sexta-feira, 27 de setembro de 2019

O Boi de João Martins


                               Quem chegasse a Matozinho estranharia, logo de antemão, algumas peculiaridades da vila. Abandonada no meio do sertão, tinha-se a clara ideia de que ali nunca houvera administradores municipais. Quem, por sua conta e risco, tivesse a visitado alguns anos atrás e , por acaso, retornasse, se certificaria de que aquilo era um fóssil de uma cidade pré-histórica. Permaneciam as duas ruazinhas principais, algumas poucas travessas, a pracinha da Igreja da Sé, algumas bodegas , a botica e uns dois bares de ponta de rua. Parece que Matozinho brincara de estátua com algumas outras vilas vizinhas e perdera a batalha. O prefeito atual era um tal de Nicolau Canuto, no terceiro ano do seu segundo mandato. Dizia-se em Matozinho que suas únicas obras, além daquelas que deixara no banheiro da prefeitura, inauguradas com pompa e foguetório sãojoanesco foram: um orelhão do sítio Timbaúba, uma cacimba de vinte palmos nas Calabaças e um forno de tijolo para fazer sequilhos no Marimbondo.

                                   Canuto chegara a Matozinho como tropeiro, firmara um pequeno comerciozinho de confecções na feira livre e depois estabeleceu-se numa lojinha. O salto para se tornar, de repente, um cabra remediado, o pulo do gato, ninguém sabia explicar com clareza. Falavam em uns roubos de alguns “galegos”, anos antes, que ele poderia estar envolvido.  A oposição, ao menos, pinicava seu oratório. O pobre sabe que, por trás de cada milagre desse tipo, existe um santo protetor  de discutível santidade. Essa loteria obscura terminou por levar Nicolau para os campos minados da política matozense.
                                   Canuto, talvez por conta da sua atividade de mascate, era muito vaidoso. Usava um chapéu Ramenzoni, vestia-se de linho branco, invariavelmente,  que mandava passar a ferro untado com goma e amassava cuidadosamente, antes de usar. Carregava num perfume forte, adocicado, um tal de patchouli que incendiava os ambientes por onde passava e espantava para longe quem tivesse enxaqueca.   Meia légua antes de Canuto chegar já se recebia a fragrância de sua vinda.
                                   A inoperância crônica do prefeito servia de chacota nas rodinhas de conversa de Matozinho. O edil até já se acostumara com a esculhambação, havia, no entanto, um apelido que ele odiava e, por mais de uma vez, andou puxando lambedeira e tomando satisfação para quem o deixasse escapar:
                                   ---  Boi de João Martins !
                                   O visitante novo na vila teria súbita dificuldade em entender a origem daquele epíteto. Seria por que o prefeito era chifrudo e pegava ar ? Quem diabos era o tal de João Martins ? Era preciso ter um brevê de Matozinho para poder escarafunchar aquela alcunha. Uma vez até pregaram uma peça num representante comercial recém chegado e que queria participar das licitações da prefeitura. Ao perguntar o nome do prefeito, algum gaiato disse chamar-se de João Martins. Na audiência, o pobre rapaz, enganado, fazendo-se de íntimo, tentou explicar suas pretensões:
                                   --- Pois seu João Martins, sou representante de uma loja de material de construção da capital...
                                   Antes que pudesse continuar a conversação, Nicolau o expulsou de pau pereiro na mão, ameaçando-o cobrir na peia.
                                   Pois bem, Gumercindo Sobreira, sacristão que alterna o manejo de hóstias com umas mãos  de pif-paf , foi quem desvendou o mistério. João Martins fora o mais importante pecuarista da região. Morrera uns dez anos atrás. Fora ele o responsável pela melhoria do plantel bovino em Matozinho. Consta que uma vez, fora a uma importante Exposição Agropecuária na capital e lá comprara um boi de raça, PO, indubrasil. Bicho famoso, pesava quase uma tonelada, carregava um nome importante que encimava seu pedigree: Halfimaster Hollymister. Martins pensava em melhorar a genética do seu plantel e, também, aluga-lo como reprodutor, para outros pecuaristas da região. A chegada de Halfimaster fez-se uma verdadeira apoteose na cidade , com direito a retreta da Banda de Música do Maestro Arnóbio Carcará.
                                   O nome esdrúxulo e trava língua de Halfimaster Hollymister foi substituído rapidamente pelo vaqueiro Chico Rabichola, por outro mais fácil e palatável: Chibatinha. Com o passar dos dias, bateu o desespero no pecuarista. O boi não cobrira ainda nenhuma vaca. Aproximava-se, rodeava as fêmeas, cheirava, cheirava, de venta virada para o nascente, mas ação que é bom nada... O boi era como um apreciador de vinho que cheira, bochecha, olha para o copo, mas beber que é bom, nannanninnanã !
                                   Quis saber de Gumercindo qual a relação do boi com o prefeito Nicolau. Ele, então, me revelou o segredo:
                                   --- Hora, o prefeito é do mesmo jeitinho do Boi de João Martins ! Encharcado de perfume, cheira pra danar, mas produzir , que bom,  não produz é nada...

27/09/2019

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Alderico - 100 Anos


                      “O talento do historiador consiste em compor um                                    conjunto verdadeiro com elementos que são verdadeiros                       apenas pela metade.”
                                                                          Joseph Ernest Renan
 

                   Há exatos cem anos, nascia na aristocrática Aracati, um dos mais importantes filhos do Crato. A frase pode parecer paradoxal, mas nosso local de nascimento não o podemos escolher, no entanto o cenário e o script da nossa vida é da nossa inteira responsabilidade e escolha. Pois foram os ventos do destino que aqui trouxeram o Prof. Alderico de Paula Dasmasceno, amparado pelo pai que veio trabalhar na RVC. No Crato se fez professor, dedicando os noventa profícuos anos da sua vida ao magistério e à formação de almas e mentes. Alderico era de uma personalidade forte e marcante. Hiperativo, inteligente, visionário ensinava uma História Crítica em plenos anos 50 e 60, como fiel discípulo do Padre Antonio Gomes, numa época em que o ensino de História Geral e do Brasil não se distanciava muito  das histórias da Dona Carochinha e de Trancoso. Alderico esmiuçava as raízes econômicas e sociais dos conflitos e das datas e tinha uma verdadeira ojeriza ao “Decoreba”. Incentivava seus alunos a pensar e refletir, sabia ser essa a função básica do professor, fugindo da simples cópia de verdades prefeitas e preconcebidas. Caçava os decoradores sem perdão. Ensinou nas principais escolas públicas e particulares do Crato, na Faculdade de Filosofia e depois na URCA.
                  Figura de múltiplas habilidades, o professor Alderico foi ainda um grande adepto da atividade física, dedicando-se, no magistério, também a essa área. Tinha uma grande capacidade física e , frequentemente, desafiava os adolescentes em exercícios, vencendo-os , em geral, com grande facilidade. Possuía uma força descomunal.  Foi ainda treinador de times de futebol, inclusive da seleção do Crato. Um dos primeiros técnicos a usar terno e gravata e o guarda-chuva que utilizava, em campo,  para indicar aos jogadores os momentos de atacar ou defender. Numa época em que o Brasil se destacava pelo Futebol Arte, Alderico foi um dos primeiros técnicos no Ceará a explicitar, abertamente, a importância do condicionamento no rendimento das equipes. Demonstrou, exemplarmente, a importância do combate ao sedentarismo na sua própria longevidade.
                  Ligou-se ao histórico PTB , nos embates políticos cratenses dos anos cinquenta e sessenta do século passado. Seus parcos recursos como professor eram dirigidos prioritariamente à compra de livros. Um dia a esposa, em protesto, colocou , no almoço,  um livro em cada prato, já que era aquela a única feira que ele vinha fazendo.
                  Alderico foi o mestre de muitas e muitas gerações de cratenses. Em geral, de início, seus alunos o detestavam: pela cobrança incessante,  pelo discurso aparentemente muito disperso, pelas atitudes tantas e tantas vezes tidas como intempestivas. Era um homem de arroubos e de paixões. O tempo, no entanto, terminava por demonstrar a importância dele na formação de todos  e o ódio plasmava-se rápido em adoração.
                  Os jogadores veteranos lembram-se da sua ansiedade como técnico e da cobrança nos exercícios. Nas paradas de 7 de setembro, Alderico organizava os pelotões, exigindo disciplina e cobrando cadência e ritmo das bandas de música.
                  Ele inspirou muitas gerações  de professores de História no Cariri. Depois dele, o decoreba ficou proibitivo. A História teve que fugir definitivamente das prateleiras dos Contos de Fada.
                  Um dia, a inexorabilidade dos anos ceifou o caule da árvore frondosa. Ali estava impávida há noventa anos à beira da estrada. Seus frutos continuam dispersos pelo chão, muitos fizeram-se sementes e multiplicaram o milagre da primavera. Suas flores, estranhamente, continuam imarcescíveis, como se o tempo não tivesse passado, oferecendo-se em cores e perfume aos que passam pela estrada.
Crato, 20/09/2019

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

O Evangelho segundo Crivella


Vivemos num mundo onde nos escondemos para fazer amor!
Enquanto a violência é praticada em plena luz do dia.




                                               Imaginem uma mulher linda, elegante e maravilhosa mas que carrega no ventre um tumor maligno terrível e inoperável !  Várias intervenções médicas foram realizadas na tentativa de trata-la, sem sucesso, única e exclusivamente porque não conseguiram erradicar a raiz primal da doença. Ou , quem sabe, algumas dessas terapias tinham o sentido explícito de incentivar o crescimento e progressão da chaga maligna. Esta mulher é o Rio de Janeiro, uma das mais belas cidades do universo em belezas naturais, antiga capital do Brasil, aquela que foi um dos paraísos terrestres até meio século atrás. Hoje a população , em polvorosa, se vê numa sinuca de bico, imprensada entre a violência policial, a Corrupção crônica e vil da política,  a máfia das Milícias e os tentáculos do Tráfico de drogas. No Rio, o estado foi substituído pelo Crime Organizado. É ele que tem na mão a justiça, quem determina a vida ou a morte, quem se responsabiliza pelos principais serviços públicos, pela segurança e insegurança.
                                      A partir do início desse século, as milícias, nascentes na comunidade de Rio das Pedras, com forte população de nordestinos,  tomaram conta das principais favelas do Rio, a princípio cobrando taxas de proteção à população e  exterminando descaradamente quem se opusesse a pagar. Aos poucos, ampliaram seu raio de ação, como uma Holding, responsabilizando-se por serviços essenciais como:  venda de água, gás e cestas de alimentos, transporte clandestino, TV a cabo e internet piratas, roubo e refino de petróleo cru para fabricação de combustível, coleta de lixo e também na apropriação de terras públicas e privadas abandonadas ou sem uso, que são loteadas e vendidas ilegalmente. Avaliação recente demonstrou que esses imóveis já somam mais de 11.000 na Cidade ( que um dia foi)  Maravilhosa. As milícias movimentam , estima-se, cerca de trezentos milhões de reais todo ano. Todo esse poderio cresceu com o apoio político inconteste, inclusive com forte amparo do atual governo federal que a considerava sempre como um “mal menor”. Milicianos foram condecorados com a Medalha Tiradentes, uma das maiores honrarias do estado, por um dos filhos do atual presidente da República que também teve em um dos seus assessores , Fabrício Queiroz, um dos elos reconhecidos com milicianos.  Essas milícias foram responsáveis pela morte brutal da vereadora e ativista social Marielle Franco ,  em março de 2018, crime até hoje não elucidado completamente.
                            O Narcotráfico ,que se estabeleceu nas favelas do Rio a partir dos anos 1970, movimenta hoje em torno de 3,5 bilhões de reais em todo estado, fragmentando-se em vários comandos, com tentáculos na polícia e na estrutura política do estado.
                            No Rio, quase 15.000 pessoas vivem na rua, o triplo do que acontecia cinco anos atrás, dessas mais de quinhentas são crianças. Foram na sua maioria tangidos pelo desemprego, pelo abuso de drogas, por rompimentos com a família e transtornos mentais. Ali, não tão diferentemente do resto do país, a cada quatro horas, uma menina abaixo de treze anos é estuprada. A saúde pública na cidade encontra-se em colapso total: macas servindo de leitos pelos corredores, atrasos nos repasses de verbas,  funcionários com salários em atraso, e, pior, a possibilidade de um corte no orçamento do SUS de 12% para esse ano. Recentemente a Defensoria Pública orientou a solicitação de Estado de Emergência na Saúde do Rio. Na Educação pública a catástrofe não tem também paradeiro:  um déficit de pelo menos 11 mil vagas nas escolas, em alguns locais a fila de espera é de mais de 500 candidatos. A falta de professores é uma verdadeira calamidade: quase 150 escolas estão sem aulas e nos últimos doze meses mais de 2000 professores abandonaram a profissão. Há cinco anos os professores da rede estadual não recebem qualquer reajuste nos seus salários. Embora a taxa de homicídios aparentemente tenha baixado , a morte produzida por ações policiais aumentaram: no ano passado atingiram mais de 1500 vítimas. No Brasil , 31 crianças ou adolescentes morrem diariamente de forma violenta, estamos entre os cinco países no mundo mais mortais para a infância e adolescência. O atual Governador do Rio, Witzel,  comemora a eliminação sumária de sequestradores como se tratasse de um gol , num Fla-Flu de final de campeonato.   
                            Diante de uma tragédia dessas proporções,  esperava-se que o estado tomasse providências drásticas para solucionar este genocídio. Nos últimos tempos, no Rio, no entanto, foram presos acusados de corrupção: três governadores ( Sérgio Cabral, Garotinho e Rosinha), dois presidentes  da Assembleia Legislativa ( Jorge Picianni e Paulo Mello),  oito deputados estaduais, um secretário estadual, vários conselheiros do TCE, dois presidentes do DETRAN e o Procurador Geral de Justiça. A política do Rio poderia ter como centro administrativo o presídio de Bangu I.
                            Semana passada, na Bienal do Livro , o atual prefeito do Rio de Janeiro, que carrega consigo mais de 60%  de reprovação  em pesquisas, tomou uma atitude típica do Século XIII. Mandou censurar e apreender, sob uma chuva de protestos,  um livro, exposto na Bienal, pelo simples fato de apresentar um beijo entre dois adolescentes do mesmo sexo. Segundo ele , aquilo feria a moral e os bons costumes. Tempos sombrios voltam a se abater sobre o Brasil ! Um juiz de primeira instância impediu a medida governamental que qualquer menino de ponta de rua sabe ferir frontalmente a Constituição de 1988. Um desembargador , Cláudio Mello Tavares,  -pasmem vocês! - cassou a liminar que terminou sendo, por fim, referendada pelo STF que precisou pôr obviedade no óbvio: Constituição foi feita para ser respeitada!
                            Para  Crivella , um beijo é pornografia. Chacina de adolescentes, estupros, chacinas promovidas pela polícia, desassistência em hospitais, implosão da escola pública, corrupção desenfreada de governantes, tudo isso é normal. Não precisa ser combatido ! Está tudo na Bíblia, faz parte dos novos livros bíblicos agora publicados, nestes tempos tenebrosos em que os novos evangelistas  fazem o milagre da multiplicação das moedas e dos dólares e esbravejam nos templos palavras de intolerância, de desamor, de armação de corpos e espíritos, tudo aquilo que um dia foi exorcizado por um pobre filho de um carpinteiro da Galileia.

Crato, 13/09/19