“ Assinalando, de passagem, algumas causas
Que no meu entender influíram por maior
Mortalidade no Cariri, eu senti-me obrigado a dizer
que a classe abastada pouco, quase nada, foi útil
à pobreza; e que tão imprevidente como ela, foi
um peso antes que um auxílio nesses dias de aflição”
Dr. Antonio Manoel de Medeiros
Relatório da Epidemia de Cólera no Cariri -1862
Vivemos hoje confinados, temerosos e desconfiados, em meio a uma pandemia. Abate-nos o ar de abandono e a fragrância da morte que rescende nas esquinas da vida e chacoalha as redes sociais. Parece-nos fazemos parte de uma geração de desafortunados, vítimas de alguma ziquizira desconhecida, de coisa botada. De que diabos adiantou colocar aquela rouba branquíssima no Réveillon ? Mal percebemos que somos apenas um capítulo no grande livro das tragédias da humanidade.
Em 1862-1864 , o Cariri viu-se acometido de uma peste de terrível proporção. E eram tempos bem mais tenebrosos. Não existiam quase médicos ou hospitais no interior do estado. A Cólera era uma doença totalmente desconhecida, não se sabia sua causa e os tratamentos eram totalmente empíricos e ineficazes, igual à Cloroquina e a Ivermectina nos dias de hoje. A população dividia-se entre uma imensa comunidade de descamisados e de escravos e uma pequeníssima casta de poucos senhores rurais. O governo era uma entidade distante e a comunicação com a capital levava quase um mês em lombo de burro. Números oficiais mostram que a Cólera , só em Crato, dizimou mais de mil pessoas , quase um terço da população da cidade na época. Estes números, certamente, estão muito subestimados : havia cemitérios clandestinos espalhados por fazendas e sítios ao derredor. O presidente da Província designou médicos , em geral militares, para o Cariri e aqui chegou o mais importante deles , em março de 1862: Dr. Antonio Manoel de Medeiros. Ele foi incansável na luta contra o inimigo desconhecido, montou e coordenou comissões sanitárias nas cidades caririenses, criou as primeiras enfermarias e hospitais de campanha , construiu cemitérios específicos aos abatidos pela Cólera. Noite e dia, saía a atender pacientes nas vilas e cidades caririenses. Ficaria aqui até outubro daquele ano fatídico de 1862, quando a doença, por fim foi vencida. Devemos a Dr. Medeiros, também, a primeira Cirurgia realizada na região, com anestesia, acontecida na sua primeira vinda ao Cariri em 1861. Em 1864 , teríamos uma segunda onda da epidemia e ele novamente aqui retornou para um novo e desigual embate. Em 1879, estaria mais uma vez, aqui, como anjo protetor, designado agora numa epidemia de Varíola. Montou um Hospital no Seminário de Crato e, com desvelo, passou a atender sozinho uma chusma de pessoas doentes.
Quis o destino que aquela fosse a última das suas batalhas. Caiu enfermo no Cariri, aparentemente de Tifo. Tentou voltar à capital em junho de 1879, uma penosíssima jornada a cavalo, uma via crucis. Faleceu em Limoeiro, , sozinho, sem a assistência médica que passou a vida a oferecer, em 13 de Julho daquele tenebroso 1879. Tinha 52 anos, a maior parte dos seus dias dedicados a Arte de Curar. Um pertinaz combatente de epidemias no Piauí, no Cariri, em todo o Norte do estado e como médico em Montevideo, na Guerra do Paraguai.
Este ano, o maior benfeitor do Cariri no Século XIX, completaria duzentos anos, no último dia 23 de Abril. Por aqui não há bolos nem velinhas a soprar. O esquecimento absoluto foi o único presente que Dr. Medeiros ganhou de parabéns. Sem ele, muitos da geração de agora , cortados os galhos genealógicos, prematuramente, sequer teriam ganho o dom da vida. Sei que vim ao aniversário, sozinho, talvez porque em tempos de confinamento, Dr. Medeiros, como o senhor tão bem preconizava, não pode haver aglomeração. Trago-lhe a lembrancinha da gratidão e o encantamento da lembrança. Há anjos, como o senhor, que , secretamente, tomam o timão do destino e mudam o curso da História. Valeu pelo gesto secreto e definitivo, esquivado dos aplausos e holofotes! Uma vida que fez valer muitas outras vidas !
Crato, 05/08/2020
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