de cinco anos. O salário não representava muito, mas carregava aquele glamour do primeiro trabalho . Por outro lado, se tratava de uma pequena fábrica de confecções, cabia-lhe a assistência psicológica a umas cento e vinte almas. Nada além do cardápio trivial de qualquer empresa : stress, problemas de relacionamento doméstico, conflitos de colegas em serviço. Comprovara, rapidamente , a máxima : de louco todos temos lá a nossa cotinha. A maior parte das vezes, a simples conversa já aliviava os funcionários de suas tensões. Ludmilla, trabalhando tão próximo a tecelões , aos poucos percebeu que a vida tem lá suas similaridades com aquela nobre arte. Também, nós, vamos tecendo uma imensa rede de contatos e relacionamentos. O desenho final do bordado depende da habilidade de cada um. Muitas vezes terminamos por criar teias em que nós próprios nos enredamos e terminamos fisgados pelas armadilhas que nós mesmos preparamos.
Naquele dia, já de tardizinha, procurou o consultório um mecânico especialista na manutenção de máquinas de costura. Alto, meio desengonçado, desconfiado como cachorro em noite junina. Chamava-se Elesbão. Contou então o motivo da sua visita . Estava casado há 15 quinze anos com uma mulher muito legal, mas valente e ciumenta como galinha de pinto novo. Não tinham filhos. O problema é que há uns três anos mantinha um colete com uma outra moça bem mais nova e que conhecera ali mesmo na fábrica. Vivia , agora, assaltado pelo terrível fantasma da culpa e do medo. A cada dia o cerco parecia ir se fechando e temia o desfecho que poderia resultar em morte ou capação. Ludmilla tentou orientá-lo pelos dois caminhos possíveis: antecipar-se e contar tudo à patroa, assumindo as conseqüências ou encerrar o namoro com a amante. Elesbão prometeu pensar e decidir. Desapareceu, como por encanto.
Uns três meses depois ele retorna ao consultório ainda mais sobressaltado. Contou à doutora que ainda não tinha tomado uma decisão, mas que mesmo assim a coisa havia piorado muito. Ludmilla perguntou se a esposa havia descoberto a tramóia. Elesbão respondeu que era bem pior : a amante estava grávida. A psicóloga então se sobressaltou: agora a porca havia torcido o rabo e apartado. Juntava-se à traição, a terrível frustração da esposa estéril ter sido substituído por outra fecunda e , pior, bem mais nova. Ela, então, informou que agora só existia uma vereda a ser trilhada: contar à esposa. Elesbão ainda resmungou , contrargumentou, mas terminou se convencendo da terrível sinuca de bico. Deixou o consultório como quem caminha para o cadafalso.
Dias depois, no natal da fábrica, a nossa psicóloga topou com o nosso mecânico e a esposa na solenidade. Ele já havia espantado o anjo da guarda e sua corte. Melado, apresentou a patroa à doutora e explicou, com voz meio pastosa:
– Doutora, seguí suas orientações, contei tudo a ela e fui perdoado. A senhora salvou nosso casamento!
Ludmilla pareceu feliz e os cumprimentou , mas sua sensibilidade feminina leu nos olhos da esposa, ainda um certo travo, uma raiva contida com dificuldade. Percebeu que a bomba ainda não tinha sido desarmada: apenas tinham aumentado um pouco o tamanho do estopim. Passaram-se alguns meses e, de repente, Elesbão retorna ao consultório, com ar de preocupação. Informa à psicóloga que a coisa voltou a complicar e solta a bomba: resolvera casar com a amante. Fora pressionado, o menino nascera e não queriam deixar o inocente como mais um “filho de guaimum”. A doutora se sobressaltou: “Tá doido, rapaz! Agora você cometeu um crime! Bigamia dá cadeia, entendeu?” Elesbão, no entanto, esclareceu mais uma vez a questão. Vivia maritalmente com a esposa oficial há quinze anos, mas não era casado oficialmente com ela. Ludmilla, então, saltou dos seus tamancos e lembrou a ele que agora a coisa havia tomado dimensões muito mais perigosas. Quando a esposa constatasse que a quenga agora era ela e não a amante, o circo seria incinerado sem deixar vestígios. Elesbão saiu da psicoterapia com ar de rato que foge da perseguição do bichano.
Passados uns três meses, lá volta nosso mecânico ao consultório. Conta que a doutora tinha razão, a esposa descobrira sua nova e desconfortável condição e armara um barraco terrível. Ele, então, havia resolvido tudo: deu entrada na separação judicial da amante, mas claro, continuava ainda com ela, até por conta da criança que não tinha culpa de nada. Um ano depois, adentra novamente no consultório e informa que havia se divorciado da amante, por fim e casado com a esposa oficial: “passamos o papel!” A psicóloga acreditou que , finalmente, tudo chegara a um bom termo. Lembrou que ela também havia se separado recentemente, que as coisas eram assim, casamento tinha prazo de validade, como qualquer outro produto perecível e desejou felicidades mil ao novo/velho casal.
Ludmilla ficou atônita quando uns cinco meses depois topou novamente com Elesbão na fila do consultório. Que poderia agora ter acontecido? Chegada a sua vez, ele relatou os últimos fatos. A coisa tinha piorado de novo. A amante tinha até suportado a separação, mas quando soube do casamento com a esposa, rodou a baiana. Voltara a ser novamente a outra, a rapariga de Elesbão. Acabou o relacionamento. E, pior, arranjou um outro marido, um refil. O mecânico estão ficou triste pelos cantos, capiongo, perdera a graça de viver. Não só por perder a amante de tantos anos, mas pelo afastamento do filho com quem já havia se afeiçoado. O clima em casa começou a ficar mais turbulento e não deu outra: resolvera se separar da esposa, tinham apartado os trapos! Ludmilla não conseguira mais entender a intrincada teia de fios tecida por Elesbão:
--- O senhor parece uma aranha doida! Criou um labirinto tão inlinhado que terminou perdido no meio dele! Sinceramente, eu não vejo saída não! Agora , é dar a volta por cima, por as coisas nos seus devidos lugares e tentar rearrumar a vida, enquanto é tempo!
Elesbão fitou a doutora com aqueles olhos pidões de cachorro em churrascaria. Puxou, então, o primeiro fio da nova teia:
--- Doutora, se mal pregunto, já que a senhora também está desimpedida, não estaria a fim de um relacionamento estável e sincero?

29/10/09

domingo, 18 de outubro de 2009

Coxinhas

Vejam só como são as coisas! De um lado existem aqueles pábulos que vivem cagando uma goma danada. Tudo na vida deles é perfeito. Afortunados, dizem possuir os cargos mais importantes,as mulheres mais bonitas, os melhores carros, as melhores casas e gozar da amizade do papa, de Obama, de Bill Gates. Na outra extremidade, há os anti-heróis: aqueles que gostam de narrar o próprio infortúnio, o azar, os desencontros de todo dia. Estes últimos são bem mais verdadeiros. Têm o cuidado de compilar cuidadosamente os desacertos cotidianos e contam tudo sem necessitar de lupa, de lente , de aumento : Ah ! Isso só podia acontecer mesmo comigo! Já o contador de vantagem, raramente o faz assentado em fatos reais, com freqüência usa as molas propulsoras da ficção para temperar suas histórias e inflar o próprio ego, às custas da paciência dos outros. Mesmo quando há verdade nos seus relatos , sua presença é incômoda. O anti-herói é mais palatável e menos chato que o “caga-goma”.
O leitor, certamente, deve conhecer vários personagens que podem ser incluídos em qualquer um dos grupos. De outra feita já me detive um pouco no estudo da pabulagem desenfreada que aqui entre nós fornece material para um verdadeiro tratado. Aproveito este sábado para desenterrar a outra face da moeda. Inspirado talvez em Fernando Pessoa que já havia gritado ao mundo no seu “Poema em linha reta” : Arre, estou farto de semideuses! / Onde é que há gente no mundo? Pois bem, hoje vamos falar de pessoas capazes de pecados, de enxovalhos, do ridículo, da vergonha, do atropelo, do achaque. Gente !
É que a vida, amigos, esta enxurrada de surpresas, é muito mais escrita em curvas e encruzilhadas do que na perfeição inflexível da semi-reta. E, se existe uma mão superior que traça os destinos e consegue pôr retidão em fatos desencontrados e estapafúrdios, para nós , simples mortais, esta planície é, a maior parte das vezes, perfeitamente imperceptível. Sobram-nos os vales e as depressões.
Chamava-se Zenaldo. O próprio nome, meio grego, como que previa uma primeira ironia que o haviam lhe pespegado logo no nascimento. Zenaldo colecionava suas gafes desde a infância e as contava sem nenhuma raiva, sem nenhum remorso, e, mais : sem demonstrar quaisquer sinais de predestinação. No íntimo sabia que os atropelos existiam igualmente entre todos, a única diferença é que uns relatavam, como ele, e outros não. Pois vou contar uma das suas clássicas histórias. Estudava Medicina em João Pessoa. Viera passar as férias no Cariri, em julho. Terminada a exposição, arrumou os teréns para a viagem de volta. Pegou o velho ônibus, o famoso pinga-pinga. Aquele que não pode avistar ninguém próximo à estrada que pára tentando convencê-lo a viajar. Pois bem, ia sentado junto com um colega, ele do lado da janela. O Cata-Corno, como o ônibus é carinhosamente chamado entre os estudantes, ia fazendo suas paradas regulares nas diversas cidades : Juazeiro-Barbalha-Missão Velha-Milagres, etc. O percurso prometia. Iam entrando várias colegas, igualmente de volta aos estudos na capital paraibana. Zenaldo começou a esticar os olhos para uma e outra, enquanto , passou a endereçar o papo com o colega vizinho para uma área mais específica dos seus estudos, num tom um pouco mais alto que o normal. Uma técnica que devia ter aprendido com os camelôs. Na parada em Barro, resolveu exercitar uma modalidade radicalíssima de esporte: o salto por sobre a coxinha de rodoviária. E existe coisa no mundo mais perigosa ? Fabricada sabe-se Deus como e quando, o usuário, de passagem, sequer tem o direito sagrado de voltar e reclamar no DECON. A bomba relógio , armada no seu tic-tac incessante, vai acabar o estopim bem adiante, bem longe do raio de ação do vendedor.
Passando em Cajazeiras, Zenaldo começou a sentir as primeiras contrações do parto. Subestimou a carga de megatons que carregava na barriga e continuou se enxerindo para as colegas, fazendo gracinhas, soltando chacotas e piadinhas. Lá para as tantas, veio uma contração um pouco mais forte. Ele imaginou tratar-se apenas de uma lufada de vento intestinal. Temeu pelos odores que poderiam denunciar , mas, de qualquer maneira, seria impossível culpar alguém. Não haveria provas suficientes para imputar o crime a qualquer um dos cinqüenta e tantos passageiros da sopa. O grande problema é que a bomba H armara-se com nitrogênio líquido, Zenaldo se abestalhou com o controle de qualidade e a pressão do turbo. Ao invés da nuvem de fumaça química, a contração fez nascer um afluente do Rio Grangeiro, com suas águas turvas e pútridas. Zenaldo, literalmente, borrou-se todo. A seqüência de fatos, a partir daí, é bem previsível. A fedentina tomou de assalto a lotação. Zenaldo suava em bica. De repente os passageiros gritavam : “Ei, fecha a porta do banheiro aí, pessoal, que alguém morreu lá dentro e não foi enterrado!” Afastada a possibilidade da contaminação vir do banheiro, todo mundo começou a virar os pés e observar cuidadosamente se os sapatos não estavam calebreados de binga. Zenaldo, cada vez mais tenso, descobriu que as possibilidades se esgotavam. Cochichou, então para o colega vizinho e contou a tragédia ocorrida. Pediu para ele tirar uma toalha da bolsa que estava no bagageiro logo acima. O colega solidarizou-se com ele e cumpriu o pedido. Chegando em Patos, já sob a desconfiança geral dos outros passageiros, ele levantou-se, amarrou a toalha na cintura, tirou a bolsa e saiu, arrasado, sob o coro terrível e humilhante das meninas que pensara em conquistar:
---- Cagou ! Cagou! Cagou !
É , e não tinha sido goma ! Retirou o resto da bagagem. Avisou ao motorista que ia ficar por ali mesmo. Procurou um posto de gasolina próximo. Contou ao funcionário a tragédia acontecida e negociou um banho reparador. Jogou as roupas bombardeadas no lixo. Voltou para a rodoviária, novo, restabelecido, com a auto-estima de novo nas nuvens. Tomou o próximo ônibus como se nada houvesse acontecido. Quem sabe não lhe caberiam agora outras coxinhas , mais rechonchudas e menos reimosas ?

18/10/09

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Que trem é esse?

Hoje, quando percebemos a reforma dos trilhos da antiga RVC e a construção de novas plataformas, no aguardo – algo prolongado e enfadonho, reconheço – da revitalização da nossa linha férrea, pomo-nos a lembrar o papel do trem para nossa região. Ele teve uma importância vital na história da humanidade nos últimos duzentos anos. Imprescindível à Revolução Industrial , este veículo proporcionou o encontro de muitos povos e culturas, impulsionando o comércio, a agricultura e, permitindo um transporte mais rápido, catapultou a produção em diversos setores da economia. Sem esquecer que junto aos trilhos estendidos por quilômetros e quilômetros, um sem-número de vilas e lugarejos terminou por surgir e prosperar. Tudo começou de verdade com Blucher, um inglês, inventor da primeira locomotiva a vapor por volta de 1814. No Brasil, a invenção chegou quarenta anos depois, quando se inaugurou a nossa primeira locomotiva – A Baronesa – que ligava os quatorze quilômetros entre Rio e Petrópolis em 1854. No Crato, o primeiro trem aqui aportou em 08 de novembro de 1926, numa segunda-feira . Seus trilhos ataram a próspera cidade ao resto do mundo, abrindo horizontes jamais imaginados. Deixamos, num átimo, de ser uma ilha isolada quase completamente do resto do universo: mudou nossa relação com o mundo, transfiguraram-se hábitos e costumes. As viagens se viram facilitadas, o transporte de produtos comerciais, a comunicação, os livros, a moda, os jornais começaram a se tornar uma realidade cada dia mais presente. O trem abriu caminhos geográficos, mas também oníricos, históricos, culturais. Quando seus serviços, engolidos pelo progresso, começaram a ser descontinuados nos anos 70, ficou nos lábios dos cratenses um acre sabor , como se houvéssemos perdido um ente querido . Talvez tenha sido por isso que o nosso Biligüim gritava ao compasso da sanfona : “ Doutor, traga o trem de volta ! / Doutor, ele é o transporte do pobre!”
Pois bem, parece que seu grito foi por fim ouvido. O trem há de voltar, mais cedo ou mais tarde ( a segunda hipótese é mais provável). Claro que já não terá o glamour dos velhos tempos da Maria Fumaça. Virá com uma abrangência mais regional e com mais velocidade. Competirá com outros meios de transporte bem mais modernos: o ônibus, a topic, o carro, o aeroplano. A previsão visionária e artística do nosso Jonas , no entanto, parece ter sido nostradâmica : voltará, com certeza, o transporte do pobre.
O trem nos é tão próximo e singular que inclusive utilizamos este nome como um super substantivo concreto ou abstrato que pode significar qualquer coisa neste mundo. Que trem é esse? Bote os terém tudo no carro e vamos simbora ! Ele sentiu um trem e caiu durinho ! Imaginem, leitores, o mar de histórias que deve permear uma relação tão próxima de caririenses e a Maria fumaça! O Descarrilamento, o atraso, a perda do trem, o condutor, o maquinista, o chapeado, as estações, o vendedor de passagens... Tentei puxar pela memória algumas dessas histórias , contadas pelos grandes memorialistas da família e que , na sua maior parte, já tomaram aquele trem com passagem de ida para outras paragens. Aí vão algumas. Quem lembrar de outras, já sabe: entrou na perna do pinto...
Zé Praxede , um poeta popular,( aquele do "Dotô , inté outro dia...") tem um lindo poema que se passa em um trem. O condutor chega cobrando a passagem de um velho, sentado no vagão, para o devido picotamento. Aboletado na cadeira de trás, vai um compadre dele. O passageiro diz que não tinha dinheiro e não comprou . O condutor pergunta para onde ele vai e o velho responde que para Baturité. O funcionário, impassível, avisa que se não adquirir o bilhete vai ter que descer na próxima estação. O velho começa a chorar e diz que está indo para o casamento da filha única e que não pagou o bilhete por inteira falta de condição. Para não ver a filha casando prefere ter os olhos vazados e , se tiver que descer do trem, prefere que seja jogado pela janela, com o bicho em movimento, não tem mais sentido viver. O condutor, também pai, se sensibiliza. Meio penalizado diz tudo bem, que se for descoberta a liberação pode perder o emprego, mas vai fechar os olhos e permitir a viagem para uma causa tão nobre. Passa, então para a cadeira subseqüente e solicita a passagem ao compadre do outro. Passagem ?
--- Comprei não, meu senhor, eu vou inconvidado para a festa !
Outra : Padre Luiz Antonio, uma das figuras mais irreverentes do Cariri, estudava em Fortaleza, no Seminário da Prainha, ainda como seminarista. Menino pobre, encomendou o chapeado para levar seus pertences até à estação. Voltava de férias. Quando lá chegou, perguntando o preço do frete, o homem explorou: 10 mil réis. Luiz estrilou! Observou que o número da plaquinha do chapeado tinha exatamente o número dez e já debochou: -- Tá doido ? Vocês cobram é pela placa ? Se eu soubesse tinha procurado o chapeado número 1. O carregador parecia inflexível na negociação , Luiz, porém não aparentou pressa. Disse que pelo trabalho só pagava dois mil réis e estamos conversados. Entrou no trem e começou a arrumar as caixas no vagão, para a longa viagem de volta. A negociação continuava pela janela. A buzina do trem então soou pela primeira vez. O chapeado agoniou-se e baixou para sete mil réis. Luiz continuou inflexível. Na segunda buzinada, já mais vexado, o homem deu mais um desconto : -- Me dê pelo menos , cinco ! Luiz não se moveu. No terceiro e derradeiro apito, quando o trem começou a se mover, o carregador desesperado pulou na janela : ---- Me dê os 02, seu padre, tá bom! Luiz , então, jogou o combinado pela janela, comentando a importância que tinha o trem até nas negociações de dívidas.
O velho Mané Vieira, meu pai, gostava de contar uma outra potoca ferroviária. Um matuto andava de trem pela primeira vez. Mais desconfiado do que cachorro que cai de caminhão em noite junina. Precisou ir ao banheiro, no percurso da viagem. Lá, terminado o serviço em meio aos solavancos, viu uma pequena manivelinha e acreditou se tratar da descarga. Puxou ! De repente, aconteceu o maior reboliço. Aquilo era o freio a vácuo de emergência do vagão. O trem continuou em movimento com aquele carro travado. Um barulho ensurdecedor, faísca para tudo quanto é lado ! E trem para estancar vocês sabem como é : para parar em Senador Pompeu tem que começar a frear em Iguatu! O condutor chegou correndo no vagão travado e fez a maior confusão. Brigou, perguntou se o matuto estava doido e sapecou uma multa de cinco contos de réis, pelo transtorno. O pobre do homem, trêmulo, resolveu pagar. Tirou uma nota de dez contos e entregou ao funcionário. O condutor disse que não tinha troco, mas que antes de Acopiara lhe daria o resto do dinheiro. O tempo passou e nada ! Certamente o condutor , imaginando tratar-se de um caipora, concluiu que seria fácil engabelar o homem. Desapareceu! Como o multado deveria descer impreterivelmente em Acopiara, tchau ! O matuto aguardou e, como já se aproximava o destino, começou a se agoniar. Andava de um lado para outro e nada do funcionário da RVC. Já chegando perto de Acopiara, ele entrou novamente no banheiro e puxou a bendita manivelinha mais uma vez. Zoada, barulho, faísca novamente ! De repente, entra finalmente o condutor esbaforido em meio ao tumulto.
--- O que foi isso, agora ? Ficou doido, rapaz?
O matuto, sorridente, concluiu:
--- Num é nada não, só o troco , seu condutor !

08/10/09

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Dados

Permitam-me , leitores, começar esta croniqueta de sábado puxando um pouco pelas reminiscências. Quebrado o cabo das tormentas, inevitavelmente, pomo-nos a olhar cada vez mais para trás: o passado se vai tornando cada vez mais vívido. Aí, se precisa um grande exercício para não terminar como um índio velho , contando , eternamente , aos netos a história da sua tribo : Meninos , eu vi! Sei bem que à vida – vereda de mão única-- a gente deve dirigir, como se fosse um carro. Tem-se que olhar para frente, pois a estrada se estende para adiante e o caminho percorrido se desfaz à nossa passagem . Mas vez, por outra , é imprescindível dar uma olhadinha pelo retrovisor. Permitam-me, pois, esta rápida olhadela, prometo não incorporar o espírito de Sherezade.
Aí pelo finalzinho dos anos 70, nos últimos anos do curso de Medicina, eu dava um plantãozinho na Unidade Mista do Cabo de Santo Agostinho, próximo ao Recife. Num desses plantões, um colega que trabalhava conosco, chegou atrasado , o que não era fato corriqueiro. Todos estavam apreensivos , tínhamos todos que trafegar na BR 101 , rodovia perigosíssima ainda hoje , já duplicada. Chamava-se Freyre e possuía um fusquinha antigo que em Recife era carinhosamente chamado de Cururu. Passada umas duas horas ele, por fim, para alívio de muitos, chegou ao plantão montado no seu bólido. Vinha um pouco angustiado e contou-nos a razão do atraso e da ansiedade. A rodovia , em reforma, apresentava um pequeno desvio em terra batida. Estávamos em julho, tempos de chuvas torrenciais na zona da mata pernambucana. Freyre pegou o desvio , dirigindo cuidadosamente. Havia muitas poças de água pelo chão. Em sentido contrário ao seu, vinha um caminhão, carregando um trator na carroceria. Segundo ele , o motorista conduzia seu pesado veículo com calma e extremo cuidado. Freyre parou um pouco o fusquinha, esperando a passagem do outro carro com maior dificuldade de deslocamento. Ao emparelharem os dois, o caminhão precisou deixar uma das rodas dianteiras entrar dentro de uma poça. Coberta de água , não se podia mensurar a profundidade. Pois aquilo se tratava de uma boca de lobo, o caminhão pendeu e o trator, desequilibrado, tombou. Felizmente para o lado contrário ao do fusquete. Nosso amigo , ainda trêmulo, explicou : minha vida, hoje, dependeu do mero acaso, do lado imprevisível para onde o trator caiu. Se a poça existisse na outra margem, eu não estaria aqui contando esta história.
Freyre havia , rapidamente , descoberto a iniqüidade da existência. A frágil teia da vida depende de meros acasos. De muitos encontros possíveis e improváveis : De um homem com uma mulher; de um espermatozóide com o óvulo; da multiplicação perfeita e infinita de muitas células; da complicadíssima montagem do quebra-cabeças dos genes. Você pode até acreditar que existe uma mão poderosa que lança os dados, mas, por mais fatalistas que sejamos, é perfeitamente impossível prever o resultado do jogo. A vida, amigos, é , por fim, o somatório de muitos acasos a favor ou contra . Um balanço de encontros e desencontros aleatórios e insondáveis. O sol que resplandece à nossa frente neste sábado mágico depende do tsunami que não veio, do acidente que não aconteceu , do vulcão que não eclodiu, da placa tectônica que adormeceu; do H1N1 que não atacou. Sorte ou revés , azar ou fortuna são ladrilhos que atapetam, em igual proporção, as tortuosas e escuras trilhas da nossa passagem pelo mundo. Neste exato momento, onde nosso inconseqüente pé irá pousar?
O encanto desse instante , amigos, é único! A todo instante os dados são lançados no imenso tabuleiro da existência. Quem arrisca o resultado da próxima pule? Agora, eu sei que magicamente o sábado brilha para todos nós seu sorriso fosforescente. Espero que estas palavras tenham acrescido alguma luz ao brilho deste momento que não se repetirá. Logo mais o trator deve cair novamente da carroceria, prá que lado tombará?

01/10/10