sexta-feira, 11 de julho de 2008

A Úmida Lei Seca de Matozinho





A notícia chegou cedinho na vila e causou indignação. Sidrim Jucá trouxe a nova, na carroceria do seu caminhão, lá das bandas da capital. Mal se apeou do velho Ford , na pracinha da matriz, lascou a sentença em cima do povo.
-- Pode se preparar, cambada, que a coisa ta é preta, o governo acabou de lançar uma tal de “Lei Seca” e neguim vai ter que andar mais abaixadinho que diferencial de cururu.
Os pracianos ainda tentaram saber , trocado em miúdos, que diabos finalmente significava aquela Lei, mas Sidrim simplesmente não conseguiu debulhar todo o rosário. Desconversou. Imediatamente surgiram as interpretações possíveis através do esdrúxulo Código Civil de Matozinho. O velho Janjão Cataplasma emitiu a opinião de que aquilo só podia ser o governo proibindo as irrigações na beira do Rio Paranaporã. E lá se precisava obrigar os matozenses àquele rigor! Eles que já viviam numa terra mais seca do que língua de papagaio ? Mané Tareco, avesso à modernidade, mostrava-se do parecer que aquilo só podia ser o governo querendo secar de vez o bolso do contribuinte com uma Lei mais seca e tenebrosa do que todas as outras, endereçada para a única área da especialidade governamental : aumento de impostos. Já D. Maria Colibri, uma das cafetinas mais importantes da cidade, mostrou-se preocupada, pronunciou para todos os seus temores:
--- O governo tá querendo, meu povo, é acabar com a única alegriazinha de pobre. Vai proibir o furumfufado, deixar os homens de Matozinho mais secos do que o Paraporã em outubro. Vai quebrara minha Boïte “Riso da Noite” ! Vai esvaziar a Rua do Caneco Amassado, meus amigos. Preparem os cindo dedos!
O certo é que a novidade trazida por Sidrim tomou de assalto a vila e só uns dois meses depois é que o mistério foi elucidado. O velho Sinfrônio Arnaud, chegando da capital, com sua inconfundível voz de barítono, pôs fim à questão. A “Lei Seca” havia sido sancionada pelo governo federal para proibir que os pingunços dirigissem veículos e saíssem por aí cometendo barbaridades. Os motoristas seriam testados por um aparelhinho e ,se acusasse qualquer teor de álcool no organismo, seriam multados, teriam o carro apreendido e poderiam até ser presos. Elucidada a questão, os temores de alguns arrefeceram um pouco, já outros começaram desde aquele dia a suar em bica.
Giba e Godô, proprietários dos bares mais charmosos da cidade, passaram a temer a queda da clientela. Estava certo que a lei falava só de carros e estes não eram tantos em Matozinho, mas o Departamento Matozense de Trânsito – o DEMASITO—iria interpretar assim ? A interpretação de todos os artigos e incisos daquela Lei feita pelo presidente do departamento, Mundim Contra-Mão, analfa de carteirinha, devia trazer lá seus desvios.
Os temores de Giba e Godô não demoraram a se tornar perfeitamente justificáveis. A Lei Seca em Matozinho foi implantada com um rigor jamais visto em outra paragens deste imenso país. Ninguém mais podia ver cachaça nem na prateleira. Em Matozinho a Lei nova são se ateve apenas aos proprietários dos poucos carros da cidade. Os carroceiros, os vendedores de água, os condutores de ancoretas , os donos de jegues, os possuidores de bicicleta, patinetes e velocípedes, pela Lei implementada por Mundim, não podiam dar suas talagadas e sair por aí “ataiando galinha”. Era prisão certa. Mundim proibiu, inclusive, a utilização de carros a álcool em Matozinho, pois desconfiava que os acidentes que aconteciam por ali deviam ter alguma relação com o embebedamento dos motores com o álcool que se punha nos seus tanques. O diabo é que não existindo ainda bafômetros na cidade, toda a investigação dependia do olhão e do nariz dos policiais do DEMASITO. A avaliação da pingucidade da população feita por instrumentos tão pouco calibrados terminou por trazer sérios aborrecimentos. D. Filó Mascarenhas, uma das beatas mais famosas de Matozinho, foi presa, tida por embriagada, só porque, ao descer do seu cavalo “Navio”, na porta da igreja, pendeu e quase cai. Só depois, atrás das grades, é que conseguiu explicar que vinha há dias com uma crise de labirintite, não podia mexer a cabeça que ficava tonta.
Os maiores paus-d´água da cidade, por sua vez, mostravam-se totalmente imunes à nova lei. Zé de Candóia, Pedro de Sá Dona, Quinco Pitu, Antonio Mendraca, Janjão Caixa de Fósforos andavam por toda a vila, puxando um fogo inapagável, mas sempre a pé e, como bem explicitara o maior deles, Jojó Fubuia:
--- De preferência de quatro pés, meu povo, para evitar acidentes !
Semana passada, Tiziu vinha descendo do Quincoreré , puxando um burro, carregado com uma ancoreta cheinha de cana de cada lado. Ao longe avistou o velho Genésio Imbiriba que vinha em direção contrária à sua, montado numa bicicleta velha. Rápido percebeu que o homem vinha mais melado que balcão de correio. A bicicleta ia de um lado para outro da estrada, até parecia que Genésio vinha era montado numa ema. Rápido resolveu pregar-lhe uma peça. Parou em uma das margens da estrada e quando Genésio se aproximou, deu com a mão e falou com ar grave e autoritário:
--- Pare ! Soldado do DEMASITO em fiscalização !
Genésio, mal parou e saiu catando ficha, até lascar-se no chão. Rápido, no entanto, levantou-se trôpego. Tiziu, então, insinuou que iria multá-lo por total estado de embriaguez ao guidão. Com voz engrolada, Genésio ainda tentou defender-se:
--- Bêbado que nada, seu soldado, eu num bebo não, sou crente !
Tiziu, então, tirou a tampa de uma das ancoretas, meteu uma mangueira plástica pelo buraco e ordenou:
--- Ta bêbado não, pois bem seu crente, vamos fazer o teste aqui no bafômetro, sopre aqui nesta mangueira, seu Genésio !
Genésio adaptou a mangueira na boca, mas diante do cheiro agradável que rescindia pela boca da ancoreta, ao invés de soprar começou foi a sugar a aguardente, como uma criança no peito da mãe. A chupada foi tão federal que Tiziu, depois de alguns minutos, precisou interferir :
---- Seu Genésio, pare aí, rapaz, vamos agora testar no bafômetro da outra ancoreta, senão a carga vira !

J. Flávio P. Vieira