Dr. Iranildo
Freire, em fim de plantão, esperava, ansioso, a chegada do seu rendeiro. O colega, sempre pontualíssimo em
seus compromissos, naquele dia, estranhamente, não aparecia. Mais de duas horas
de atraso ! Eram tempos ainda dos
bips e orelhões a ficha, sem as
facilidades de comunicação dos telefones celulares. Finalmente, aliviado, o
plantonista vê apontar, no horizonte, o fusquinha verde limão do parceiro. Sim,
naquelas eras jurássicas, os recém formados não viviam montados em cabines
duplas. Sentiam-se notáveis e cobertos de privilégios, quando, juntando o
minguado dinheirinho dos plantões, conseguiam adquirir um fusquete velhinho e o
envenenava. Muitos tinham seguido a via sacra e evoluído do transporte no pé-2, do aperto do ônibus de
manhãzinha, muitos mesmo dos burros e cavalos. O primeiro fusca parecia uma BMW.
O companheiro
chegou meio esbaforido e pediu desculpas pela demora. Tinha havido um
contratempo. Saíra cedo de Recife para a Unidade Mista do Cabo de Santo Agostinho,
onde trabalhavam. A estrada, nos anos 70, já era asfaltada, mas ainda não duplicada. Era julho, quando as chuvas no
litoral são mais intensas. Ele explicou que , em determinado ponto, por conta
da inclemência das águas, parte da rodovia desabara e haviam
feito um desvio. Ele tomara , cuidadosamente , o atalho indicado. Em sentido contrário, vinha
um caminhão, carregando, na carroceria, um trator de esteira. O motorista dirigia
lentamente e com precaução. O médico parou na sua mão e esperou a passagem
lenta da carreta. No meio do caminho, no entanto, havia uma poça d´água que encobria um buraco
fundo. Quando o caminhão emparelhou com ele, parado à margem da pista, a roda
traseira caiu dentro do buraco que, encoberto pela lâmina líquida, era fundo,
embora enganosamente não o parecesse. A carreta empinou para um lado e o trator,
com suas toneladas, tombou de cima do
veículo. Para a sorte do doutor: na margem oposta da estrada em que ele se
encontrava parado. O colega de Iranildo explicou que ali permanecera por mais
de quinze minutos, trêmulo, sem conseguir dirigir. No íntimo perguntava para si
mesmo: um mero detalhe! E se tivesse sido para esse lado?
Passado o
plantão, tranquilizando o amigo, Dr. Iranildo tomou a estrada de volta. Na sua
cabeça, repetia-se a cena do filme narrado pelo parceiro, minutos atrás. A vida
dependia de fortuitos detalhes. O segredo entre o ser e o não ser, entre o
existir e o desaparecer, entre o acontecimento e o vazio está escondido em pequenos
, mínimos e incontroláveis pormenores. O esqui e a avalanche; o acidente aéreo e
a perda do voo; o saltador e o paraquedas; o esbarro fortuito e a paixão; o dinossauro e
o meteoro; são binômios que dependem da invisível mão do destino para mover os
cadarços da marionete. Em todos os instantes da nossa vida, o tempo lança para o ar a moedinha onde no
verso está o existir e, no anverso, desenha-se a imagem da impermanência. Cara ou Coroa ?
Por isso
mesmo, pensou Iranildo, enquanto imergia no corredor de canaviais da BR 101,
cada momento é único, último e definitivo e deve ser degustado como o
derradeiro gole da garrafa de vinho Bordeaux. Neste exato momento, estamos
parados à borda da autoestrada e nunca sabemos para qual lado o trator vai
tombar.
Crato,
03/07/20
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