quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Urucubaca

Aquilo era caié demais para uma semana só ! E nem tinha surrado o Dalai Lama, dado um sabacu em freira, insultado Chico Xavier ! Como tanta urucubaca assim caíra de repente em cima dele ? Não seria, por acaso, aquele nome horrível e profético de Caetano com que o haviam batizado que já começava com Caié? O certo é que o cocô do passarinho já lhe acertara o cocuruto, no início da semana, já batera o carro numa carroça e o carroceiro, meu senhor, não possuía um pau pra dá num gato ! Na terça, a esposa, escarafunchando sua gaveta, encontrara uma suspeita conta de hotel em Jericoacoara, em seu nome e acompanhante, de três anos atrás e que não fazia parte do arquivo oficial da patroa : cara trombuda e ameaça de separação. Na quarta, havendo sonhado toda a noite com o Clóvis Bornay, fechou a fezinha nas dezenas 94,95, 96 e 97 : veado. Fim do dia, deu 85 na cabeça : Tigre ! Se ao menos houvesse sonhado com o Leão Lobo, vá lá! Aquilo só podia ser praga de urubu, de sogra, de ex-mulher ou de mãe! Na quinta acordou com o oficial de justiça o intimando para uma audiência: a ex entrara com uma petição querendo aumento da pensão alimentícia. À tarde , a única boa notícia, mesmo assim atrelada a uma péssima: tinha em mãos a prova cabal de que não poderia ajudar a naja velha na sua solicitação : foi demitido do emprego de tabelião que já exercia há mais de 20 anos, por uma suposta contenção de despesas. Que despesa ? Tinta havia subido? Carimbo ? Caneta? Almofada? Papel? Com que diabo é que cartório gasta dinheiro? Imaginou que deveria sim ser demitido por justa causa e via estampada na sua Carteira Profissional a razão : Ziquizira!
A audiência de homologação do pontapé estava prevista para a sexta-feira. Acreditou que a via crucis finalmente havia acabado. Não existia a seu ver espaço para mais pé-frio. Topara! E quem sabe depois do tsunami não viria a calmaria? E foi pensando nesta possibilidade, de volta à casa depois do pé-na-bunda que nem prestou muita atenção na estrada e nas lombadas eletrônicas. No outro dia é que entendeu a música de Orestes Barbosa, “Chão de Estrelas” e aquele verso famoso: “Sinfonia de pardais anunciando o alvorecer”.
Terminada a audiência, na sexta-feira, recebeu em dinheiro a indenização demissional, na justiça do trabalho. Pois naquele dia mesmo, o “Ronda do Quarteirão” da sua área, fora atender uma ocorrência. Desceram da Hylux vistosa os soldados e entraram rápido na casa solicitante, aparentemente se tratava de uma ameaça de roubo. Saíram tão ligeiro para a ação que nem houve tempo de travar o veículo. Os ladrões que já deixavam a casa com o fruto do furto, pelos fundos, aproveitaram a oportunidade e carregaram também dois celulares do Ronda que estavam dando sopa dentro do carro semi-aberto. Pois bem, Caetano, de posse da grana que dava para começar um negocinho, temendo a reincidente urucubaca, resolveu ligar para o Ronda . Conhecia bem os soldados da sua área, eram bem legais e podiam dar uma mãozinha , escoltando-o, com segurança, até o banco, onde faria o depósito. Ligou e nem desconfiou do palavrório meio esquisito do pessoal. Contou a situação e foi prontamente atendido :
--- “Cara, dá um tempo, fica na tua aí, mermão, que nós já chega, num dá uma de otário, não ! Num vacila , não ! Se não a grana já era, sacou ?
Com uma meia hora chegaram uns caras estranhos, de bonezinho e montados em duas motos. Caetano ainda tentou voltar para o interior do prédio, mas sob a ameaça de dois berros, entregou o envelope com o dinheiro da indenização. Pronto, havia se fechado com chave de ouro a caiporice! Estava com uma mão no cano e outra no feixe!
Deprimido, resolveu pôr fim à vida. Subiu no viaduto, à noite , no sábado e pulou no escuro, de ponta, num salto desesperado e definitivo. Embaixo, no entanto, ia passando um caminhão transportando rolos de fumo vindos de Arapiraca. Caetano caiu de ponta no meio da carga. Ainda meio atordoado, no breu da noite, imaginando que acordara no outro mundo, caquiou os rolos de um lado para outro e concluiu:
--- É não adianta não ! Bem que o Padre Nosso diz : “Assim na terra como no céu” É fumo lá e fumo cá, meu senhor !

23/09/09

sábado, 19 de setembro de 2009

Maré Vazante

A meninada se espalhou pela areia da praia, como num parque de diversões. Manhã cedinho, no céu brilhava um sol reconfortante. Agasalhava todos do frio vento soprado pela bocarra do mar. Algumas meninas traçaram no chão os degraus para o céu da amarelinha e se puseram a pular numa algazarra sem fim, como maracanãs em roça de milho. Alguns guris improvisaram traves com as chinelas e passaram a disputar um rachazinho animado. Um lourinho sardento sentou-se na areia e começou a tocar , numa flauta doce, os acordes do trenzinho do caipira. Alguns outros perseguiam marias-farinha. Um casalzinho ruivo sentou-se contemplativo num tronco e pôs-se a olhar o vai-e-vem das ondas, com olhar perscrutador, enquanto a mocinha segurava na mão uma flor de jasmim. Grupos de meninos, sentados no extenso tapete proporcionado pela maré vazante, começaram a construir palácios, castelos, mansões, carros, edifícios, com a terra úmida. Havia os que , próximo às águas, fizeram uma barragem e trabalhavam cuidadosamente na sua preservação. Outros escreviam , com gravetos , palavras e mais palavras no chão. A menininha sapeca , mais habilidosa, esculpia lindas esculturas : a Barbie, o Bob e um Netuno com um tridente agudíssimo . As professoras observavam todos de uma distância regulamentar, com olhos úmidos de um cuidado que vazava alguma aflição.Próximo ao meio-dia, parece que tinham tocado as doze badaladas da Cinderela. Antes que a gala se transformasse em borralho , o piquenique deu-se por findo. Na beira da praia ficou toda a obra de criação: castelos, palácios, palavras, barragens , músicas e contemplação . Tardezinha, quando os pescadores retornavam do trabalho, a maré havia engolido tudo. Nada havia restado que lembrasse a opulência criativa da manhã . Apenas a florzinha de jasmim boiava ao doce sabor das ondas, sem código, sem senha, sem história. Como chegara ali ? O que representava ? Não se sabia.Assim é o movimento inexorável das turvas águas do tempo. Estamos permanentemente entre duas marés cheias e o que importa é aquilo que construímos na vazante. E edificamos com dedos prenhes de eternidade, como se as ondas já se não avolumassem à nossa volta. Somos livres pedreiros nesta construção: podemos usar o concreto armado como matéria prima ou o cimento do sonho, a cal da arte, o tijolo da poesia. Seja qual for nossa escolha, apenas a argamassa do efêmero estará sempre à nossa inteira disposição. A mansão do peremptório será sempre edificada com o material do volátil.Nestes dias a preamar levou um mestre da maré vazante. Chamava-se Almir Carvalho. Ele soube temperar o caldo da vida com o esmero de um Chef de alta cozinha. Muita bondade com algumas pitadas fortes de boêmia. Firmou amizades sinceras e inquebrantáveis. Uma boate concorridíssima e que nem precisava da presença feminina. Amores poucos, mas eternos e que sobrenadarão no mar dos tempos , como o broto de jasmim : O Clube Regatas Flamengo e Celininha Barros. Seu Almir , seguiu sem que ao menos conhecesse, os preceitos de Thoreau: não deixou que sua vida se estilhaçasse nos pormenores. Viveu beneditinamente, querido por muitos. Como um asceta perfeito conseguiu arrancar felicidade dos mínimos e insignificantes milagres desta vida. Ocupou-se de corpo e alma de alguns poucos afazeres, simplificou a existência, livrando-se da areia movediça das posses, do canto de sereia do consumo. Quando a preamar bateu à sua porta o encontrou feliz e realizado e ele mergulhou nas suas águas, ciente que completava um ciclo e refazia a unicidade da criação.Baudelaire dizia que para suportar o terrível fardo da existência que quebranta os nossos ombros e nos curva em direção à terra faz-se mister embriagar-se sem trégua. E dava as opções possíveis: de vinho, de poesia ou de virtude. Seu Almir, sabiamente, se inebriou com um pouco de cada um desses ingredientes.

17/09/09

domingo, 13 de setembro de 2009

Siameses

Damião & Gabriel. Nomes comuns, nordestinos, saltaram nestes dias nas páginas de uma imprensa , tão ávida por novidades. Pobres, provenientes das áridas terras do Brejo Grande, já congenitamente dividiriam um destino duro sem amplas perspectivas. Não bastasse isso, como irmãos siameses , vieram ao mundo fundidos num só corpo. Mesma geografia e , necessariamente, uma mesma história.
Por falar em história, os antecedentes de outros tantos gêmeos , iguais, não parecem tão promissores. A Cultura Moche, peruana, já representava irmãos unidos, em suas cerâmicas, a partir dos anos 300 dC. O primeiro caso documental, no entanto, data de 945, na Armênia. Os mais famosos siameses talvez tenham sido os irmãos Chang & Bunker, originários de Sião, na Tailândia. Viveram por mais de 60 anos, no Século XIX. Trabalhavam num circo, cantavam divinamente, falavam cinco idiomas, tocavam múltiplos instrumentos. Tornaram-se ricos e famosos e a eles se deve a denominação pela qual a deformidade ficou popularmente conhecida. Há casos curiosos, como o de Violeta & Dayse do Texas que por volta de 1915, casaram com um só marido e , com dois sistemas genitais, tiveram cinco filhos, dois por um dos sistemas e três pelo outro. Na atualidade, os mais famosos siameses, são Donnie & Ronnie de Ohio, vivos e ativos aos 58 anos. A primeira tentativa de separação por cirurgia destes gêmeos aconteceu ainda no Século XVII, mas só a partir de 1950 se começaram a obter bons resultados, com o avanço da Medicina.
O passado não parece muito favorável aos gêmeos de Santana do Cariri. A maior parte das vezes, os siameses são explorados pela mídia, apresentados como bichos de zoológico. Para sobreviverem tiveram, na sua maioria, que trabalhar em circos e se exporem à curiosidade pública. Já existem informações de que uma rede de TV se ofereceu para levar Damião & Gabriel a São Paulo, com o fito de tentar uma cirurgia para separação. Por trás do aparente gesto filantrópico, certamente, se arma, mais uma vez,o picadeiro. Alguns pontos a mais no IBOPE, com certeza, pagarão o ingresso desta empreitada. Nem todos tiveram a sorte de Chang & Bunker. Sem falar no enorme e eterno conflito de ser duas almas , duas personalidades convivendo necessariamente em um corpo inseparável. Existem ainda impasses éticos e religiosos envolvendo os atos médicos necessários à cirurgia reparadora, uma vez que, alguns vezes, se faz necessários sacrificar uma das vidas para salvar a outra, principalmente em casos que os gêmeos têm órgãos vitais comuns.
Como a possibilidade de cirurgia para separação tem um história recente, de pouco mais de cinqüenta anos , e nem sempre é viável para os dois irmãos, muitas vezes os pais optam por não interferir na deformidade. E nisso, basta refletir sobre o passado, os gêmeos têm dado uma verdadeira aula de como conviver com esse terrível destino e, ainda assim, encontrarem espaço para trabalhar, para viver e buscar a felicidade em meio a obstáculos intransponíveis à vista de qualquer pessoa que se considere aparentemente normal. E acredito que eles têm muito a nos ensinar, neste capítulo. Homem & Natureza são também irmãos siameses e inseparáveis, uma convivência pacífica e harmônica é imprescindível para a sobrevivência do par e os tempos mais que nunca têm nos dado contínuas lições disto. Queiramos ou não, homens e mulheres, de diversas etnias, culturas e religiões são xifópagos , dividem entre si um mesmo corpo que é a terra e, sem o exercício da tolerância, da convivência pacífica, do trabalho mútuo , se extinguirão sem deixar rastros. E, cada um de nós, amigos, carrega consigo , um outro irmão siamês, secreto e imperceptível. Somos um somatório de Mr. Hyde & Dr. Jeckyll. O sorridente anjo que apresentamos à sociedade cotidianamente, oculta o lobo e o chacal que existem soldados no peito de todos humanos. Somos a foz desta dualidade, a confluência desta terrível e imprevisível teratologia.

13/09/09

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Caçote bate piaba

Um dos problemas mais prementes de infra-estrutura em Matozinho sempre fora o abastecimento de água. O rio Paranaporã cortava a vila de uma ponta à outra, mas em terra tão árida, contava-se com suas águas barrentas apenas nos primeiros meses do ano. A partir de maio, restavam apenas alguns poços esparsos em seu leito e de lá fluía, a duras penas, um líquido meio ferruginoso e insalubre. Seguiam-se , a partir daí, pelo menos sete meses de secura e aflição. Acostumados à exigüidade do líquido precioso, os matozenses se viravam como podiam: cavavam cacimbas, construíam barreiros e tinham, ainda, o açude do sabugo. O açudeco , pequeno e cheio de bombas d´água, invariavelmente batia piaba aí pelo mês de setembro. A promessa de um abastecimento decente em Matozinho, assim, se tornara, de longa data, uma plataforma política estratégica. Toda campanha se repetia a ladainha interminável, de lado a lado. Governo e oposição se adiantavam e prometiam transformar a cidade num parque aquático, num Beach Park sertanejo. Passavam-se os anos do mandato e, como o pagamento da promessa dependia de verbas estaduais e federais, prefeitos com tão pouca mobilidade, não conseguiam cavar o dinheiro e ,conseqüentemente, nem as obras.
A coisa mudou com a posse de Agripino Caçote . Eterno candidato de oposição, ele por fim conseguiu eleger-se com a maciça ajuda de Serginaldo Canabrava , o governador do estado. Toda sua campanha se firmara na promessa de trazer água regular aos lares da vila. Sinderval Bandeira, mais uma vez, também garantira resolver o problema, no entanto, eterno vencedor nos pleitos municipais, reincidente na mesma promessa não cumprida, terminara por perder o crédito. O certo é que , após a posse, Caçote e Canabrava resolveram mostrar serviço. Em poucos meses, já existia todo um maquinário esquisito , nas encostas da Serra da Jurumenha, cavando como um tatu maluco. Agripino já cantava de galo :
-- Estamos cavando um poço profundo e , daqui a pouquinho, o problema de água em Matozinho vai estar definitivamente resolvido!
Os dias se foram passando e nada de a água jorrar. O povo na rua já fazia mangofa e a oposição soltava piadinhas pelos cantos da praça. Agripino, já meio agoniado, cutucou o engenheiro responsável pela prospecção e este afirmou que tivesse paciência , a água ali estava funda, mas quanto mais profunda, seria, com certeza, de melhor qualidade. Pelo sim, pelo não, Caçote mandou chamar o velho Pebinha que morava no Beco do Belisca Sedém e tinha uma profissão reconhecidíssima por ali : Marcador de Cacimba. O cientista chegou na obra e observou tudo com ares proféticos, como cachorro quando assunta preá. Depois , pacientemente, quebrou uma pequena forquilha de um marmeleiro e, agarrado nas duas hastes, se pôs de lá para cá fuçando todo o terreno em derredor à escavação. Passado algum tempo, chamou Agripino e seus assessores e fechou questão com ares professorais:
-- Seu prefeito, água aqui num tem não, se o senhor encontrar é já chegando no Japão e num vai prestar pra beber. Se o senhor quiser, eu marco o lugar certo e pode furar que eu garanto !
O engenheiro responsável deu brabo. Disse que tinha utilizado todos os instrumentos científicos da capital . Quem era aquele matuto com um cambitinho prá dar aulas a ele ? Fechou a cara e ameaçou abandonar tudo e avisar ao governador de quem era empregado. Agripino, na sinuca de bico, temendo perder as verbas do estado, optou pela ciência universitária e mandou continuar a perfuração. Os dias passaram-se . O poço artesiano já contava com mais de duzentos metros terra abaixo e nem um chorinho só de água. Todo o santo dia o povo acompanhava os trabalhos , na esperança de ver algum líquido minar. Já andavam meio desesperados. Um belo dia, por fim, a água jorrou pelo furo, quando já se aproximavam de trezentos metros de fundura. E jorrou com jato forte. Toda Matozinho, de repente, achegou-se ao poço. Agripino, mais que todos, estava radiante. Já antevia uma longa carreira política. Só com o passar do tempo, já todo molhado , percebeu que a água era muito barrenta, muito ferruginosa. O engenheiro, no entanto, baixinho, lhe garantiu que era só a primeira que saía que estava lavando o cano e carregava tudo quanto era de basculho de dentro do cano principal. Quando provaram a água, com curiosidade, no entanto, tomaram um susto: era salgada como de pia batismal. De enferrujar chifre de bode de tão salobra. O engenheiro também prometeu que ia melhorando com o passar das horas, tivessem paciência. Deu o serviço por terminado e voltou à capital.
Com os dias, porém, se notou que a água não ficou mais limpa, mais clara , nem mais doce. Ia , inclusive piorando, se tornava mais escura e mais gelatinosa e intragável.O povo arrochou o prefeito, pedindo uma explicação. Reunida a Câmara Municipal, convocou Caçote que lá compareceu sem mostrar sinais de preocupação. Toda Matozinho se acotovelava no auditório e do lado de fora. Na hora de informar à população o que acontecera, Agripino deu sinais claros de aprendera rápido os ínvios caminhos da política :
--- Povo de Matozinho, falei hoje mesmo com o engenheiro e ele explicou direitinho o que ocorreu. A sonda furou tão fundo que rasgou o bucho de um tal de pré-sal, por isso é que o líquido que sai é salobro ! E é preto, meus amigos, por que aquilo é petróleo. Nós tamos ricos ! Vamos fabricar querozene que dá prá encharcar tudo quanto é candeeiro do mundo ! Com o dinheiro que Matozinho vai ganhar não precisamos mais de poço, vamos tomar banho e cozinhar com água mineral Périer !
03/09/09