sexta-feira, 3 de julho de 2020

Cara ou Coroa ?









Dr. Iranildo Freire, em fim de plantão, esperava, ansioso, a chegada do seu  rendeiro. O colega, sempre pontualíssimo em seus compromissos, naquele dia, estranhamente, não aparecia. Mais de duas horas de atraso !  Eram tempos ainda dos bips  e orelhões a ficha, sem as facilidades de comunicação dos telefones celulares. Finalmente, aliviado, o plantonista vê apontar, no horizonte, o fusquinha verde limão do parceiro. Sim, naquelas eras jurássicas, os recém formados não viviam montados em cabines duplas. Sentiam-se notáveis e cobertos de privilégios, quando, juntando o minguado dinheirinho dos plantões, conseguiam adquirir um fusquete velhinho e o envenenava. Muitos tinham seguido a via sacra e evoluído  do transporte no pé-2, do aperto do ônibus de manhãzinha, muitos mesmo dos burros e cavalos. O primeiro fusca parecia uma   BMW.
                                   O companheiro chegou meio esbaforido e pediu desculpas pela demora. Tinha havido um contratempo. Saíra cedo de Recife para a Unidade Mista do Cabo de Santo Agostinho, onde trabalhavam. A estrada, nos anos 70, já era asfaltada, mas ainda  não duplicada. Era julho, quando as chuvas no litoral são mais intensas. Ele explicou que , em determinado ponto, por conta da inclemência das águas, parte da  rodovia desabara e   haviam feito um desvio. Ele tomara , cuidadosamente , o  atalho indicado. Em sentido contrário, vinha um caminhão, carregando, na carroceria,  um trator de esteira. O motorista dirigia lentamente e com precaução. O médico parou na sua mão e esperou a passagem lenta da carreta. No meio do caminho, no entanto,  havia uma poça d´água que encobria um buraco fundo. Quando o caminhão emparelhou com ele, parado à margem da pista, a roda traseira caiu dentro do buraco que, encoberto pela lâmina líquida, era fundo, embora enganosamente não o parecesse. A carreta empinou para um lado e o trator, com suas toneladas,  tombou de cima do veículo. Para a sorte do doutor: na margem oposta da estrada em que ele se encontrava parado. O colega de Iranildo explicou que ali permanecera por mais de quinze minutos, trêmulo, sem conseguir dirigir. No íntimo perguntava para si mesmo: um mero detalhe! E se tivesse sido para esse lado?
                                   Passado o plantão, tranquilizando o amigo, Dr. Iranildo tomou a estrada de volta. Na sua cabeça, repetia-se a cena do filme narrado pelo parceiro, minutos atrás. A vida dependia de fortuitos detalhes. O segredo entre o ser e o não ser, entre o existir e o desaparecer, entre o acontecimento e o vazio está escondido em pequenos , mínimos e incontroláveis pormenores. O esqui e a avalanche; o acidente aéreo e a perda do voo; o saltador e o paraquedas;  o esbarro fortuito e a paixão; o dinossauro e o meteoro; são binômios que dependem da invisível mão do destino para mover os cadarços da marionete. Em todos os instantes da nossa vida,  o tempo lança para o ar a moedinha onde no verso está o existir e, no anverso, desenha-se a imagem da  impermanência. Cara ou Coroa ?
                                   Por isso mesmo, pensou Iranildo, enquanto imergia no corredor de canaviais da BR 101, cada momento é único, último e definitivo e deve ser degustado como o derradeiro gole da garrafa de vinho Bordeaux. Neste exato momento, estamos parados à borda da autoestrada e nunca sabemos para qual lado o trator vai tombar.

Crato, 03/07/20
                                  

Nenhum comentário: