A notícia pipocou
como uma bomba rasga-lata na praça de Matozinho. Reunidos de tardezinha, os
aposentados , por fim, viam a plateia
engrossar, com os funcionários que saltavam dos armarinhos da cidade e os
barnabés libertos das repartições, geralmente mantidos, com respiração mecânica, pela prefeitura . Os velhos traziam a pauta
das reuniões, até porque, com tempo suficiente, compilavam as fofocas pelo
rádio e nas bodegas e boticas locais, as verdadeiras amplificadoras da vila.
Naquele
dia, coube a Cassandro Jurubeba sacar o item principal da sua cartola, sentado
no encosto do banco de marmorito da pracinha , que ascendera à condição de
palco. Caju, como era conhecido em Matozinho, vivera por mais de vinte anos em
São Paulo e, dependuradas as chuteiras, voltara, trazendo na mala um pequeno pé-de-meia, um
sotaque carregado e uns vinte quilos de pabulagem. De tanto evacuar goma, na
volta de Sampa, os amigos levantaram um dossiê de Caju. Descobriram que tinha
sido um mero comerciário de muamba na vinte e cinco de março. Bem apessoado,
terminou por ganhar a atenção de uma sunsei, filha de um lojista das imediações.
Contra a vontade da família , casou com
a mocinha. A partir daí, levou uma vida folgada, morando num apartamento na
Liberdade e sem precisar dar murro em ponta de punhal. Mas não há solução que
não traga junto seus problemas. Sumioko, a esposa, era adepta do amor livre e
diziam que era falsa à bandeira, ao hino e aos brasões matrimoniais. Aposentado, segundo os caminhoneiros matozenses
que levantaram o dossiê, Caju não aguentou mais as galhas que enganchavam já
até na antena da TV Gazeta. Disse arigatô a Sumioko e retornou à Matozinho.
Pois bem,
empertigado, na testeira do banquinho da praça, Caju trouxe o primeiro item à
discussão. Tinha lido no jornal que pesquisadores do Ceará descobriram que os
cabeça chatas descendem não de índios, negros ou portugueses, mas sim de
Vikings. Ele , cabelo bosta de rolinha e pele puxada à cambuí, informou que já
sabia disso há muito tempo. Seu avô era gazo como alfenim puxado, tinha olho
verde como bico doce, e era um lazarino
com mais de dois metros de altura. Aliás, se gabou nosso matozense raceado com
japonês: quase toda a família era desse jeitinho. Além do mais, um escancha avô seu, disse ele, tinha ido para
o Pará na época da Borracha e se tornara um dos maiores navegantes dos igarapés
da Amazônia. Caju pontuou que sentia em suas veias correr o sangue nórdico. Se
morasse na capital seria , certamente, um jangadeiro à Amir Klink.
A coisa pegou
fogo. Bastava olhar para os circunstantes da rodinha para desconfiar que o DNA
escandinavo havia se diluído com o passar do tempo. Zé Grande, também conhecido
como escada de tirar maxixe, sentado no banco da frente, não envergava mais de
meio metro. Alguém mostrou Turíbio Caninana , tomando umas talagadas no Bar do
Giba, na esquina, com aquele cabeção que quase matou a genitora, entalado no
canal do parto. Do outro lado da rua, numa cadeira de balanço, já meio esquecida, a velha Norvina Caçundé , envergava uma grossa camisa de crochê e cobria-se com um lençol de flanela em plena tarde de um mês de outubro, quando em Matozinho dava pra fazer pipoca e assar milho verde na quentura da calçada. Alguém quis saber como aquela neta de norueguês saiu tão friorenta daquele jeito. Levantamento feito, rapidamente, entre os circunstantes da
praça, no momento, pelo IMBROMA, o instituto
de pesquisas de Matozinho, mostrou: sessenta cabelos de mola de isqueiro,
oitenta olhos escuros como chão de oficina, cinquenta caboclos com menos de
metro e meio, trinta com cabeças de mamãe-sofreu, trinta e cinco com cabeça de
cabaça. O único branco e com olho claro era Juventino Canabrava que teve um
vitiligo tão infeliz, que juntou mancha com mancha, e ficou com cara de Michael Jackson.
Ameaçada a
teoria da descendência de sangue azul do cearense, Caju irritou-se. Disse que não sabia da vida dos outros, mas da
dele tinha certeza. Sentia nas veias aquele afã de desbravar os mares bravios.
No sonho, pressentia a maresia entrando
pelas narinas. Sua avó, segundo ele, falava engrolado de não se entender e era
ruiva e comprida como um dia de fome.
Até aquele
momento, o velho Anfrízio Maia, o filósofo da praça, ouviu tudo calado, com
aquele cuidado de caçador na espera . Só então , pausadamente, fez suas
apreciações. A origem nórdica do cearense era uma balela. Uma invenção de
pessoas racistas que considerando menores as etnias indígena e afro , procuram
arrumar uma maneira de pôr uma falsa nobreza na sua descendência. Não muito
diferente da montagem das árvores genealógicas que nunca têm galhos que pendam
para as senzalas e para as ocas.
---
Conversa pra boi dormir, seu Caju ! Conheci sua avó! Ela era uma mãe de santo adorável e querida. Que importa para nós que
tenha vindo num navio viking ou num negreiro ? E ela só passou a falar
engrolado, seu Caju, depois do derrame que teve !
Jurubeba deu
brabo. Baixou o nível. Jogou na cara de Anfrízio e dos pracianos que não tinha
culpa se eles eram uns pés rapados, sem origem, filhos de guaiamum !
---Você mesmo
Anfrízio, deve ser filho de alguma dama de paga da rua do Caneco Amassado!
Anfrízio não
se alterou nem perdeu a fleugma. Desculpou-se e afirmou que tinha se enganado.
Olhando bem, Caju tinha herdado alguma coisa da sua herança viking, agora
percebia !
--- Ah ! Agora
reconhece, Anfrízio ? Os da senzala reconhecem
os da Casa Grande ? O que você vê em mim dos vikings ? A altura ? Os olhos? A
bravura ? O cabelo sarará ?
Anfrízio, sem
se apressar, fechou:
--- Não, Caju
! Não ! Sabe o que foi que tu herdou dos teus avós vikings ? Os chifres !
Crato,
31/07/2020
Um comentário:
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